Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Pensamentos Nómadas

Nomadic Thoughts - Pensées Nomades - Кочевые Мысли - الأفكار البدوية - 游牧理念

Pensamentos Nómadas

Nomadic Thoughts - Pensées Nomades - Кочевые Мысли - الأفكار البدوية - 游牧理念

Síria e Afeganistão: duas realidades distintas, por André Vltchek

08.01.19 | Luís Garcia

001 camada dupla - black circle.jpg

 

Andre Vltchek Política Sociedade  

 

SYA1

Duas horríveis guerras, dois cenários de imensa destruição, mas dois resultados completamente opostos.

 

Na Síria, até pode ser Outono agora, mas quase todo o país floresce uma vez mais, levantando-se literalmente das cinzas. Duas mil milhas a leste, o Afeganistão é esmagado contra os seus velhos rochedos, sangrando de rastos. Por lá, não importa realmente que estação é; a vida é simplesmente terrível e a esperança parece estar sempre em permanente exílio.

 

Damasco, a antiga e esplêndida capital da Síria, agora a República Árabe Síria, está de volta à vida. As pessoas saem até tarde, há eventos, há música, há vida social vibrante. Nem todos, mas muitos sorriem de novo. Diminuiu o número de postos de controlo e, agora, já nem sequer é preciso passar pelos detectores de metais para entrar em museus, em cafés e nalguns dos hotéis internacionais.

 

Os habitantes de Damasco estão optimistas, alguns mesmo estão extasiados. Lutaram duramente, perderam centenas de milhares de homens, mulheres e crianças, mas ganharam! Finalmente ganharam, contra todas as probabilidades, apoiados pelos seus verdadeiros amigos e camaradas. Orgulham-se do que alcançaram, e com toda a razão!

 

Humilhado em tantas ocasiões, durante tanto tempo, o povo árabe por fim levantou-se e demonstrou ao mundo e a si mesmo que pode derrotar invasores, por mais poderosos que estes sejam, por mais astutas e revoltantes que sejam as suas tácticas. Como escrevi anteriormente, e em várias ocasiões, Aleppo é a "Estalinegrado do Médio Oriente". É um poderoso símbolo. Nela foram travados o fascismo e o imperialismo. Sem surpresa, e devido à sua resistência, coragem e aptidão, o centro do pan-arabismo (a Síria) volta a ser, uma vez mais, o país mais relevante para os povos da região que amam a liberdade. 

 

A Síria tem muitos amigos, entre eles a China, o Irão, Cuba e a Venezuela. Mas o mais determinado entre eles, o mais confiável, continua a ser a Rússia.

 

Os Russos mantiveram-se firmes ao lado do seu histórico aliado, mesmo quando as coisas iam de mal a pior, quando quase não havia esperança, mesmo quando os terroristas treinados e trazidos para a Síria pelo Ocidente, Arábia saudita, Catar e Turquia iam arrasando por completo antigas cidades e quando milhões de refugiados fugiam do país através de todos os sete portões de Damasco, e de todas as grandes cidades, e ainda de outras cidades e aldeias.

 

Os russos trabalharam no duro, muitas vezes "nos bastidores". Trabalharam na frente diplomática, mas também nas linhas da frente, fornecendo apoio aéreo essencial, desminando bairros inteiros, ajudando com suprimentos alimentares, logística, estratégia. Morreram russos na Síria, não sabemos os números exactos, mas houve sem dúvida baixas. Alguns falam inclusive de baixas "substanciais". No entanto, a Rússia nunca ondeou a sua bandeira, nunca bateu no peito em gestos de auto-felicitação. O que tinha de ser feito, foi feito, como um dever internacionalista; de forma silenciosa, orgulhosa e com grande coragem e determinação.

 

O povo sírio sabe tudo isso; os sírios compreendem e agradecem. Para ambas as nações, as palavras não são necessárias; pelo menos por agora. A sua profunda aliança fraterna é inquebrável. Juntos, lutaram contra as trevas, contra o terror e contra o neocolonialismo. E ganharam.

 

Quando os comboios militares russos passam por estradas sírias, não é preciso controlo de segurança. Param em restaurantes locais para se refrescar; falam com os locais. Quando russos percorrem cidades sírias, não sentem medo. Não são vistos nem tratados como uma "força militar estrangeira". Eles fazem agora parte da Síria. Fazem parte da família. Os sírios fazem-nos sentir-se em casa.

*

Em Cabul encontro sempre muros. Só muros à minha volta; paredes de cimento e arame farpado.

 

Alguns muros atingem a altura de 4 ou 5 andares, com torres de observação em cada esquina, equipadas com vidros à prova de bala.

 

Os locais, os pedestres, parecem sonâmbulos. Resignaram-se. Habituaram-se aos canos de armas apontados às suas cabeças, peitos, pés e até aos seus filhos.

 

Quase todos aqui se mostram indignados com a ocupação, mas ninguém sabe o que fazer ou como resistir. As forças de invasão da NATO são atrozes e avassaladoras; os seus comandantes e soldados são frios, calculistas e impiedosos, obcecados em se proteger somente a si mesmos.

