Síria: a indústria de direitos humanos na "guerra humanitária" (6/7), por Tim Anderson
Parte 6/7
4. Agências encomendadas à medida: "The Syria Campaign" e "The White Helmets"
Várias agências criadas por encomenda, foram quase sempre montadas e financiadas por governos ocidentais, para atender especificamente às necessidades das suas "narrativas de guerra" sobre o conflito sírio. Esta secção não fará uma documentação exaustiva de todas essas agências. Em vez disso, demonstrará o nível de envolvimento de duas dessas agências, a The Syria Campaign e os The White Helmets, fornecendo provas de como estas enganaram o público de forma sistemática.
A The Syria Campaign é uma agência de Wall Street (Nova Iorque) criada para executar uma campanha online de "narrativa de guerra" com atraentes vídeos e gráficos. A sua especialidade é o marketing. As principais mensagens são as de que o governo sírio é de longe o pior agressor de direitos humanos e que a grande maioria dos refugiados sírios foge do exército sírio e do presidente Assad. Os seus dados, uma vez mais, provêm de agências tendenciosas, sobretudo o OSDH e o SNHR (TSC 2017). Mensagens construídas em torno deste discurso têm sido amplamente difundidas pelos media ocidentais (por exemplo, Naylor 2015).
Figura 6: As belas montagens de dados inúteis da 'The Syria Campaign’
A The Syria Campaign (TSC) foi criada por pessoas ligadas à Avaaz, através de uma empresa-mãe chamada "Purpose". Este organização de Nova Iorque acrescenta alguma credibilidade "síria" à sua retórica usando as suas ligações a alguns "activistas" jiadistas como o fotógrafo Khaled Khatib (Morningstar 2015). Usando fundos de grupos de Soros, a TSC posiciona-se contra a Síria e é, desde o início, pró-mudança de regime. Em Junho de 2014, a TSC tentou impedir o Facebook de hospedar a página da campanha eleitoral presidencial de Bashar al-Assad (Rushe e Jalabi 2014). A Avaaz, a The Syria Campaign e os The White Helmets compartilharam campanhas para uma "zona de exclusão aérea" ao estilo da que houve na Líbia, fazendo muitas vezes estranhas alegações. Sem qualquer prova credível, a Avaaz alegou que "mulheres na Síria estão sendo forçadas a permanecer à frente de tanques e agir como escudos-humanos, para depois serem despidas e violadas por soldados" (Avaaz 2013). Tudo isto enquanto islamistas sectários se gabavam abertamente de sequestrar e violar mulheres e meninas sírias, apoiando os seus crimes em fátuas emitidas pelos seus pseudo-religiosos líderes (Chumley 2013).
A TSC tem activamente trabalhado na reciclagem de fotos de guerra. Em Agosto de 2015, a Avaaz e a TSC publicaram fotos de corpos de crianças mortas por entre escombros de edifícios, alegando que teriam sido vítimas de ataques do governo sírio numa zona controlada pela Frente Islâmica em Guta (zona rural de Damasco) em 2015. Essa mesma foto tinha sido usada, um ano antes, para ilustrar uma reportagem sobre o massacre realizado pelo ISIS em Deir-ez-Zor, onde mataram 700 pessoas membros de tribos locais (Chronicle 2014). Andando ainda mais para trás no tempo, a mesma foto, em Março de 2014, havia sido reivindicada pela Getty Images e pelo fotógrafo Khaled Khatib, apresentada como uma foto retratando crianças vítimas de anterior ataques com "barris-bomba" em Aleppo (Getty Images 2014). Khatib é descrito como um "activista" que opera em áreas ocupadas por grupos armados do Exército de Libertação Sírio, e membro da "Syrian Civil Defence" de Aleppo, nome como também são conhecidos os The White Helmets (al-Khatib 2015; Laughland 2015).
