Turquia, onde o viajante é rei 1/3, por Luís Garcia
BOLEIAS – EPISÓDIO 10
Esta insatisfação, não consigo compreender, sempre esta sensação, que estou a perder. Tenho pressa de sair, quero sentir ao chegar, Vontade de partir, p’ra outro lugar. (Estou Além, António Variações)
TURQUIA, ONDE O VIAJANTE É REI (Turquia, 2008) – De manhã bem cedo visitámos tranquilamente as ruínas de Tróia e voltámos apressados para a estrada, à procura da primeira viatura do dia. Tínhamos ainda mais de trezentos quilómetros para percorrer à boleia pela frente se quiséssemos dormir a próxima noite na casa do jovem couchsurfer que nos havia prometido hospedar na sua cidade.
Ao contrário do resto da Europa onde poucos são aqueles que se atrevem a parar para dar boleia a um pessoa sozinha ou um casal, na Turquia é com grande naturalidade que qualquer tipo de pessoa com qualquer tipo de veículo para, sem hesitar, e dá boleia a três pessoas de uma vez. Se houver espaço e lugares sentados para os três tão melhor, mas se não houver inventa-se. Dar boleia a dois e deixar o terceiro para trás como ocorre normalmente na Europa nem pensar. Foi o caso da nossa primeira boleia naquele belo dia de sol, céu azul e calor. Da aldeia de Truva junto à histórica Tróia saiu um enorme camião velhinho e enferrujado. Não havendo visto nenhum outro veículo circular até então naquela esquecida estrada, esticámos os três os dedos e mostrámos a nossa placa indicando Izmir. Sem surpresas o senhor parou para recolher os três, convidando dois para se instalarem nos assentos a seu lado, e ao terceiro que subisse para o reboque do camião. Ávido de conquistar aquele privilegiado ponto de onde tirar umas belas fotos, voluntariei-me de imediato para esse terceiro posto. Infelizmente a boleia de camião seria curta, apenas até ao cruzamento da estrada secundária de Tróia com a a via principal rumo a Izmir. O que foi uma pena imensa para mim pois já me tinha convencido que iria aproveitar aquela boleia no cimo de um camião para criar um bom álbum fotográfico. Assim é andar à boleia, uma lotaria, o viajante não controla quase nada.
O veículo da segunda boleia, que apareceu pouco depois, foi uma pequena carrinha de caixa aberta, branca, com alguma lenha atrás e na frente um senhor com cerca de quarenta acompanhado pela sua mãe. Na frente sentou-se Claire enquanto que eu e o Diogo fomos para a parte de atrás refrescar-nos com a brisa e continuar a tirar fotos estúpidas. Se a primeira boleia tinha nos adiantado apenas cinco quilómetros, desta vez percorremos uma distância um pouco mais longa, cerca de vinte quilómetros até à vila de Ezine. Costuma-se dizer no nosso Portugal que “devagar se vai ao longe”, e não deixa de ser verdade. No entanto ainda nos faltava 280 quilómetros por realizar se quiséssemos ter o luxo de dormir na casa do couchsurfer que nos esperava em Izmir. Precisávamos urgentemente de um golpe de sorte, de alguém que tivesse uma grande distância a percorrer naquele dia, que passasse por aquela estrada e... que nos recolhesse. Só estava a fazer falta que formulássemos tal desejo! Após uma caminhada atravessando a vila de Ezine até à sua saída sul, recebemos a graça de sermos convidados a entrar no carro de um senhor muito simpático e sorridente que viajava com destino a Edremit, quase 85 quilómetros mais a sul.
Logo nos primeiros minutos, perante tamanho espectáculo natural que é a costa oeste turca salpicada por inúmeras ilhas gregas ao largo, não resisti em abrir a janela do carro e apontar a lente na direcção do mar. O condutor, incapaz de falar inglês fez-me um sinal como a mão para “ter calma” e mostrava um olhar bastante sóbrio. Crendo ter feito asneira (até porque a manivela para descer o vidro da janela estava meio perra), pedi desculpa e acalmei-me. Fiquei mesmo convencido que o senhor não apreciava a minha atitude e refugiei-me sossegado nos meus pensamentos e distraído por aquela sublime paisagem. Mas estava errado, o simpático senhor não tinha nada contra a minha atitude de tentar fotografar a ilha de Lesbos (nome que originou a palavra “lésbica” dado que segundo o mito grego era habitada exclusivamente por mulheres). Pelo contrário, tinha sido perfeccionismo e a muito boa vontade que o haviam levado minutos antes a acenar com a mão, gesto que eu havia compreendido mal.