 

Comboios militares britânicos e norte-americanos, fortemente blindados, estão sempre prontos para atirar em "qualquer coisa que se mova", nem que se mova de uma forma vagamente hostil.

 

Afegãos são mortos, quase todos "cirurgicamente" ou "remotamente". As vidas ocidentais são "demasiado preciosas" para que haja um combate honesto de homem para homem. A carnificina é realizada com o recurso a drones, a "bombas inteligentes" ou disparando a partir daqueles monstruosos veículos que atravessam as cidades afegãs e o interior. 

 

Nesta ultrajante ocupação, não importa quantos civis afegãos são mortos, desde que as vidas de norte-americanos e europeus sejam poupadas. A maioria dos soldados ocidentais destacados no Afeganistão são profissionais. Não estão a defender o seu país. São pagos para fazer "o seu trabalho", de forma eficiente, ao preço que for preciso. E, claro, "segurança em primeiro lugar". Segurança para eles próprios.

 

Desde que o Ocidente ocupou o Afeganistão em 2001, entre 100.000 e 170.000 civis afegãos foram mortos. Milhões foram forçados a deixar o seu país como refugiados. O Afeganistão é agora detentor do segundo lugar (depois do Iémene) asiático mais baixo na lista de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, compilado pelo PNUD). A sua esperança média de vida é a mais baixa da Ásia (OMS).

*

Eu trabalho quer na Síria quer no Afeganistão, e considero ser meu dever apontar as diferenças entre estes dois países e estas duas guerras.

 

Ambos foram atacados pelo Ocidente. Um resistiu e ganhou, o outro foi ocupado, sobretudo por forças norte-americanas e europeias e, consequentemente, foi destruído.

 

Depois de ter trabalhado em cerca de 160 países e depois de cobrir e testemunhar inúmeras guerras e conflitos (a maioria deles instigadas ou provocadas pelo Ocidente e seus aliados), consigo claramente ver o padrão: quase todos os países que caíram na "esfera de influência ocidental" encontram-se em ruínas, saqueados e destruídos; enfrentam grandes disparidades entre o diminuto número de membros das "elites" (indivíduos que colaboram com o Ocidente) e a grande maioria daqueles que vivem na pobreza. A maioria dos países com laços estreitos com a Rússia ou com a China (ou com ambos), prosperam e estão se desenvolvendo, e desfrutam de auto-governação e respeito pelas suas culturas, pelos seus sistemas políticos e pelas suas estruturas económicas.

 

Apenas por causa dos meios de comunicação social corporativos e dos sistemas de educação tendenciosos, assim como pela orientação quase totalmente pró-ocidental dos "meios de comunicação sociais", é que estes chocantes contrastes entre os dois blocos (sim, temos de novo dois grandes blocos de países) não são destacados e discutidos de forma sistemática.

*

Durante a minha recente visita à Síria falei com muitos habitantes de Damasco, Homs e Ein Tarma.

 

O que eu testemunhei pode facilmente ser descrito como "alegria por entre lágrimas". O preço da vitória foi duro. Mas ainda assim é alegria que encontro. A união entre o povo sírio e o seu governo é óbvia e notável.

 

A raiva contra os "rebeldes" e contra o Ocidente é omnipresente. Em breve descreverei a situação nos meus próximos artigos. Mas, por agora , apenas queria comparar a situação em duas cidades, em dois países e em duas guerras.

 

Em Damasco, apetece-me voltar a escrever poesia. Em Cabul, só sinto inspiração para escrever um longo e deprimente obituário.

 

Amo estas duas antigas cidades, mas claro que as amo de forma diferente.

 

Falando de forma franca, nestes 18 anos de ocupação Ocidental, Cabul foi convertida num militarizado, fragmentado e colonizado inferno sobre a terra. Toda a gente o sabe: os pobres sabem e o governo também o sabe.

 

SYA2

 

Em Cabul, bairros inteiros já "desistiram". São habitados por indivíduos que são forçados a viver em sarjetas ou debaixo de pontes. Muitas dessas pessoas encontram-se pedradas, viciadas em narcóticos de produção local, produção essa que é apoiada pelos exércitos de ocupação ocidentais. Vi e fotografei uma base militar dos EUA rodeada de plantações de papoilas. Ouvi testemunhos de pessoas locais sobre militares britânicos envolvidos em negociações e cooperando com as narco-máfias locais.

 

Entretanto, as embaixadas ocidentais, as ONGs e as "organizações internacionais" que operam no Afeganistão, conseguiram corromper intelectual e moralmente, assim como doutrinar, um substancial percentagem das pessoas locais que, agora, recebem bolsas de estudo e "formações" na Europa, e que apoiam a retórica oficial dos seus ocupantes.

 

Estes trabalham dia e noite para legitimar o pesadelo em que o seu país foi metido.

 

Mas as pessoas mais velhas que ainda se lembram tanto da era soviética quanto do Afeganistão socialista, são predominantemente "pró-russos", lamentando, frustrados, aqueles dias de libertação afegã, de progresso e de determinada construção da nação. Fábricas de pão "soviéticas", canais de água, oleodutos, torres de alta-tensão e escolas ainda hoje são usadas por todo o país. Enquanto que, a igualdade de género, o secularismo e a luta anti-feudal daqueles dias são agora, durante a ocupação ocidental, de facto ilegais.

