Tal como a Líbia e a Síria, a Venezuela não é "só sobre petróleo", por André Vltchek
Mas a questão aqui não é só "só sobre petróleo". Longe disso!
Aqueles que acreditam que o que impulsiona a propagação do terror Ocidental pelo mundo afora são apenas alguns "interesses comerciais" e a lendária ganância Ocidental estão, do meu ponto de vista, a passar ao lado da questão.
Noto que tais indivíduos e analistas deveras acreditam que "o capitalismo é responsável por tudo" e que este cria a cultura da violência de que, quer vítimas quer agressores, já se tornaram todos reféns.
Depois de ter trabalhado em todas as partes do mundo, estou cada vez mais convencido de que, na realidade, o capitalismo é que é fruto da cultura ocidental, cultura essa que se baseia predominantemente no expansionismo, no excepcionalismo e na agressão. Esta cultura assenta também num desejo profundamente enraizado de controlar e de ditar. A ganância financeiro-monetária é apenas um subproduto desta cultura que elevou a sua superioridade a algo que poderia até ser definido como religioso ou mesmo religiosamente fundamentalista.
Por outras palavras, a crença na sua própria superioridade é, actualmente, a principal religião quer na Europa quer na América do Norte.
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O que torna afinal tão semelhantes os cenários líbios, sírios e venezuelanos? Porque é que o Ocidente se mostra tão ansioso por atacar e destruir estes três países que, à primeira vista, parecem ser tão diferentes?
A resposta é simples, embora raramente seja pronunciada no Ocidente (pelo menos publicamente):
"Os três países estiveram na vanguarda da promoção e luta determinada por conceitos como o "pan-africanismo", o "pan-arabismo" e a Patria Grande que, na sua essência, defende a independência e unidade Latino-Americana."
Gaddafi, al-Assad e Chávez foram regional e internacionalmente reconhecidos como combatentes anti-imperialistas, inspirando e dando esperança a centenas de milhões de pessoas.
Gaddafi foi assassinado, Chávez provavelmente também foi morto e Al-Assad e sua nação têm vindo a lutar literalmente, e por vários anos, pela sua sobrevivência.
O actual presidente venezuelano Maduro, que é decididamente leal aos ideais revolucionários Bolivarianos, já sobreviveu a pelo menos uma tentativa de assassinato e, agora, enfrenta ameaças directas ao bom estilo mafioso provenientes do Ocidente. A qualquer momento, o seu país pode ser atacado, directamente ou através dos estados latino-americanos "vassalos" do Ocidente.
Assim é porque a África, o Médio Oriente e a América Latina foram durante séculos tratados como suas colónias. Assim é porque sempre que as pessoas se revoltavam, eram quase imediatamente esmagadas pelo punho de ferro do imperialismo ocidental. E aqueles que pensam que estão ao comando do planeta graças a algum divino desígnio, esses não querem que as coisas jamais mudem.
A Europa e a América do Norte estão obcecadas com a ideia de controlar os outros e, para o fazer, sentem que têm de se certificar que exterminam toda e qualquer oposição nas suas colónias e neo-colónias.
É um verdadeiro estado de enfermidade mental no qual o Ocidente se encontra; um estado que eu, em meus trabalhos anteriores, defini como Transtorno Sádico de Personalidade (TSD).
Para se obter um quadro completo, é preciso também recordar a Indonésia, que foi literalmente liquidada enquanto nação independente e progressista em 1965. O seu presidente internacionalista, Sukarno (pai do Movimento dos Países Não-Alinhados e aliado próximo do Partido Comunista da Indonésia, o PKI), foi derrubado pelo general Suharto escolhido a dedo pelo Ocidente, um intelectual traiçoeiro e moralmente perturbado, abrindo assim as portas ao turbo-capitalismo e à pilhagem desenfreada dos recursos naturais da sua nação. Outrora uma luz orientadora da luta pela independência de toda a Ásia, depois do horrífico genocídio orquestrado pelos EUA/Reino Unido/Austrália, a Indonésia foi reduzida a nada mais do que um estado "vassalo" do Ocidente, pobre e lobotomizado.
O Ocidente tem a incrível capacidade de identificar verdadeiros líderes independentistas regionais e os desacreditar e os tornar vulneráveis através da mentira para, em seguida, defender a assim chamada "oposição local" e, mais tarde, liquidá-los a eles e também aos seus países e até mesmo as suas regiões inteiras.
Às vezes, o Ocidente ataca países específicos, como foi o caso do Irão (1953), Iraque ou Nicarágua. Mas, mais frequentemente, ataca directamente o "peixe graúdo" (líderes de oposição a um nível regional), como na Líbia, na Indonésia, na Síria e agora na Venezuela.
Muitos indivíduos, desafiadores da ordem ocidental já foram literalmente assassinados: Gaddafi, Hussein, Lumumba e Chávez, para citar apenas alguns.
E claro, faça o que fizer, o Ocidente está tentado destruir os maiores líderes da coligação anti-ocidental e anti-imperialista: Rússia e China.
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A questão está bem longe de ser apenas sobre petróleo ou sobre lucros.
