Sudeleste 2007: A Aventura
Eu ando pelo mundo, E os automóveis correm para quê? As crianças correm para onde? Transito entre dois lados de um lado, Eu gosto de opostos, Exponho o meu modo, me mostro, Eu canto para quem? (Esquadros, Adriana Calcanhoto)
A preparação do SUDELESTE 2007, a primeira de 2 viajens loucas, começou pela definição dos objectivos principais e da delineação do trajecto base, trajecto esse sempre aberto a mudanças e improvisações de última hora caso necessário (o que veio de facto a acontecer com frequência). Os objectivos traçados foram então:
- Sobreviver um mês com um orçamento de 350 euros;
- Ir de Portugal à Eslovénia à boleia em menos de uma semana;
- Ir de Portugal à Roménia e voltar à boleia em 30 dias.
Esta viagem não poderia portanto ser realizada se para tal não tivéssemos requirido à inestimável utilidade das boleias como meio de transporte principal, e ao couchsurfing como meio de obter casa para pelo menos termos onde dormir e tomar banho, sempre a custo zero. No entanto, as experiências couchsurfing neste SUDELESTE 2007 trouxeram-nos quase sempre muito mais que um simples sofá para dormir e/ou uma casa de banho com duche quente. Com ele pudemos encontrar também inúmeros almoços e jantares oferecidos, computadores e internet à nossa disposição, "guias turísticos" exclusivos e "amigos de imediato" com quem tivemos o prazer de partilhar belos passeios, agradáveis discussões e idas a bares ou cafés para beber uma cerveja fresquinha ou um chá bem quente...
Para ter uma ideia mais precisa do percurso por nós realizado nestes 30 dias de SUDELESTE, aqui fica o googlemaps que criámos:
O primeiro dia de SUDELESTE ficou marcado por um insólito e lamentável episódio em Vilar Formoso, junto à fronteira com Espanha. Ao tirarmos à sorte quais de nós os três seguiriam viagem à boleia num camião com vaga para apenas dois, calhou a Ivo ficar à espera da próxima boleia, uma situação já prevista e portanto aceite por nós como natural. Absurdo seria no entanto o comportamento da Guardia Civil de Espanha que ao encontrar um português procurado por ter assaltado algo em Espanha, acabaria por levar até a esquadra também o Ivo, apenas por este se encontrar a pedir boleia no mesmo lugar que o outro português. Esta má experiencia com a policia espanhola resultou no abandono prematuro de Ivo. Até ao fim da viagem continuaram Diogo e Luís.
De Vilar Formoso seguimos viagem até quase às portas de Paris com um camionista português que por vontade dele nos levava também ao seu destino final, a Alemanha. Mas a Alemanha não estava nos nossos planos, e portanto recusámos, embora não tenha constituído grande surpresa este convite vindo de um camionista português que provou conseguir debitar informação durante pelo menos 48 horas consecutivas. Numa profissão solitária como a de camionista, entende-se perfeitamente a necessidade de partilhar uma conversa com alguém, e não é de espantar que após alguns dias à boleia, um viajante se sinta como psicólogo ambulante de camionistas em depressão profunda...
Em França passámos para um camião espanhol conduzido por um romeno que seguia para sul em direcção a Espanha, embora o nosso destino fosse Itália. Em plena auto-estrada e em andamento encontrámos a solução para este problema ao perguntar por sinais para onde seguia um outro camionista. Pararam os dois camiões na estação de serviço seguinte, onde ai viemos a descobrir que além de ser também romeno este novo camionista, dirigia-se de facto para Itália. Perfeito! Ionica era o nome deste segundo camionista romeno, agora mais que um pai para nós os dois, tratou-nos como filhos adoptivos, como reis e como amigos de longa data. Pagou-nos gelados e cafés, comprou-nos cerveja, fez-nos almoços e jantares romenos nos dois dias parados na auto-estrada italiana, contou-nos magníficas histórias de vidas reais... A pensar no nosso conforto pediu a um colega também romeno que estacionasse no mesmo parque de modo a termos os dois onde dormir descansadamente. Na despedida, e sabendo que o nosso destino último seria precisamente a sua terra natal, Sibiu, na Roménia, ainda nos ofereceu a cada um 10€ para beber "um café" na sua cidade... um ser humano inesquecível...