A explicação chegou quando estacionou o carro junto a um barzinho numa falésia com vista para o mar, perto da aldeia de Küçükkuyu. Assim que saímos da viatura apontou para ilha grega e depois para a minha câmara, fazendo passar com facilidade a sua mensagem. Entretido a tirar fotografias nem reparei que os meus colegas e o nosso companheiro turco haviam já se instalado numa mesa degustando taças de chá turco oferecidas por este último. E havia uma taça também à minha espera. Juntei-me à mesa e os quatros juntos iniciámos uma longa conversa de cerca de uma hora e meia. Conversa, sim, mesmo sem língua falada em comum, tínhamos outras disponíveis. Linguagem gestual, pois claro, assim como linguagem simbólica recorrendo a várias páginas brancas no meu diário de bordo. Na imagem abaixo podem observar uma dessas folhas onde o nosso novo amigo começou por escrever o seu nome completo: Ibrahim Capar.
Com muita paciência fomos capazes de lhe explicar de onde vínhamos, que idade tínhamos, que razão nos havia levado a estar no local em que nos recolheu e por aí fora. Quanto a Ibrahim, ficámos a saber que era engenheiro químico (que filme para para decifrar este pormenor), que tinha duas filhas nascidas em 1986 e 1989, a mais velha advogada e a mais nova estudando gestão. É incrível a quantidade de informação de temas variados que se pode transmitir entre pessoas sem língua em comum, utilizando apenas uma caneta e um pedaço de papel. Demo-nos ao luxo de falar inclusive de temas tão variados e complexos como geografia, história ou política. Acreditem, é verídico. Mais difícil de crer e ainda assim verdade foi o facto daquele senhor, engenheiro químico em Istambul, ter visto a sua mulher pela última vez há dois meses atrás e no entanto dispor-se a perder tanto tempo connosco. Segundo nos explicou tinha o resto daquele dia de Sábado e a manhã de Domingo para matar saudades da esposa e restante família. No Domingo à tarde teria de regressar a Istambul. E ali se encontrava ele, tranquilo, sorridente, passando o tempo numa esplanada com três estrangeiros desconhecidos e pagando-lhes a cada três taças de chá!
Depois de passar uma hora e meia sem sair do mesmo lugar, pensámos que o senhor Ibrahim iria recompensar o atraso acelerando estrada fora, na urgência de chegar a casa e beijar a sua mulher. Uma vez mais enganámo-nos. Condizia tranquilamente junto à costa, fazendo todos os possíveis para completar a visita guiada com explicações históricas, e desacelerando quando me via preparar a fotográfica para disparar. Que imenso altruísmo... e tanto que estava ainda por vir. Compreendendo bem a nossa linguagem corporal e a razão de termos os olhos sempre vidrados nas praias infinitas da costa turca, sacou mais uma obra-prima de altruísmo turco. Parou de novo a viatura, desta vez junto uma praia perto de Altınoluk e ordenou que as três crianças mimadas a escorrer de suor e ardendo de calor fossem se refrescar nas águas do Mar Egeu! Eufóricos, eu e o Diogo saltámos para fora do carro e corremos feitos loucos para dentro de água, realizando o tão desejado mergulho! A água não estava muito fria, mas ainda assim o suficiente para aliviar do sufocante calor durante uns minutos. Não nos prolongámos muito em mergulhos e braçadas pois temíamos abusar da boa vontade do nosso pai turco. Mais uma vez havíamos feito uma suposição errada. O senhor Ibrahim continuava com o seu intocável ar de serenidade, bebendo, claro está, mais uma taça de chá turco na companhia de Claire.