Numa tentativa de provar que os milhões de refugiados de guerra sírios estariam, na sua maior parte, fugindo do governo sírio, a TSC (2015a) encomendou uma sondagem na Alemanha. Nessa sondagem, 889 refugiados sírios terão sido entrevistados em Berlim, Hanôver, Bremen, Leipzig e Eisenhüttenstadt. Os entrevistados "foram abordados ao entrar ou ao sair dos centros de registo". No entanto, a pesquisa não especifica como foi feita a escolha das amostras, nem fornece o erro amostral (TSC 2015b). Onde não há uma clara declaração do método de recolha de amostras, e onde nem sequer é calculado o erro amostral, não há base nenhuma para afirmar que a pesquisa represente uma mais ampla população. Na prática, os resultados são inúteis, excepto como exemplo de anedota.
A nota na capa desta sondagem, o título e os gráficos destacam a alegação de que "70% dos refugiados estão fugindo de Assad" (TSC 2015a). Esta é uma errada caracterização da pesquisa visto que, no seu questionário, nem sequer é mencionado o nome "Assad" (TSC 2015b). Em segundo lugar, o somatório daqueles que os refugiados temem não totaliza 100%. Ou seja, os entrevistados poderiam concordar com várias opções. Ainda assim, as três questões relevantes parecem ser a número 9 ("Quem foi responsável pelos combates?"), a número 14 ("Por quem receava ser preso ou sequestrado?") e a número 18 ("Qual foi o motivo principal que o levou a sair da Síria?"). Nas questões 9 e 14, havia várias opções e, portanto, os resultados são muito superiores a 100% (TSC 2015b; ver também Anderson 2016c). Em resposta à pergunta 9, 70% identificaram o "exército sírio e os grupos aliados" como "responsáveis pelos combates". No entanto, 82% também identificaram outros grupos armados (ISIS, al-Nusra, FSA, YPG e outros rebeldes). Removendo o YPG curdo, que até então lutava, no geral, contra o terrorismo em coordenação com o exército sírio, o total é de 74% para os grupos armados anti-governo. Em resposta à questão 14, 77% disseram que temiam ser "presos ou sequestrados por" o "exército sírio e grupos seus aliados". No entanto, o total combinado dos grupos anti-governo temidos [pelos civis questionados] é de 82% e, se somarmos o YPG, 90%. As respostas a ambas as perguntas sugerem que os entrevistados temiam os grupos armados anti-governo mais do que temiam o exército sírio. Mas isto é o preciso contrário da impressão transmitida pelos tais 70% ... fugindo de Assad. No entanto, a maior parte dos jornalistas publicou este comunicado de imprensa da TSC. A Deutsche Welle, por exemplo, afirmou que: "A pesquisa não deixa dúvidas: os sírios estão fugindo de Assad" (Fuchs 2015).
Figura 7: A sondagem da 'The Syria Campaign’ prova o contrário do que diz o seu título
Mais, a pesquisa do TSC foi muitíssimo pouco representativa. Os sírios entrevistados na Alemanha eram na sua maioria homens jovens, quase todos provenientes de zonas controladas por jiadistas. Mulheres e crianças quase não existem nesta pesquisa. A pesquisa afirma que 74% vinham de zonas pertencentes a grupos armados anti-governamentais e 68% eram homens jovens. E quase ninguém de áreas controladas pelo governo, como Tartus, Lataquia ou Sueida. E Damasco foi gravemente sub-representado (TSC 2015b; Anderson 2016c) (Figura 7). Em resumo, a pesquisa da TSC não demonstrou que a maioria dos refugiados estaria "fugindo de Assad". Pelo contrário, e apesar do seu cariz claramente tendencioso, esta sondagem sugere que os indivíduos da amostra teriam mais medo dos grupos armados anti-governamentais [do que das forças governamentais].
Os The White Helmets (TWH) são um grupo famoso pelos seus vídeos auto-promocionais e pelas fotos de membros seus saindo a correr de cenários de bombardeamento com crianças nos braços. Em 2016, estes alegaram ter resgatado "70.000 pessoas" de ataques à bomba do governo sírio (RT 2016). No entanto, os seus vídeos omitem o facto de que existe uma verdadeira defesa civil síria (com ligações ao corpo de bombeiros, que usa capacetes vermelhos) que serve quase todo o país (Beeley, 2017a). Este "usurpador" ["cuckoo"] criado pelo ocidente é um assistente de jiadismo [jihadist auxiliary], fundado pelo ex-soldado-mercenário britânico James le Mesurier, e exclusivamente presente em áreas controladas pela al-Qaeda no oeste da Síria (Webb 2017). Inicialmente, o grupo escondeu as suas fontes de financiamento mas, em 2015-2016, foi revelado que a maior parte [desse financiamento] era proveniente da USAID e do governo britânico (Beeley 2015c; Beeley 2016a). Apesar de alegar independência e motivações humanitárias, um relatório de 2017 informava que contavam com cerca de 120 milhões de dólares em fundos de governos ocidentais. De 2014 a 2017, receberam pelo menos 23 milhões de dólares do governo dos EUA, 80 milhões de dólares do governo do Reino Unido e mais de 16 milhões de dólares de governos da UE: Holanda, Dinamarca e Alemanha (2CW 2017), os mesmos governos que armaram grupos jiadistas.