Após as fantásticas experiências com todos estes camionistas romenos, começámos à "caça" de matrículas romenas e, na falta delas, de camionistas romenos conduzindo camiões de outros países. Daí veio o hábito de começar as conversas com "Merge La Romania?", literalmente, "vai para a Roménia?" em romeno. E funcionou, o nosso estratagema, quando encontrarmos em Itália um camionista romeno que nos levou até à saída de auto-estrada junto a Postojna, na Eslovénia onde nos esperava o primeiro alojamento couchsurfing desta viagem. E para começar não podia ter sido melhor. O casal que nos iria acolher foi-nos buscar de carro ao centro da cidade e levou-nos para a sua magnífica "mansão", onde nos disponibilizaram um quarto e uma casa de banho só para nós. Não nos faltou nada, comida bem saborosa, banhos quentes, internet em casa, um jardim enorme com espreguiçadeiras para descansarmos, companhia para caminhadas e para saídas nocturnas, e muito mais. Perfeito. O último dia em Postojna acabou com um concerto ao vivo e gratuito do grupo francês Un Swing de R'tard, cujo saxofonista após uma interessante troca de ideias connosco, acabou por tomar a decisão de também tornar-se couchsurfer.
No trajecto de Postojna até Celje, passando pela capital Ljubljana, podemos constatar que na Eslovénia encontrar boleia é extremamente fácil e rápido, e é de tal forma comum na sociedade eslovena que basta escrever as iniciais de uma dada cidade (as mesmas das matrículas) para que os automobilistas compreendam para onde tenciona ir um viajante. Em Celje, apenas de passagerm, fomos ao encontro de uma amiga que nos levou a visitar a zona histórica da cidade, o castelo medieval no cimo da colina e um lindo lago escondido por entre os montes nos arredores da cidade.
Em Maribor fomos acolhidos por um casal de couchsufers muito simpáticos, que por serem "workaólicos" deixavam todos os dias a sua casa o dia inteiro nas nossas mãos. Um portátil com acesso à internet, frigorífico e dispensa e respectiva autorização para cozinhar o que por lá houvesse de comestível, além da cama e do banho quente. Muito boa gente... Maribor foi ainda a cidade onde descobrimos que os magníficos gelados que se compram na rua são produzidos pela comunidade albanesa, e onde podemos disfrutar de uma bem merecida e necessária tarde passada num Spa com jacuzzi, piscinas com várias temperaturas e até uma piscina de água quente no exterior. Quanto ao surreal e improvável encontro de couchsurfers que tivemos com duas miúdas eslovenas e dois viajantes franceses, o melhor será ver o vídeo (num próximo artigo) do dito encontro. Linguagem e experiência nonsense, impossível de transcrever aqui...
De Maribor seguimos para a Hungria com uma boleia de um casal espanhol que nos deixou na estância balnear de Siófok, onde aproveitámos para entrar em contacto com o Balatón, o enorme lago que marca a paisagem ocidental da Hungria, para depois seguirmos de autocarro até Budapeste, cidade histórica e de passagem obrigatória, mas que não nos convenceu por ser demasiado turística nas suas zonas principais, e demasiado suja e caótica no resto da cidade, além dos seus muito elevados índices de poluição. Limpa e agradável seria a paisagem de infindáveis campos de milho da planície húngara, completada com o conforto de um nostálgico comboio muito antigo que nos levou quase até à fronteira com a Roménia. Chegados aí, e não tendo outra forma de chegar à Roménia, vimo-nos obrigados a percorrer mais de 10 Km a pé. O pior foi ter começado a chover torrencialmente após o primeiro quilómetro, e não haver sítio algum para servir de abrigo mas, depois de tão esgotante caminhada, acabámos por chegar à primeira cidade na Roménia, Oradea. Aí apanhámos um comboio para Cluj-Napoca, a maior cidade da região, e que nos recebeu com a agradável surpresa de um meeting oficial do couchsurfing.
De Cluj-Napoca seguimos para Sibiu, Capital Europeia da Cultura 2007, cidade do insólito, começando por essa tal história de Capital Europeia da Cultura. Cultura haverá sempre em qualquer lugar, interessante ou não, mas o que ali fomos encontrar foi uma cidade com os problemas típicos da Transilvânia romena, desigualdade social, desemprego, baixa qualidade de vida, infraestruturas em ruínas ou completamente ultrapassadas e, como por "artes mágicas", um centro da cidade a reluzir de superficialidade ocidental em cada vidro de janela e lampião acabado de instalar na véspera, com um estilo e custo de vida absurdamente fora do contexto do norte da Roménia e claramente imposto pelo poder de compra e de influência do mercado turístico das grandes nações da Europa Central, qual neocolonialismo cultural... A lista de insólitos contínua. Permanecer na casa onde fomos hospedados através do couchsurfing, em obras de remodelação e sem o mínimo de condições de habitabilidade, veio a revelar-se uma experiência complicada mas enriquecedora. Os restantes hóspedes couchsurfers, um viajante brasileiro com estilo de serial-killer e mala de viagem maior que ele, que conseguia manter-se 2 horas imóvel e sem dizer qualquer palavra, e um casal de jovens filandeses que se fazia acompanhar de dois guarda-chuvas alucinantes, um cor-de-rosa, outro azul-bebé. Como se não fosse já suficiente, o finlandês acordava de noite e piscava os dois olhos freneticamente enquanto erguia a cabeça, para depois voltar a adormecer. Insólitos sem dúvida eram também os lagos hiper-salgados que fomos encontrar em Baile Ocna Sibiului, assim como um pôr-do-sol no sul da cidade, com um rebanho de ovelhas, uma casa de banho em madeira no meio do campo verdejante e um tanque de guerra abandonado a completar o quadro...
