Uma vida num só dia (2ª parte)
HOLLYWOODICES – EPISÓDIO 12
Eu tenho visto tanta coisa nesse meu caminho, Nessa nossa trilha que eu não ando sozinho, Tenho visto tanta coisa tanta cena, Mais impactante do que qualquer filme de cinema. (Tás a ver?, Gabriel O Pensador)
UMA VIDA NUM SÓ DIA (Ilha de Lombok, Indonésia, 2011) – Já no ponto mais alto da minha rota, para meu enorme espanto, descobri uma planície muito peculiar que, entalada entre montes de um verde luxuriante, apresentava-se em tons castanhos e quase nua de vegetação, não parecendo de todo fazer parte daqueles latitudes. A resposta para tão insólita paisagem foi-me dada umas dezenas de metros mais à frente quando, avistando linhas geométricas delimitando campos de arroz nos quais se moviam de forma compassada típicos chapéus asiáticos que fazem adivinhar igual número de vivalmas escondidas por baixo da sua sombra, descobri que o local era habitado. Em vez de um Mundo Perdido, agora era uma Civilização Quase Perdida e de contornos edílicos para o viajante de passagem, e ao qual prendia a atenção e lhe enchia o pensamento de perguntas e dúvidas. Porque teriam escolhido plantar arrozais escondidos no meio da floresta densa em vez de os plantar mais junto à costa onde poderiam comercializar o fruto do seu trabalho. Como era possível haver ali umas dez pessoas trabalhando e não ser possível avistar casa alguma na área? Onde viveriam? E depois, com ou sem os seus profundos mistérios e a sua visível timidez (não queriam ser fotografados), não estaria eu perante um exemplo perfeito de uma invejável sociedade vivendo serenamente dentro dos limites do razoável, possuidora de uma sofrível tecnologia à justa suficiente para retirar dos campos alimento essencial mas nunca abundante. Uma sociedade que em vez de destruir e combater a natureza como hoje fazemos todos nós, parecia saber viver em comunhão com esta de uma maneira tão completa que os seus trilhos e as suas habitações mantinham inacessíveis ao olhar destreinado de um intruso? Não vi ali riqueza material ao estilo ocidental, mas tampouco encontrei pobreza. E depois, nada deste mundo poderá ser suficiente para comprar aquelas expressões de natural felicidade, de profunda serenidade, de completa comunhão com a natureza. Talvez pueris e bacocas divagações de um tolo como eu, mas não deixa de ser inquietante a comparação entre este mundo perdido e a perdição em que caiu há muito o nosso, afogado entre ultra-consumismos impostos por obsolescências induzidas, eternas crises financeiras e relações com o meio-ambiente completamente desequilibradas. Nada é perfeito contudo! Aquelas gentes isoladas, habitando espaços esquecidos de uma terra coberta de floresta densa, são vítimas fáceis de males com os quais não se conta noutras latitudes. Numa pequena aldeia a que fui dar mais tarde, vi correr duas mães de crianças desfalecidas ao colo correndo apressadas em busca de auxílio junto do curandeiro local, o qual pouco poderia ter feito para as salvar da epidemia de dengue que tem nos últimos anos alastrado nas regiões interiores de Lombok.
Depois de longas horas subindo as montanhas de Lombok e atravessando as suas florestas luxuriosas, começava a lenta descida até a costa sul repleta de praias paradisíacas e quase desconhecidas. Num blog de viagens, dias antes, tinha encontrado um descrição tentadora de uma praia chamada Sepi (literalmente “deserta”, “tranquila” em malaio-indonésio). Sim, o nome diz tudo. Não acerca da praia mas também sobre os inúmeros ilhéus espalhados pela costa, exótico e muitíssimo belos. E pensar que há gente que paga balúrdios para se perder por entre a lixeira a céu aberto, caos urbano e desordem social que é a zona turística do sul de Bali quando, no sul da ilha lado, se encontra o exacto oposto! O comportamento de massa e a publicidade estupidificante, principais forças motrizes do detrás do turismo tóxico, têm o imenso poder que todos nós conhecemos. No entanto, tendo contornos muito criticáveis, têm em contrapartida a inconsciente sensatez de não estrupar paraísos muito mais apetecíveis, ali mesmo ao virar da esquina e ainda assim completamente desconhecidos! Diferenças elementares entre o turismo tradicional e a viagem à descoberta levam a destinos tão opostos como o exemplo acima!