Se algo o inquietava ligeiramente era o facto de não compreender porque não tinha Claire aproveitado a oportunidade para se refrescar. Claire explicou-lhe que não tinha trazido na mala de viagem a parte de cima do seu biquíni e que tinha sido apanhada de surpresa por aquela paragem na praia. Viajando pela tórrida Turquia no mês de Agosto, sabia que por certo acabaria por comprar um biquíni e tomar muitos banhos, pena é que tinha previsto fazê-lo só depois de chegar a Izmir. Ibrahim, comovido, sacou de duas soluções para o problema. Uma foi imediata, gelados para a malta toda. A segunda, a curto prazo, seria parar na vila seguinte e comprar com o seu dinheiro um biquíni. Claire recusou a oferta, agradecida, mas Ibrahim e o seu altruísmo de ideias fixas imperou e a oferta cumpriu-se. Assim que terminámos de comer os gelados levou-nos de carro até à vila de Altınoluk onde se perdeu uma boa meia hora com Claire nas ruas de comércio. Sem paciência para lojas de roupas e afins (que espanto!) fui fazer o reconhecimento fotográfico da vila e de uma outra praia, acompanhado pelo meu colega. Cumprida a missão de encontrar o biquíni certo fizemo-nos de novo à estrada, rumo sul. Nos últimos quilómetros antes de chegar à sua terra natal, e ainda não cansado o suficiente de esbanjar o seu dinheiro enchendo-nos de mimos, Ibrahim insistiu umas vinte vezes sobre a sua certeza de nós estarmos cheios de fome. Tinha razão, sem dúvida, mas nem por um momento sequer hesitámos em negar as inúmeras ofertas de jantar. Fome tínhamos, mas queríamos ser nós a pagar os nossos próprios jantares assim que nos víssemos livres, passe a expressão, de tão altruísta pessoa. Ansiávamos por ingerir uma boa refeição quente, mas antes havia que alcançar a aldeia de Ibrahim e dizer adeus ao nosso pai turco. Só então procuraríamos por kebabs e afins. Uma vez mais nos enganámos. Ibrahim, quase aborrecido pela nossa teimosia, parou ao final da tarde em Kadıköy, aldeia localizada a apenas três quilómetros da sua terra, e obrigou-nos a aceitar a sua oferta de jantar com ele uma refeição de kebab e ayran. Até insistiu numa segunda dose (que nós comeríamos de certeza), mas teve o bom-senso de aceitar a nossa recusa. Ou então acreditou mesmo na mentira descarada que lhe demos, a de não termos mais espaço nos estômagos! Sim, tínhamos, mas por favor caro Ibrahim, altruísmo tem de ter limites! Acabada a refeição voltámos ao carro para percorrer os últimos três quilómetros que faltavam até Edremit, onde a pobre esposa de Ibrahim deveria estar já desesperada e preocupada com tamanha demora. Perguntámos-lhe isso mesmo, se não recearia deixar a mulher um pouco maldisposta por causa de nós. Respondeu-nos que não. Acredito que, nas nossas confusas conversas, tenha dito algo como: “embora não veja a minha esposa há mais de dois meses, hei-de encontrá-la muitas vezes mais se deus quiser". Passar uma tarde inteira na companhia de estrangeiros é que não deverá acontecer de novo tão depressa”. E garantiu-nos que a sua mulher iria adorar ouvi-lo contar a estória do dia passado com dois viajantes portugueses e uma viajante francesa. Com vários abraços, passou-bens e beijos, e também alguma comoção, dissemos o tradicional “adeus e até sempre” ao nosso pai turco e voltámos à estrada, tentando ainda assimilar a inacreditável tarde que havíamos passado com Ibrahim... não há nada mais elevado e que faça melhor ao coração de um turco que bem receber um estrangeiro e fazer tudo por ele. O resto é nada. Insisto, estrangeiro na Turquia é rei... ou rainha!
Deixo-vos com o álbum de fotografias que ajudará por certo a melhor compreenderem o que acabei de descrever.
Continua...
Luís Garcia, 27.09.2016, Chengdu, China
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