Street Racing
HOLLYWOODICES - EPISÓDIO 2
Eu tenho visto tanta coisa nesse meu caminho, Nessa nossa trilha que eu não ando sozinho, Tenho visto tanta coisa tanta cena, Mais impactante do que qualquer filme de cinema. (Tás a ver?, Gabriel O Pensador)
STREET RACING (Turquia, 2008) – Depois de quase dois meses viajando na Turquia e Síria, o meu amigo Diogo e eu decidimos que era tempo de mudar de ares e rumar para um país culturalmente longe do Médio-Oriente. Queríamos enriquecer a viagem graças à diversidade. A primeira escolha era desde há muito a Geórgia, mas naquele pais continuava o cenário de guerra (entre os ataques geórgios às regiões da Abecásia e Ossétia do Sul patrocinados pelos EUA e levados a cabo com o apoio militar de Israel, e a resposta da Rússia em forma de bombardeamentos aéreos às forças armadas geórgias e aeroportos) e, segundo as notícias que lia de vez em quando na internet, o conflito não acabaria tão cedo. Solução: Ucrânia, um país separado da Turquia apenas pelo Mar Negro e ao mesmo tempo culturalmente longínquo. Era a opção perfeita. Tomámo-la quando ainda nos encontrávamos na região do Curdistão turco, no sudeste do país e, portanto, com suficiente tempo pela frente para coordenar a operação ucraniana.
Depressa concluímos que a solução mais rápida, mais barata e também mais exótica seria atravessar o Mar Negro de ferry, desde Sinop, cidade da costa norte turca, até Odessa, a maior cidade da costa ucraniana. Este serviço era supostamente oferecido por uma companhia turca com um sítio de internet em que se podia aceder à informação completa sobre a travessia: tempo de viagem, calendário, preçário, etc. Escolhemos uma data que nos convinha e organizámos a nossa viagem pelo coração da Turquia de forma a chegarmos a Sinop um dia antes de umas datas em que a companhia efectuava o percurso Sinop-Odessa. Poucos dias depois chegávamos a Sinop na data prevista, numa madrugada aconchegada por um sublime lençol de céu rosa suave estendendo-se em toda a volta. O mar estava tão calmo como um lago congelado. Ouvia-se um silêncio profundo à beira-mar, nem as gaivotas por hábito ruidosas se atreviam a interromper o idílico momento. Foi um momento único na viagem, como se aquele porto fosse um portal para uma intemporal realidade sem ponteiros de relógio, nem filas de trânsito, nem gente nascida já atrasada... Mau presságio...
Toda esta calma era prenúncio de um grande contratempo. Aquelas dormentes águas há um ano que não eram rasgadas por proas de ferrys, há um ano que a companhia tinha aberto falência por falta de clientes e, no meio do desastre financeiro, ninguém se tinha lembrado de encerrar o sítio internet da empresa. Nem sequer os nossos amigos turcos que nos ajudaram, aquando da pesquisa por ferries na internet, se aperceberam que a empresa já não existia.
A solução de recurso foi apanhar o primeiro autocarro a partir com destino a Istambul, onde mais tarde procuraríamos uma solução. Muitas horas depois e perdida há muito a paciência fruto das dezenas de paragens durante o percurso, chegámos com um atraso imenso em relação à hora prevista e, possivelmente, já demasiado tarde (20h30) para seguir viagem rumo à Europa de Leste. Bom, em contrapartida mimaram-nos bem ao nos oferecer gelados durante o percurso! O autocarro levou-nos até Istambul, mas convém precisar que esta cidade e seus subúrbios contêm pelo menos quinze milhões de habitantes, o mais caótico trânsito entre todas as metrópoles ocidentais e estendem-se este-oeste por uma distância de mais de cinquenta quilómetros. E como se não bastasse, tínhamos terminado a viagem numa mega-estação perdida no tempo, antiquada, desorganizada e situada – para nós – no lado errado de Istambul: leste, a parte asiática. Nós queríamos partir ainda naquela noite rumo ao ocidente, à Europa!
