De Uroševac a Gračanica, por Luís Garcia
DOS BALCÃS AO CÁUCASO – EPISÓDIO 7
Estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem... aonde não estou. (Estou Além, António Variações)
13.06.2014
O nono dia de viagem começou com 2 trajectos de autocarro, de Sojeve a Uroševac, e de Uroševac para Veternik (arredores de Pristina, zona sul). Não tínhamos objectivo específico nesta vila de Veternik, mas ainda sim divertimo-nos a contemplar a imensa quantidade de shoppings (quase todos por acabar, mas já com todas as marcas internacionais que supostamente terão loja dentro) que crescem que nem cogumelos, e são quase mais que as casas dessa aldeola. Não faz sentido, um boom de construção que não servirá de nada, primeiro porque nas aldeias em volta não existem potenciais clientes para fazer funcionar um shopping quanto mais uns 15! E se a ideia era servir a capital, ali a 3 km, seria bem pensado, se Pristina não tivesse já dezenas de novíssimos shoppings, quase um por habitante (estou a exagerar mas pouco)! Enfim…
Feita a vistoria aos shoppings, seguimos a pé em direcção do grande destino do dia, Gračanica, um enclave onde se concentraram (muitos forçados pelo poder albanês do Kosovo) quase todos os sérvios que restam no Kosovo (11000 pessoas), depois da limpeza étnica patrocinada pelos EUA, UE e NATO. A TV ocidental, fiel servente dos interesses económicos do Império Norte-Americano, não teve nunca problemas em repetir incessantemente que albaneses foram massacrados, mas nunca, nunca mesmo se deram ao trabalho de relatar os massacres de sérvios como o ocorrido em Krajina, ou o facto de quer albaneses quer sérvios terem sido mortos pelas bombas humanitárias da NATO. A NATO, os EUA, contaram-nos a treta de estória de terem vindo fazer trabalho humanitário, de evitar a limpeza étnica de albaneses, num Kosovo (província da Jugoslávia) que em 1953 tinha 65% de albaneses, em 1991 quase 82% (boa parte emigrantes ilegais vindos da Albânia para forçar a albanização do Kosovo) e em 2011 quase 93% de albaneses. Mas não contaram nem contarão nunca que dos 23,5% de sérvios da província sérvia do Kosovo em 1953, sobram agora 1,5%! (Demografia do Kosovo) Querem falar de limpeza étnica? Eis a limpeza étnica. Ainda em 2004 e 2005 casas de sérvios e igrejas ortodoxas sérvias foram queimadas por terroristas do UÇK e nacionalistas albaneses, e também vários civis sérvios do Kosovo foram mortos sem razão aparente, com a vista grossa dos Capacetes Azuis que presenciaram alguns destes crimes. O grande jornalista português Carlos Santos Pereira, corrido para fora dos jornais e TV’s nacionais pelo crime de dizer demasiadas verdades escreveu um excelente livro onde descreve muitos destes factos, alguns presenciados pelo próprio:
Aqui no blog tenho um artigo sobre o tema, dê uma olhada::
E para quem quiser saber mais sobre o tema, dois grandes documentários, inconvenientes, pois claro, mas objectivos e factuais:
Voltando à estória do dia, e como ia dizendo, começámos a caminhar em direcção a Gračanica mas, para mal dos nossos pecados, começou a chover e tivemos de adiar a caminhada. Optámos por um autocarro citadino e avançámos 2 km até uma terriola chamada Hajvali. Aí demos uma volta para passar o tempo e continuámos a caminhar, 3 km até Gračanica, sempre sob ameaça de chuva que não veio. A entrada de Gračanica já não está fechada como há uns anos atrás e parece que os albaneses se acalmaram um pouco, já não entram pela vila sérvia adentro provocando caos e horror. O último assassínio de um civil sérvio por terroristas albaneses em Gračanica ocorreu em 2005 e existe um pequeno monumento em sua homenagem no centro da vila. Ainda assim, à entrada de Gračanica existe um painel informando que a vila se encontra sobre rigoroso controlo de vídeo, e sim, é verdade, encontrámos bastantes câmaras CCTV espalhadas por Gračanica.
E já agora,enquanto caminhávamos pela avenida central da vila, vimos passar um jipe da NATO repleto de militares portugueses e uma bandeira lusa ondeando graças à excessiva velocidade escolhida pelo condutor que, mais que interessado em averiguar a situação da vila, estava interessado em brincar ao pilot de rali que não paga a gasolina que desperdiça! E a soldadesca atrás rindo-se que nem putos parvos! Que broncos!
Em Gračanica o que mais salta à vista é a impressionante presença de bandeiras sérvias por todo lado! Impossível há 9 anos atrás, incontornáveis hoje em dia, e ainda bem, para desenjoar da claustrofóbica presença de bandeiras da NATO, dos EUA e da Albânia no resto do Kosovo! Outro pormenor importante é o estado de degradação das casas deste enclave perdido no meio de território hostil, perdido no meio de um estado falhado. Não há nenhuma perspectiva de futuro nestas paragens. Ainda assim os mais velhos resistem e insistem em viver e morrer na sua terra natal.