Não muito longe da Praia de Sepi e completamente escondida por umas colinas costeiras descobri de forma afortunada e por erro de navegação uma bela surpresa à beira-mar plantada. Uma aldeola sem electricidade, água canalizada, lojas ou motocicletas, mas com uma localização sem igual em beleza. Montes verdejantes por detrás, um rio e um deslumbrante lago espelhado no meio, e do lado principal uma paradisíaca praia de areias brancas e de comprimento a perder de vista! Fica ainda por contar o melhor: um grupo de nove crianças de personalidades variando entre o extremamente tímido e o burlescamente atrevido, e todas elas muito curiosas com a minha pessoa, com o meu aspecto alienígena perante os seus olhos que não terão visto muito mais que aquela aldeia e aquela praia e daí, confusos com o porquê da minha presença! O líder da trupe, de olhos esbugalhados e incitado pelas restantes crianças, tomou a coragem de se aproximar de mim e tocar-me de repente, gesto ao qual seguiu uma brusca fuga resultante do medo, sei lá, que aquele gigante magricelas de barba enorme e com objectos bizarros nas mãos fosse um fantasma e não um ser a eles semelhante. As restantes crianças riam de satisfação com a precipitada fuga do suposto valentão e do consequente trambolhão. Ferido no orgulho e mais confiante de que eu fosse de facto real, voltou de dedo indicador esticado na minha direcção.. Tocou-me no meu braço esquerdo e riu-se confiante. Os restantes riram-se de contentamento e mais tranquilos com a minha presença. Poucos segundos depois era atacado pelo enxame de miúdos, tolos eles ávidos de comprovar com os seus próprios dedos a existência física do ET que haviam encontrado. Ao contrário da maior parte das crianças na Indonésia, estas nove não me tratavam por “mister”, não me pediam para lhes tirar fotos e tampouco pareciam perceber para que servia a máquina fotográfica que eu transportava nas minhas mãos. De forma bastante tímida tirei-lhes 2 ou 3 fotos e em seguida baixei-me ao nível deles, convidando-os a olhar para os seus retratos expostos no ecrã do aparelho! Ficaram extasiados, eufóricos com o truque de magia e por eles podíamos ficar o resto do dia a brincar aos fotógrafos e aos modelos fotográficos. Sim, fotógrafos no plural, uma vez que o líder do grupo (na frente sem t-shirt na fotografia capa do artigo) fez questão de pegar na máquina e repetir o truque de ilusionismo, mostrando depois orgulhoso os seus feitos ao resto da criançada embasbacada e que se mandava para o chão perdidos de riso por cada foto tirada a eles mesmos!
Por muito que me custasse a despedida, o grande atraso (se é que se pode falar nestes termos numa aventura assim) que já levava a empresa fez-me tomar a decisão de respirar fundo, voltar à scooter estacionada juntos às casas e despedir-me em andamento das crianças que não pareciam estar dispostas a perder o seu novo brinquedo que era eu mesmo. Um último acenar, muitos sorrisos e parti rumo ao destino final planeado.
Não cheguei a saber nenhum dos nomes dos miúdos. Apenas consegui perceber da conversa impossível (falavam menos indonésio do que eu) que a aldeia se chamava Nangong. Duvido que tenham dado nome àquelas imaculadas areias que tanto anseio revisitar mas para mim passaram a chamar-se Praia de Nangong e eles os inesquecíveis Putos de Nangong!
Tendo chegado já à costa sul da ilha de Lombok, faltavam-me ainda umas dúzias de quilómetros para alcançar a mítica Praia de Kuta (não confundir com Kuta de Bali, a praia do surf e da cerveja), se o meu improvisado mapa e as linhas que Klaus desenhara representando as estradas do sul da ilha estivessem minimamente certas. E se eu não estivesse perdido, dado que o meu único ponto de referência era a Praia de Sepi já muitos quilómetros atrás. Tentei o mais possível manter-me junto à costa e deslocar-me paralelo a esta rumo a leste onde, mais cedo ou mais tarde, depararia com a Praia de Kuta. O problema é que numa ilha quase deserta e sem grande intervenção da mão humana na sua geografia, vi-me obrigado a afastar da costa devido a umas encostas íngremes e seguir por uns ziguezague de caminhos e cruzamentos que, por muito que tenha tentado memorizar, acabei por perder a conta às direitas e esquerdas efectuadas e ao fim de meia hora descobri que estava perdido, numa pequena aldeia no meio da selva, sem visibilidade para distinguir a posição do sol, minha única bússola! Além do mais notava-se que a luz do sol diminuíra já de intensidade, pelo que o por-so-sol não tardaria muito. E eu fazia absolutamente questão de chegar a Kuta a tempo de ver o seu mítico Por-do-Sol! Tive de ganhar coragem e ir pedir ajuda a quem Klaus me advertira de não contactar: os habitantes das aldeias interiores. De facto, a maioria mostrou-se muito reticente e foi difícil encontrar quem se dispusesse ajudar. Não menos difícil foi seguir indicações em indonésio de malta que mal distinguia direita de esquerda. Inevitável, as indicações levaram-me a perder cada vez mais até que desisti e decidi avançar rumo à direcção que eu sentia ser leste. Tiro no escuro ou GPS mental, a verdade é que tinha acertado e poucos quilómetros depois chegava a uma vila moderna junto a um planalto onde me era possível ver a costa sul e constatar o quão longe estava ainda a Praia de Kuta.
