Vivendo em Doğubeyazıt - III, por Luís Garcia
DOS BALCÃS AO CÁUCASO – EPISÓDIO 21
Estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem... aonde não estou. (Estou Além, António Variações)
28.06.2014
O terceiro dia em Doğubeyazıt foi preenchido com vários encontros com membros do PKK, apoiantes do PKK e vítimas da destruição programa das vilas e cidades curdas por parte das forças militares turcas. O nosso amigo e anfitrião Mehmet, por exemplo, viu a sua casa arrasada por tanques turcos inúmeras vezes, até que abandonou o seu terreno na colina e construiu a sua casa actual no centro de Doğubeyazıt. Um irmão mais velho de Mehmet, Metin Arik foi um de muitos curdos que morreram a combater pelo PKK contras as forças militares turcas, já lá vão 24 anos. O dia foi portanto em grande parte ocupado a falar de política e história com estas gentes curdas que têm os 2 temas sempre debaixo da língua, ao contrário do nosso belo país onde o desinteresse é generalizado e o obediência aos média nacionais é quase total.
Uma vez mais, vou meter os EUA ao barulho. A quem anda desatento, convêm informar que os EUA formam desde os anos 50 guerrilhas ultra-secretas (Gladio) no seio das forças armadas dos seus países aliados da NATO. Na maior parte dos casos nem sequer os membros do governo do país em questão estão a par da existência dessas forças especiais de intervenção que foram criadas, em teoria, para despoletar uma contra-revolução em caso de ocupação da Europa e Turquia pela URSS durante o período da guerra fria. Em 1990 a URSS começou a desmoronar-se e a verdade veio ao de cima pela boca de um ex-governante italiano, o qual expôs publicamente a versão italiana desses exércitos ultra-secretos que dava pelo nome de Gladio. Ao contrário das suas premissas, os grupos “Gladio” (como ficaram a ser conhecidos) na Europa desencadearam o terror que prometia evitar, sobretudo na Itália, França, Bélgica e Alemanha. Na Itália, por exemplo, cometeram inúmeros ataques sangrentos, matando e ferido centenas de cidadãos italianos, para depois se culpar as Brigadas Vermelhas de forma a descredibilizar e destruir as forças comunistas do país. No resto da Europa fizeram mais do mesmo, e sempre com muito sucesso, ao ponto de hoje já não haver na Europa senão centro-direitas e centro-esquerdas que são duas faces da mesma moeda: a Ditadura Económica Mundial!
Na Turquia dos anos 60 as coisas passaram-se duma forma um pouco diferente. Os 2 grupos “Gladio” turcos trabalharam sobretudo em atentados sangrentos sobre o povo turco, para culpar em seguida a minoria curda, numa das muitas medidas implementadas com o intuíto de fazer desaparecer os curdos da Turquia. Nessa altura (anos 60) não haviam organizações de guerrilha (ou terroristas, depende do ponto de vista) curdas nem tampouco ambições nacionalistas ou independentistas por parte da população curda. Esse “vírus” foi introduzido pelo Gladio turco através das referidas “operações de bandeira falsa” e sobretudo pelas decisões do governo central que implementou uma política de genocídio cultural: nessa altura a população curda foi proibida de falar curdo, o ensino da língua curda foi banido, tradições, danças, costumes curdos foram reprimidos, e por aí fora. É por estas razões que, na minha modesta opinião, foi a prepotência e chauvinismo dos poderes turcos que despertou a população curda para se ver a si própria como um povo (nação) distinto! Foi o nacionalismo agressivo turco que despertou os curdos para o conceito de independência. Foi o terrorismo do Gladio e posteriormente das Forças Armadas Turcas que criaram dentro da população curda a necessidade de criar as suas guerrilhas (PKK é o nome mais conhecido), com as quais passaram a responder também com terror. Em resumo, se deixassem curdos falar curdo, aprender curdo, comportarem-se culturalmente enquanto curdos e não os acusassem de ter cometido os primeiros actos terroristas nos anos 60 (obra dos Gladio turcos), turcos e curdos poderiam viver em paz e harmonia na sua diversidade cultural e linguística, com fazem muitos outros países do planeta nos quais coabitam 2 ou mais povos. Ao querer criar uma Turquia apenas para turcos, uma ideia absurda que implicaria cometer genocídios mais cedo ou mais tarde (daí a necessidade de acusar curdos de cometer os primeiros ataques terroristas), sobretudo numa terra em que os turcos foram os últimos a chegar… apenas causou sofrimento, morte e sentimentos de vinganças entre dois povos (turcos e curdos) que, em condições normais, são dos mais simpáticos, hospitaleiros e altruístas que o nosso planeta contém... é a triste realidade!