Um bom exemplo é Mikael, o pensador da vila, que conhece toda a gente, que viajou e trabalhou por todo o lado no tempo da Jugoslávia, e que acolhe de braços abertos todos os estrangeiros, “mesmos os que vêem pela má razão” (militares portugueses da NATO a quem vende com frequência carne de porco e vinho tinto) de “ocupar o território jugoslavo a mando dos EUA”. Conhecemo-lo por acaso, graças à chuva. Estávamos eu e Claire a comer um lanche improvisado num banco de jardim quando começou a chover. Mikael e outras 2 senhoras convidaram-nos muito delicadamente a abrigarmo-nos no alpendre de um barzito. Pedimos uns cafés turcos e a conversa começou, mesmo com o nosso muitíssimo limitado conhecimento de sérvio e o muito limitado conhecimento de inglês de Mikael, da sua mulher e da sua amiga. Poderia passar horas a escrever sobre este encontro especial mas apenas destaco agora, da conversa com Mikael, a serenidade nostálgica e a sensatez lúcida com a qual os sérvios (da Sérvia mas sobretudo do Kosovo) olham para o passado recente. Não negam que os militares sérvios cometeram crimes e portanto não os defendem imbuídos num nacionalismo estupidificante (ao contrário dos albaneses do Kosovo), e tampouco se vangloriam macabramente de terem sido vítimas de massacres e horrores, como fazem todo o tempo os albaneses do Kosovo. A perspectiva é sobretudo de uma cansada impotência face ao desenrolar dos acontecimentos planeados e executados pelos grandes países que tudo decidem, e as questões prementes são de ordem prática: como sobreviver numa vila de 11000 sérvios entalada num Kosovo albanês repleto de nacionalistas extremistas e xenófobos? Onde trabalhar? Como circular? Etc. Como a conversa subia de interesse, Mikael levou-nos até sua casa onde visitámos a sua quinta e a sua oficina improvisada no pátio. Mikael, com todo o engenho e sabedoria da “geração jugoslava”, transforma lixo em surpreendentes motas, tractores e ferramentas eléctricas de elevada utilidade (sobretudo quando não há forma de comprar equipamento, ou não se tem dinheiro para o obter)! E também põe a funcionar automóveis pelos quais ninguém daria um euro em Portugal antes da reparação! Após a visita guiada à casa, fomos convidados a sentármo-nos no pátio com ele, onde a conversa perdurou, ao sabor de cafés turcos e aguardente local… Sem dúvida o grande momento da viagem até então!
Passando para o tema cultural, em Gračanica existe um mosteiro ortodoxo muito antigo e famoso. Melhor que ler sobre ele, é ver o álbum de fotos lá tiradas:
Atravessada toda a vila de Gračanica de norte a sul, recomeçámos a boleia de volta a Ferizaj (Uroševac). Um velhinho sérvio perdido de bêbado com um carro a cair de podre parou para nos levar mas, para nosso inicial desagrado, voltou a parar para nos “obrigar” a aceitar umas cervejas! Ah, e o sol já quase posto! E o receio de depois não conseguirmos seguir à boleia! No bar onde parou fomos encontrar 2 amigos seus, um fotogénico velhinho turco da macedónia chamado Skender que se lembrava com alegria dos golos de Eusébio, e um fotógrafo bósnio-albanês do Kosovo de nome Haki, muito culto, fluente em inglês e grande crítico da destruição da Jugoslávia orquestrada pelo Ocidente e da perseguição aos sérvios levada a cabo pelos albaneses. Outro grande encontro da viagem! Quando saímos do bar já não caminhávamos direito, embora tenhamos gasto zero cêntimos, pois claro. Mais ébrio que nós só mesmo o velhinho que nos trouxera até ali e que nos levou depois até uma vila perto do nosso destino. Ainda estamos para perceber é como, perante tantas saídas de estrada, ziguezagues e manobras típicas de um gajo em coma alcoólico, saímos deste filme vivos e sãos para vos contar a história!
A última boleia do dia foi para Uroševac, com um albanês que viveu em Itália 4 anos. Italiano percebe-se bem, falar é que é pior, mas tudo bem, deu para comunicar facilmente. Em Uroševac pegámos um bus para Sojeve (casa do couchsurfer que nos acolheu 2 dias) onde chegámos já noite escura, ali mesmo ao lado da base militar norte-americana. Chegámos esfomeados e saímos à procura de comida albanesa boa e barata. Mas não, apenas encontrámos comida-lixo norte-americana cara (fried chicken, home delivering, blablabla), saloons e souvenir-shops com bandeiras da terrorista UÇK e miniaturas da Estátua da Liberdade… ou Estátua da Escravatura, para os mais cépticos. Tudo isto a 500 metros da maior base militar dos EUA na Europa: Boond Steel! Enfim, que vómito...
Por fim, fomos para a caminha, hehe, mortos de cansaço mas felizes por termos vivido tão interessante dia. Uma vez mais dormimos na casa do nosso anfitrião couchsurfer, um mercenário albanês que já trabalhou para as forças armadas dos EUA no Afeganistão e não sei mais onde, e que agora trabalha ali ao lado na base militar gringa. Se o gajo sonhasse a volta que demos durante o dia, ahahah! Mas não, nem sequer lá estava, tinha deixado a casa para nós uma vez que naquele dia tinha de ir visitar familiares não sei onde! Não, não, nada disso, não lhe pegámos fogo à casa, fique descanso!
Álbuns de fotografia
Luís Garcia, 04.01.2017, Chengdu, China
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