Durante cerca de meia hora andámos de guiché em guiché analisando os destinos internacionais apresentados pelas inúmeras companhias familiares de transporte rodoviário. Soluções não faltavam, encontrámos ligações para a Bulgária, Roménia, Moldávia e até para a Ucrânia. O problema é que quase nenhuma tinha partidas marcadas naquela noite para esses destinos E poucas que haviam apresentavam grandes problemas: exigiam no geral preços absurdos, demasiadas paragens e tempos de espera nas trocas de autocarros tão longas que, segundo as nossas contas, se esperássemos ali um dia por um outro autocarro directo ao destino chegaríamos várias horas mais cedo à Ucrânia. E estava fora de questão pernoitar naquela imunda e caótica estação de autocarros!
No desespero, lembrámo-nos de ir à net procurar por comboios. Numa das janelas do edíficio principal avistámos um placa com a inscrição “cyber-café”. A entrada era do outro lado. Demos a volta apressadamente, entrámos e pedimos um computador com internet. O empregado de serviço informou-nos, meio envergonhado, que o sistema tinha avariadado e que só teria internet no dia seguinte! Muito simpático, o jovem indicou-nos um outro cyber-café aberto. A meio caminho entre os dois descobrimos uma restaurante de comida rápida turca e um cartaz com a informação “Tavuk Döner – 1lt”! Ah, um kebab com bom aspecto custando apenas 1 lira (0,50€)! É que os dois estômagos ambulantes resmungando durante aquele tempo todo, de tão focados que estávamos em com encontrar transportes, ainda não tinham de nós recebido uma única refeição quente! Pois claro, não resistimos! Esfomeados e apressados, limpámos num instante os kebabs (que eram deliciosos) e saímos com destino ao cyber-café. Ai abrimos a página dos caminhos de ferro turcos, esperançosos que houvesse naquela noite um comboio que partisse com destino à Roménia ou, pelo menos, até a Bulgária. Caso encontrássemos um comboio garantíamos um lugar onde dormir naquela noite e, acima de tudo, não atrasávamos mais o nosso plano de viagem. Para nosso espanto havia um, que partia às 22 horas da estação central de Istambul situada no lado europeu! Eram 21h13m!
A missão mostrava-se quase impossível de realizar, sobretudo para dois estrangeiros sem a noção (na altura) do quão longe se encontravam da central ferroviária. Por outro lado, não tínhamos rigorosamente nada a perder. Tínhamos decidido que naquela horrível e fedorenta estação de autocarros é que não ficaríamos de certeza e como tal teríamos de nos deslocar até ao centro de Instambul (no lado europeu) onde telefonaríamos a uma amiga turca para nos hospedar caso não apanhássemos nenhum transporte naquela noite. Além do mais, em última instância, por que se viaja, por que razão aventuramo-nos nós, por que partimos às cegas por esse mundo fora? Para desfrutar de momentos irrepetíveis, descobrir os limites da sorte, sentir adrenalina uma vez por outra, não? Ahhh, às 21h15m decidimos tentar a nossa sorte e corremos dali para fora em busca da entrada do metro que tínhamos descoberto por acaso enquanto comíamos os kebabs uns minutos antes.
Olhando freneticamente o mapa com as linhas de metro e de tram da cidade e tentámos desvendar a forma de Istambul naquelas linhas estilizadas. Com a vital ajuda de reminiscências de alguns nomes de estações de tram onde semanas antes nos passeáramos, acabámos por descobrir a solução perfeita mesmo a tempo de apanhar um metro que chegava no momento à estação. Tínhamos, muito simplesmente, de seguir naquele metro até a estação terminal da linha e aí apanhar um tram da linha do centro histórico (que nós conhecíamos bem) até a estação central de comboio (da qual também nos lembrávamos muito bem). Único senão: eram 21h18m e não tínhamos a mínima ideia do tempo que levaria a chegar a estação terminal da linha que atravessávamos. 15 minutos? Uma hora? A melhor estimativa que podíamos produzir era contar o tempo médio gasto entre cada estação e multiplicá-lo pelo número de estações restantes. As primeiras estações (de subúrbios) encontravam-se (logicamente) muito distantes umas das outras, levando-nos a prever uma tempo total de viagem de mais ou menos 40 minutos e portanto estava perdido o comboio. Mas não, as últimas estações apareceram abruptamente, umas atrás das outras, e às 21h41m chegámos eufóricos à estação terminal.