Vários associados dos The White Helmets na Síria (Mosab Obeidat, Khaled Diab e Farouq al Habib) têm estreitas ligações a grupos armados e seus financiadores. Obeidat trabalhou para o Crescente Vermelho do Catar durante alguns anos, e depois "no Departamento de Estado dos EUA na Jordânia" (MayDay Rescue 2015). Diab trabalhou também no Crescente Vermelho do Catar, onde foi acusado de fornecer cerca de 2,2 milhões de dólares a grupos terroristas na Síria (Cartalucci 2013). Habib era membro do "Conselho Revolucionário de Homs" (Beeley 2015c). Os TWH compartilham com a HRW a mesma estória de que os "barris-bomba de Assad (...) são a maior ameaça para os sírios" (Roth 2015a).
Os TWH estão também profundamente envolvidos nos esquemas de reciclagem de fotos de guerra. Imediatamente após o início do apoio aéreo russo ao exército sírio, a 30 de Setembro de 2015, os The White Helmets publicaram uma foto na sua conta Twitter mostrando uma menina sangrando, alegando que esta teria sido ferida durante um ataque aéreo russo. Media russos provaram de imediato ser falsa esta alegação, visto que a foto havia sido publicada, pela primeira vez, cinco dias antes [do início] dos ataques aéreos [russos] (Sputnik 2015). Ao longo de 2016, vídeos e fotografias apareceram mostrando homens vestidos com uniformes dos The White Helmets, não somente aparecendo por entre jiadistas ou ajudando grupos jiadistas (incluindo na tortura e execução de soldados e civis sírios), mas também trocando os seus uniformes de socorristas por emblemas e armas de grupos armados. Ou seja, os combatentes armados eram eles mesmos membros dos The White Helmets. Existem hoje em dia compilações de muitas dezenas de fotos do género (por exemplo, COS 2017; SWB 2017). Um vídeo de auto-promoção dos The White Helmets, supostamente mostrando tentativas de salvamento de um bebé, foi denunciado pelos Médicos Suecos para os Direitos Humanos como mostrando "negligência médica e manipulação indevida de crianças para fins propagandistas" (Ferrada de Noli 2017).
Estas trocas de fotos enganaram agências da ONU. Em 19 de Agosto de 2015, os TWH publicaram uma foto de um prédio danificado em Aleppo, afirmando que "chegados ao local da explosão (...) cerca de uma dúzia de barris-bomba haviam destruído um edifício inteiro". As palavras e a foto foram adoptadas e republicadas pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (UNOCHA 2015; veja a figura 8). No entanto, essa foto foi publicada 28 meses antes, atribuída ao Aleppo Media Center (CSM 2013), com ligações ao jiadismo. Esta AMC, por sua vez, é financiada por um grupo sírio exilado em Washington, o SEO, e pelo governo francês (Beeley 2016b). A fiabilidade da foto-estória de 2013 é também duvidosa. Ainda assim, sabemos que (1), a foto-estória de 2015 foi desonestamente reciclada pelos The White Helmets e que (2), essa fabricação foi (provavelmente de forma involuntária) adoptada e propagada por uma agência da ONU.