O Ocidente sente necessidade de governar. É obcecado com a ideia de controlar o mundo, de sentir-se superior e excepcional. É um jogo, um jogo mortal. Durante séculos, o Ocidente tem-se comportado como um fanático religioso fundamentalista, e o seu povo nunca sequer reparou que as suas perspectivas sobre o mundo se tornaram de facto sinónimos de excepcionalismo e de superioridade cultural. É por isso que o Ocidente é tão bem-sucedido em criar e injectar movimentos religiosos extremistas de todas as denominações em praticamente todas as partes do mundo: da Oceânia à Ásia, da África à América Latina e, claro, na China. Os líderes ocidentais sentem-se "em casa" com extremistas cristãos, muçulmanos ou até budistas.
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Mas a Síria conseguiu sobreviver e até hoje mantém-se pé. A única razão pela qual as forças governamentais não estão tentando reconquistar o último bastião terrorista de Idlib é porque a população civil sofreria enormes perdas durante essa batalha.
A Venezuela também recusa se ajoelhar e render-se. E é claro que, se o Ocidente e seus aliados se se atreverem a atacar, a resistência, alguns milhões de pessoas, irão lutar pelas suas vilas e campos e, se necessário, retirar-se-ão para a selva e haverão de travar uma guerra de libertação de guerrilha contra os invasores e contra as traidoras elites.
Washington, Londres, Paris e Madrid estão claramente utilizando uma estratégia extremamente desactualizada: uma estratégia que funcionou contra a Líbia, mas que falhou completamente na Síria.
Recentemente, na Síria, perto da linha de frente de Idlib, dois comandantes de alta patente disseram-me que estão lutando "não só pela Síria, mas por todo o mundo oprimido, incluindo a Venezuela". Eles perceberam com clareza que o Ocidente está usando contra Caracas exactamente a mesma estratégia que tentou usar contra Damasco.
Agora, também a Venezuela também está sofrendo e lutando em nome de todo o mundo oprimido.
Não tem "o direito de falhar", tal como a Síria não teve o direito de se render.
A destruição da Líbia já havia causado um enorme impacto negativo em África. E abriu as portas à renovada e desenfreada pilhagem francesa do continente. A França prontamente juntou-se ao Reino Unido e aos Estados Unidos.
A Síria é o último bastião no Médio Oriente. É tudo o que sobra agora, resistindo ao controlo total do Médio Oriente pelo Ocidente. Síria e Irão. Mas o Irão ainda não é uma "frente", embora muitas vezes pareça que em breve se possa tornar numa.
A Venezuela não pode cair, pelas mesmas razões. Está no extremo norte da América do Sul. Abaixo, há um continente inteiro aterrorizado pela Europa e pela América do Norte, e que durante séculos e séculos foi brutalizado, pilhado e torturado. Uma América do Sul onde dezenas de milhões de pessoas costumavam ser exterminadas como animais, forçadas a se converter ao cristianismo, roubadas de tudo e obrigadas a seguir bizarros modelos políticos e económicos ocidentais.
No Brasil, o governo socialista progressista do PT já foi derrubado.
Se a Venezuela cair, tudo pode ser perdido, por décadas, talvez até séculos.
E por isso lutará. Juntamente com os outros poucos países de esquerda que ainda sobram nesse "hemisfério ocidental"; países que os ditadores em Washington D.C. abertamente descrevem como "o seu quintal".
Caracas ergue-se e luta pelas vastas favelas do Peru, por milhões de carentes no Paraguai, pelas favelas brasileiras, por aquíferos privatizados e pela floresta tropical assassinada no Brasil.
Exactamente como a Síria tem lutado pela Palestina, pelas abandonadas minorias da Arábia Saudita e do Barém, pelo Iémene, pelo Iraque e pelo Afeganistão (estes últimos, dois países a quem a NATO roubou quase tudo).
A Rússia já mostrou o que pode fazer pelos seus irmãos árabes, e agora está a demonstrar a sua disponibilidade para apoiar o seu outro aliado chegado, a Venezuela.
A China está rapidamente juntando-se à coligação de combatentes anti-imperialistas. Outro exemplo é a África do Sul.
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Não, a Venezuela não é só sobre petróleo.
É sobre o Ocidente ser capaz de impedir o acesso de navios chineses ao Canal do Panamá.
É sobre o controlo total do mundo: ideológica, política, económica e socialmente. Sobre liquidar toda a oposição no Hemisfério Ocidental.
Se a Venezuela cair, o Ocidente pode ousar atacar a Nicarágua e, em seguida, atacar o bastião do socialismo e do internacionalismo: Cuba.
É por isso que não se deverá nunca permitir que a Venezuela caia.
A batalha pela Venezuela já está a ser travada, em todas as frentes, incluindo a ideológica. Na Venezuela não estamos apenas lutando por Caracas, Maracaibo ou Ciudad Bolivar. Estamos lutando por todo o mundo oprimido, como fizemos e estamos fazendo em Damasco, Aleppo, Homs e Idlib, como podemos ter que fazer em breve em muitas outras cidades do mundo inteiro. Enquanto o imperialismo Ocidental se mantiver vivo, enquanto não desistir dos seus sonhos de controlar e arruinar a totalidade do planeta, não podemos descansar, não podemos baixar a guarda, não podemos celebrar vitória final em nenhuma parte do mundo.
E portanto, tudo isto está longe de ser "apenas sobre petróleo". É sobre a sobrevivência do nosso planeta inteiro.
André Vltchek
Traduzido para o português por Luís Garcia
Versão original em inglês na NEO - New Eastern Outlook.
André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula: O Brasil de Bolsonaro - O Novo Tubarão Num Mar Infestado de Tubarões. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.
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(Traduzido por Luís Garcia)