Se tivéssemos a sorte de apanhar logo de seguida um tram, ainda era possível chegar mesmo a tempo para apanhar o comboio das 22h. Para nosso choque, a linha de tram estava, imaginem: fechada para obras! Do oitenta ao oito em poucos segundos, ficámos desolados. Olhando a linha de táxis à nossa frente corremos para o mais próximo deles e perguntámos ao condutor num turco super inventado se nos podia pôr na estação antes das 22h. Ele respondeu que “tudo é possível” e mandou-nos entrar. Arrancámos às 21h43m eufóricos! De novo, passávamos do oito ao oitenta, vibrando de adrenalina com a alucinante condução do taxista ziguezagueando entre uma míriade de carros s velocidades de 120 a 150 km/h, passando muitas vezes a escassos centímetros de outros veículos sem o mínimo sinal de nervosismo ou hesitação! Um verdadeiro piloto de Fórmula 1 em potência! Enquanto nos íamos aproximando da estação puz-me a contar as últimas liras turcas que tínhamos em moedas e, para meu desencanto, quando acabei de as contar, o taxímetro estava prestes a indicar um valor semelhante, faltando ainda uma boa distância a percorrer. Avisei o taxista que se não queria perder dinheiro, teria de parar o carro dali a pouco pois não tínhamos liras suficientes para pagar a totalidade do percurso. O taxista respondeu-me perguntando o valor que eu tinha na mão, a que eu prontamente retorqui. Sorrindo, disse-nos: “Tudo bem, eu levo-os, agora temos de levar esta aventura até ao fim! E eu quero ver se consigo lá chegar antes das 22h!” Ah, que maluco, e como ficámos felizes com a sua aventureira empatia! Às 21h56 o taxista estaciona em frente da estação central de comboios, quase partindo com as nossas malas na bagagem não fosse nós termos corrido atrás e batido no capô logo ao arranque.
Recuperadas as malas e colocadas estas às costas, corremos desenfreadamente até à zona de guichés onde chegámos já quase sem fôlego às 21h58m. Um velhinho, muito simpático e com ares de quem ainda não se terá adaptado às modernisses electrónicas avisou-nos com honestidade que: “Com o tempo que eu vou levar a tirar os bilhetes, quando vos os der já o comboio terá partido. O melhor é correrem para não perderem o comboio. Quanto aos bilhetes, tentem resolver isso no comboio.” Naquele momento a minha reacção mental foi pensar que os bilhetes deveriam ser comprados no guiché onde poderíamos pagar com cartão, uma vez que já não tínhamos um cêntimo sequer em liras turcas, e não num comboio! Contudo, dado o tempo restante, as alternativas eram nulas. Seguimos o conselho do senhor e corremos mais uns bons metros até junto do comboio com destino à Roménia.
Eram 21h59m. Acercámo-nos de um funcionário da estação parado em frente a uma porta do comboio conversando com alguém dentro do vagão e pedimos para entrar sem bilhete, explicando que por falta de tempo compraríamos os bilhetes dentro do comboio. O senhor, muito rude e falando apenas em turco, garantia-nos que sem bilhete não entraríamos no comboio. Enquanto insistíamos inútilmente em convencê-lo, apercebi-me que aquele outro senhor à porta do vagão com quem conversava antes o funcionário rude, estava agora falando em romeno com alguém atrás dele. Interrompi-lhes bruscamente a conversa e pedi-lhe ajuda no meu fraco romeno que, embora muito básico, era superior ao meu quase nulo turco. O comboio começava a movimentar-se lentamente. Expliquei-lhe o mais depressa possível o nosso problema enquanto eu e o Diogo caminhávamos ao ritmo do comboio. Quando o comboio começou a aumentar a velocidade ele finalmente gritou para o funcionário rude que nós entraríamos e convidou-nos a embarcar! Assim fizemos!
O relato desta aventura de comboio contínua na estória seguinte: De vagão em vagão.
Luís Garcia, 05.10.2015, Lampang, Tailândia
Nota – Os tempos precisos aqui descritos são verídicos pois eu e o meu colega de viagem controlámos minuto a minuto aventura, quer pela ansiedade de perceber se chegaríamos a tempo, quer pelo facto de logo no início da aventura (às 21h13m) nos termos apercebido que mesmo não apanhando o comboio teríamos ali uma bela estória para contar aos netos. Tão intensa foi aventura que ainda hoje, passados 7 anos, ainda me lembro de uma boa parte dos tempos sem recorrer ao diário de viagem.
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