 

Os afegãos são conhecidos por serem pessoas orgulhosas e determinadas. Mas o seu orgulho foi destruído, enquanto a sua determinação foi afogada num mar de pessimismo e de depressão. A ocupação ocidental não trouxe paz, nem prosperidade, nem independência democrática (se a democracia for entendida no sentido de  "governação do povo").

 

Hoje em dia, o maior sonho de um jovem ou de uma jovem em Cabul, é o de servir os ocupantes. Ser "educado" numa escola de estilo ocidental e conseguir emprego numa embaixada dos EUA ou numa das agências da ONU.

*

Em Damasco, todos falam agora da reconstrução da nação.

 

"Como e quando os bairros danificados serão reconstruidos? A construção pré-guerra do metro recomeçará em breve? A vida vai ser melhor do que antes?"

 

As pessoas já não podem esperar mais. Testemunhei famílias e comunidades restaurando os seus próprios edifícios, casas e ruas.

 

Sim, em Damasco, vi verdadeiro optimismo revolucionário em acção, optimismo como aquele que descrevi no meu recente livro Revolutionary Optimism, Western Nihilism. Porque o próprio estado sírio é agora e de novo cada vez mais revolucionário. A chamada "oposição" não tem sido mais do que uma rebelião patrocinada pelo Ocidente; uma tentativa de levar a Síria de volta aos dias negros do colonialismo.

 

Damasco e o governo sírio não precisam de gigantes muralhas nem de enormes dirigíveis de espionagem levitando no céu; não precisam de veículos blindados em cada esquina nem de omnipresentes SUVs com mortíferas metralhadoras .

 

Por outro lado, os ocupantes de Cabul precisam de todos esses mortíferos símbolos de poder para manterem o controlo. Ainda assim, assustar as pessoas, como fazem, não servirá para convencê-as a apoiá-los ou a amá-los.

 

Em Damasco, eu simplesmente caminhei até ao escritório do meu colega romancista, que por acaso é o Ministro da Educação Sírio. Em Cabul, muitas vezes tenho de passar por detectores de metal mesmo quando só quero visitar uma casa de banho.

 

Em Damasco há esperança e vida em cada esquina. Os cafés estão cheios, as pessoas falam, discutem, riem juntas e fumam narguilé. Museus e bibliotecas estão também repletos de pessoas. A Casa de Ópera está em funcionamento; o jardim zoológico floresce, apesar da guerra, apesar de todas as dificuldades.

 

Em Cabul, a vida parou. Excepto para o tráfego e para os mercados tradicionais. Mesmo o Museu Nacional é agora uma fortaleza e, em resultado disso, não há quase ninguém que o visite.

 

As pessoas em Damasco não estão muito familiarizadas com o que se passa em Cabul. Mas sabem imenso também sobre Bagdade, Tripoli e Gaza. E preferem morrer a deixar-se ocupar pelo Ocidente ou pelos seus agentes.

 

Duas guerras, dois destinos, duas cidades completamente distintas.

 

As sete portas de Damasco abrem-se por completo. Os refugiados regressam, vindos de todas as direcções, de todos os cantos do mundo. É tempo de reconciliação, de reconstrução da nação, de tornar a Síria ainda mais grandiosa do que era antes do conflito.

 

Cabul, muitas vezes abalada por explosões, é dividida por horríveis muros. Os motores dos helicópteros rugem nos céus. Dirigíveis com os seus olhos mortais monitorizando tudo o que se passa ao nível do solo. Drones, tanques, enormes veículos blindados. Mendigos, sem-abrigo, favelas. Uma enorme bandeira afegã ondeando sobre Cabul. Uma "bandeira modificada", não a mesma do passado socialista.

 

Na Síria, finalmente, a nação unida conseguiu derrotar o imperialismo, o fanatismo e o sectarismo.

 

No Afeganistão, a nação foi dividida, depois humilhada, depois despojada da sua antiga glória.

 

Damasco pertence ao seu povo. Em Cabul, as pessoas são como anões perante muros de cimento e bases militares erguidas pelos invasores estrangeiros.

 

Em Damasco, as pessoas lutaram e morreram até, pelo seu país e pela sua cidade.

 

Em Cabul, as pessoas não se atrevem sequer a  falar de luta pela liberdade.

 

Damasco ganhou. É de novo livre.

 

Cabul vencerá também. Talvez não hoje, não este ano, mas vencerá. Acredito que sim.

 

Adoro ambas as cidades. Mas um está agora celebrando, enquanto a outra ainda está sofrendo uma inimaginável dor.

 

André Vltchek, 03 de Janeiro de 2019

 

Traduzido para o português por Luís Garcia

Versão original em inglês aqui.

 

Por Lula, de Andre Vltchek

André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são  Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.

 

Fotos de André Vltchek.

 

 

 

 

Vá lá, siga-nos no Facebook! :)
visite-nos em: PensamentosNómadas