Livro de Daniel Ganser sobre os “Gládio”, em inglês:
De volta às estórias de viagem: o dia passou rápido e era já tarde quando fui ao barbeiro com Claire e o nosso amigo Armağan que ofereceu-me um tratamento completo à cara: corte de cabelo, corte da barba, lavagem, massagem, limpeza de orelhas, perfume, um monte de produtos… eu sei lá, passei quase uma hora nas mãos do genial barbeiro! Ao caminhar de regresso a casa fomos obrigados a aceitar um saco de frutas oferecidos por um dos nossos novos amigos cuja frutaria se encontra na mesma rua que a barbearia. Os 4 franceses tinham entretanto partido rumo ao Irão.
Saí de casa com Claire para comprar uma mini chave de fendas mas não conseguimos pois o dono da loja emprestou-nos uma! Hehe! Ao voltar a casa havia 2 novo hóspedes, um turco com medo de curdos (Kağan) e um brasileiro super contente por poder falar português pela primeira vez em quase 2 meses (Felipe)!
Depois de umas trocas de ideias sobre a Turquia e o Curdistão Turco com Kağan e Felipe, saímos com Armağan em direcção à rua do barbeiro e da frutaria do nosso amigo, onde todos dias faziamos serões de chá e conversa! Aqui ficam alguns pensamentos da pessoa mais inteligente que encontrei na cidade, um jovem homem chamado Zafer:
- ÁGUA PRIVADA: em Doğubeyazıt toda a gente se queixa de ter apenas 5h por dia de água nas torneiras, quando há! No entanto toda a gente a desperdiça a regar o chão imundo até a água acabar, em vez de limpá-lo, e em vez de poupar a água para verdadeiras necessidades. O governo turco, que desperdiça fortunas em megalomanias no ocidente turco, aqui não gasta um tostão. Agora veio a máfia da UE, com uns fundos manhosos, estabelecer água canalizada em parceria com empresas privadas, pois claro. Assim que estiver pronto o novo sistema de água “oferecido” pela UE, a população nunca mais terá 5h/dia de água praticamente gratuita. Passará antes a ter 24h/dia de água canalizada que nunca poderão pagar, dados os preços exorbitantes que enriquecerão a parte privada deste “mecenato” público-privado… Enfim, dinheiro dos contribuintes europeus e contas de água astronómicas em Doğubeyazıt para enriquecer a omnipresente Ditadura Económica Mundial; [Pegue-se no exemplo da Bolívia, cujo governo na altura vendeu A Àgua Toda a uma empresa dos EUA, que cobrava inclusive pela da água chuva recolhida pelas populações empobrecidas. No que é que deu? Revolução popular e eleição do primeiro nativo à presidência do país, Evo Morales. Fico à espera para ver a reacção do povo de Doğubeyazıt.]
- ONG PATERNALISTA: Há uns anos atrás uma ONG italiana queria a todo custo construir um infantário em Doğubeyazıt, sem querer ouvir primeiro os locais e tentar entender as suas necessidades e costumes. Perante o arrogante paternalismo da ONG, o presidente da câmara de Doğubeyazıt criou propositadamente entraves à obra; Um dia Zafer, que trabalhava como tradutor de turco para inglês na câmara local, teve uma conversa com umas das responsáveis italianas do projecto, a qual amargurada lhe perguntou “porque raio os curdos não deixam a nossa ONG os ajudar?”. Zafer respondeu perguntando: “Uma laranjeira é um óptimo complemento para um jardim de uma casa. Posso ir a tua casa na Itália, escavar um buraco no jardim e lá meter uma laranjeira?”. A italiana respondeu: “Sem a minha autorização não, eu tenho de decidir se gosto ou não da ideia.” Voilá o que Zafer queria ouvir da italiana.