Nessa aldeia dei de caras com um evento social que me provocou um mistura de reacções opostas. Tratava-se dos festejos preparatórios de um casamento que, trazendo a população inteira atrás, em procissão, entupia por completo a estrada principal e impossibilitava-me de prosseguir. Por um lado via-me uma vez mais bafejado pela sorte, presenteado com a oportunidade de assistir de passagem a um cerimónia cujos rituais e tradições eu desconhecia por completo. Por outro, inquietava-me a noção de que já não teria grande margem de erro caso continuasse decidido a chegar a Kuta a tempo de assistir ao pôr-do-sol. Embora o grande aparato do evento, durante os primeiros momentos desde que estacionara a moto, a atenção do público tinha se desviado dos viris festejos da trupe do noivo e da estóica sobriedade da trupe feminina para a minha inusitada presença. Com receio de estragar a festa tentei refugiar-me num canto, tentando passar um pouco mais despercebido, fuga que não chegou acontecer pois um dos membros do grupo masculino agarrou-me pelo braço sorrindo, ébrio de euforia, e me instalou no meio do desfile. Uma vez metido na confusão, aproveitei e juntei-me também à festa. Já ganha a confiança com alguns deles, tentei saber a razão do inquietante comportamento do noivo que de forma aparentemente ritualizada fazia passar uma catana repetidamente junto ao seu pescoço em movimentos circulares. O mais esclarecido dos que me escutavam, gritando, tentando combater os ensurdecedores altifalantes móveis do cortejo, explicou-me, divertido, que a catana cortando o pescoço do noivo representava a forca em que aquele se iria meter assim que fosse oficializado o casamento! Ah, adorei o pragmatismo desta malta e a oportunidade de constatar a universalidade da expressão portuguesa de “meter-se na forca”.
Desfeita a curiosidade, apressei-me em tirar umas boas fotos e filmar um pouco a cerimónia. Poucos minutos depois o cortejo tinha passava para além do lugar em que eu havia estacionado a scooter. Voltei à estrada em direcção a leste. À saída da vila encontrei uma placa indicando uma distância de 25 km dali a Kuta! Não havia dúvidas que tinha mesmo andado perdido por um bom período de tempo, percorrendo muitos quilómetros dentro da selva em ziguezague, mantendo mais ou menos constante a distância em relação ao meu destino final. Felizmente tinha chegado à zona recentemente civilizada da região de Kuta na qual foram construídas perfeitas linhas rectas de asfalto com muita qualidade e quase vazias de veículos. De punho a fundo deslizei feito louco por aquelas estradas, olhando de soslaio o sol que se ia aproximando lentamente da linha do horizonte! Pela primeira vez tinha a oportunidade de descobrir os limites daquela velhinha scooter japonesa: uns impressionantes 95km/h em terreno plano!
Mantendo, sempre que possível, a velocidade máxima do bólide de duas rodas e perdendo apenas escassos segundos em hesitações perante dois cruzamentos sem indicações dos destinos, cheguei radioso à Praia de Kuta, mesmo a tempo de apanhar o sol a tocar ao de leve a linha do horizonte! Missão cumprida! Faltava só desfrutar daquele espectáculo ao ar livre, obra-prima e dádiva de uma natureza de altruísmo incansável! Que alegria!
Para quem não ainda não leu a primeira parte: Uma vida num só dia (1ª parte).
Não deixem de ler o próximo episódio, porque nós também não! :)
Luís Garcia, 07.03.2016, Lampang, Tailândia