Antes de partirmos para a improvável aventura de passar 8 dias a dormir onde calhasse, pois não voltaríamos a encontrar um couchsurfer para nos hospedar até ao final da viagem, couchsurfámos na bela e sossegada cidade de Pécs, na Hungria, cujas pequenas e agradáveis surpresas fizeram deixar no ar a sensação de obrigação de lá voltar um dia, além de terem servido como compensação da imagem negativa com que inicialmente ficáramos da Hungria após a anterior passagem pela capital Budapeste.
Paradoxalmente, ou até não, este período da nossa aventura SUDELESTE 2007 acabou por ser sem dúvida aquele que nos brindou com as experiências mais belas, intensas e marcantes de toda a viagem. Em primeiro lugar o magnífico pôr-do-sol que tivemos o prazer de assistir enquanto caminhávamos na auto-estrada em obras do leste da Eslovénia e a dormida num estádio de futebol em construção, também Eslovénia, embalados pelo som da chuva torrencial e inesperada. Uns dias depois vieram as duas noites passadas na praia da snob Nice. Na primeia juntámo-nos a um grupo de jovens turistas croatas, os quais partilharam connosco as bebidas que tinham, para depois partilhármos pensamentos, ideias e histórias de viagem. Já a noite ia bem longa quando o grupo de croatas se decidiu a voltar ao hotel, sem antes nos convidarem a segui-los, e portanto trouxeram-nos também para o hotel onde dormimos 2 horas e onde ainda recebemos um pequeno-almoço gratuito. A segunda noite passámos com um grupo de franceses que se despediam do seu amigo que emigraria no dia seguinte para a Irlanda, com festa na praia pela noite dentro até atingir a exaustão máxima. Inesquécivel foi também o dia relaxante que passámos no Mónaco, especialmente pelos agradáveis banhos de sol e de mar que lá disfrutámos e pela caminhada no percurso citadino do Grande Prémio de Fórmula 1 do Mónaco.
Acabada a diversão de Nice e Mónaco, fizemos uns quilómetros para trás, de regresso a Itália, Ventimiglia, onde muitos camionistas nos aconselharam a ir para encontrar boleia de regresso a Portugal. Não correu como esperado, mas com muita sorte e junto às portagens de uma auto-estrada, um alucinado camionista checo "pegou-nos" já noite escura e levou-nos até à Catalunha. Com ele visitámos o mítico parque de camiões La Junquera, um dos maiores da Europa. "Melhor" ainda foram as quase quatro horas perdidas à procura do local de descarga da sua mercadoria e o consequente e merecido banho ao final da noite nas águas tépidas e amenas do Mediterrâneo, em Arenys de Mar, ao qual o camionista checo não hesitou em se juntar. Os últimos dois dias da nossa aventura SUDELESTE 2007 ficaram marcados pelos 6 Km percorridos a pé na auto-estrada de Valencia para Madrid sob uma desgastante temperatura de 40ºC, sem a mínima sombra e com a mochila às costas, e também pelo comportamento ignominioso do caquéctico segurança privado da estação de autocarros de Valência que não permitia de forma alguma que os viajantes à espera dos seus autocarros (e com bilhetes já comprados) se deitassem ou se sentassem no chão para aliviar o peso que o relógio carregava (3 horas da manhã), e muito menos que se deitassem nos bancos, embora houvesse uma infindável quantidade de bancos vazios! Até fechar os olhos sentado num banco dava direito a severa reprimenda. Insanidade mental ou resquícios das ditaduras peninsulares, quem sabe... Pela positiva, o regresso a casa...
No próximo episódio: mais umas estórias desta viagem de loucos e TODOS os albúns de fotografia!
Luís Garcia, 12.02.2016, Lampang, Tailândia