- O JAPONÊS INGÉNUO: sim, o título é quase um pleonasmo! Andava um dia Zafer a passear no monte quando deu com um japonês tirando fotos com a sua tele-objectiva. Observou-o longamente, dando tempo necessário para o outro tirar muitas dezenas de fotos. Por fim aproximou-se, apresentou-se e explicou (muito sério) ao japonês que cada foto tirada custava 3 dólares e que deviam ser pagos de imediato. O japonês aborrecido desculpou-se, jurando que não sabia da regra. “Tarde de mais, agora tens de pagar. Quantas fotos tiraste?” perguntou Zafer. “Apenas 3 fotos, juro”. “Ah, 3 fotos, não acredito, foram muito mais”, insistiu o nosso amigo. O japonês voltou a repetir a versão de 3 fotos. “Então tudo bem, deixa-me ver a máquina e se forem 3 fotos pagas-me os 9 dólares devidos”. Encostado à parede, o japonês hesita em mostrar a máquina. Zafer pergunta então: “Não terão sido antes 10 fotos? Pagas os 30 dólares e nem preciso de ver a câmara?” De imediato o japonês passou o dinheiro, contente por não ter de mostrar as dezenas de fotos tiradas. “que fortuna acabei de poupar, que sorte!” terá pensado. Zafer agradeceu, deu de volta os 30 dólares ao japonês, disse-lhe “era uma piada” e foi embora tranquilo, deixando o japonês de boca aberta por um longo período. Lá, está, a famosa ingenuidade japonesa.
- OCIDENTE CIVILIZADO: durante as 2 semanas que passou em França há uns anos vivenciou algumas experiências que o fizeram jurar a si próprio nunca mais lá voltar. E confessa que o enervam todos os turistas que após falarem com ele (Zafer é fluente em inglês), tentam o convencer a fugir deste “fim do mundo” e fugir para a Europa “civilizada”. “Civilizada”? Então que me expliquem o que vi na Europa:
o Estavam os meus anfitriões em Paris a ouvir música alta à noite e bateu-lhes à porta a Polícia, em seguimento de uma queixa de um vizinho. Por que razão os “civilizados” franceses não chegaram a um acordo “civilizado” entre vizinhos, estipular um meio termo conveniente às duas partes, em vez de criar problemas com Polícia?
o Por que razão os idosos do “mundo civilizado” morrem em solidão e o resto dos seus “civilizados” amigos, familiares e vizinhos só descobrem a sua morte 2 semanas depois devido ao cheiro a carne em putrefacção?
o E por aí fora, numa lista que cala qualquer um que venha dizer a este senhor que as gentes da Europa são mais civilizados que as gentes locais.
- CAPITALISMO 1: Convicto no seu anti-capitalismo, enfureceu-se no dia em que quis comprar uma casa a pronto pagamento (avaliada em 85.000 liras) e o dono lhe respondeu que com empréstimo do banco o preço era 85.000, mas que a pronto pagamento era 95.000! Comprometido com o banco local, o agiota queria ver Zafer pagar durante dezenas de anos prestações que elevariam o preço final da casa para o dobro, lucro do banco claro está, mas que em parte viria parar às suas mãos. Zafer mandou-os à merda e pagou as 95.000 liras em cash, para choque da vizinhança que o criticou por mandar fora 10.000 liras! Ah, que moca!
- CAPITALISMO 2: A Zafer enerva-lhe esta paranóia de pedirem fortunas de centenas de milhares de liras pela venda de uma loja no centro da cidade de Doğubeyazıt onde nem a vender fruta durante 10 vidas, o comprador jamais conseguirá saldar a absurda dívida. E os bancos aqui fazem empréstimos do género da noite para o dia! Por outro lado, com essa fortuna Zafer garante que poderia comprar um terreno vazio e lá construir uma nova vila onde se produziria riqueza suficiente para pagar o tal empréstimo. Um dia lembrou-se de ir roer a cabeça aos bancários locais, apresentando-lhes esse projecto-mentira de uma nova vila com agricultura e indústria, produtora de riqueza que asseguraria ao banco o retorno do dinheiro emprestado. Tudo pelo mesmo preço de uma loja no centro de Doğubeyazıt. Toda a gente se recusou emprestar-lhe dinheiro, como previra. Para concluir Zafer comparou esta estória com a mais real história dos sub-prime nos EUA que conduziu o planeta a uma crise global. “O capitalismo apenas funciona aprisionando e ameaçando as pessoas com uma dívida impagável, de forma a que trabalhem até morrer e que consumem também lá pelo meio, mas sem que nunca vivam as suas vidas! Que apenas sobrevivam ao passar dos dias.” Palavras sábias. Exactamente, concordo e já tenho dito o mesmo…
Zafer, o jovem sábio curdo
Ao voltar para casa trouxemos mais um saco de fruta na mão, oferecido pelo vendedor nosso amigo.
Álbuns de fotografia
Luís Garcia, 22.04.2017, Ribamar, Portugal
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