Figura 8: White Helmets reciclando fotografias republicadas por uma agência da ONU
Se ainda havia dúvidas sobre as suas partidárias e jiadistas credenciais, o líder da al-Qaeda no oeste da Síria, Abu Jaber al Sheikh, elogiou os TWH como sendo "os soldados ocultos da revolução" (Vino 2017). Depois que a parte oriental da cidade de Aleppo foi libertada e que quase 100.000 civis dali saíram, vários jornalistas sírios, iranianos, russos e outros independentes vieram os questionar acerca das suas experiências. Ex-moradores do leste de Aleppo (sob ocupação) apelidavam-nos de "defesa civil da Frente al-Nusra [al-Qaeda]", afirmando que os TWH trabalhavam em conjunto com os grupos armados e raramente davam assistência a pessoas comuns (Beeley, 2017c). Por volta de Maio/Junho de 2017, os The White Helmets foram filmados participando em execuções em Aleppo e em Daraa e, no último caso, desfilando com cabeças decepadas e corpos desmembrados que depois depositaram num monte de lixo (Live Leak 2015; O'Connor 2017; Beeley 2017b).
Os The White Helmets participaram também na recolha de amostras no local do incidente com armas químicas em Idlib (Khan Shaykhoun) para a OPAQ, uma agência da ONU na Turquia. A Síria e a Rússia argumentam que o objectivo era culpar a Força Aérea Síria pelo ataque. Esta estória foi apoiada pela Casa Branca e as suas agências incorporadas, como a Bellingcat, mas foi rejeitada pelos especialistas independentes norte-americanos Ted Postol e Scott Ritter. Postol, um consultor forense do Pentágono, disse que qualquer que tenha sido o produto químico usado, este não veio do ar; foi detonado a partir do solo (Postol 2017). O ex-inspector de armamento dos EUA, Scott Ritter, disse que a intervenção dos partidários The White Helmets destruiu a integridade da cadeia de comando das amostras de tecidos, de modo que a OPAQ não estava então em posição de julgar de onde teriam vindo [as amostras] (Ritter 2017). O professor Paul McKeigue, examinando o relatório OPAQ/JIM da ONU, rejeitou o sugerido exercício de "impressão digital” de sarin (que visava ligar os estoques de sarin da Síria, destruídos em 2014, com as amostras fornecidas pelos jiadistas em Idlib). McKeigue concluiu também que os Estados Unidos forneceram dados sobre a trajetória de voo das aeronaves sírias como “incompatíveis” com a estória do ataque aéreo (McKeigue 2017). Os The White Helmets enganaram a OPAQ, assim como enganaram o UNOCHA. Insisto, estes grupos são tendenciosos e são pagos para isso.
Considerações finais
A "guerra humanitária" tem uma longa história colonial e neocolonial, mas hoje em dia requer fortes campanhas ideológicas e renovadas doutrinas. Para as obter, grupos de "direitos humanos" foram absorvidos e financiados para fins de legitimação. A Human Rights Watch e a Amnistia Internacional são os exemplos mais proeminentes de uma indústria de direitos humanos incorporada à política externa dos EUA. Para a guerra de procuração contra a Síria, outros grupos de relações públicas foram expressamente criados, como a The Syrian Campaign e os The White Helmets, financiados pelas grandes potências e por fundações privadas a elas associadas. Juntos, estes grupos formam uma altamente politizada indústria que busca enterrar ou "normalizar" os seus conflitos de interesse. Este projecto conjunto tem sido uma tentativa de legitimar a intervenção militar ocidental recorrendo a pretextos humanitários, e evitando os princípios de não-intervenção e anti-guerra do direito internacional. Este projecto busca descredibilizar e desmoralizar a resistência à estratégia imperial, visando obter a divisão ou a destruição de estados independentes, no processo de construção do "Novo Médio-Oriente" liderado pelos EUA. É imensa a quantidade de provas sobre as fabricações e campanhas partidárias realizadas por esta rede. De qualquer modo, propaganda de guerra nunca se baseou em raciocínio ou provas.
Tim Anderson, Janeiro de 2018
1ª PARTE - Sumário
2ª PARTE - 1. Direitos humanos como pretexto para a guerra humanitária
3ª PARTE - 2. Conflitos de interesse normalizados
4ª PARTE - 3. Vendendo guerras humanitárias: HRW e AI / 3.1 Human Rights Watch
5ª PARTE - 3.2 Amnistia Internacional
6ª PARTE - 4. Agências encomendadas à medida: "The Syria Campaign" e "The White Helmets" / Considerações finais
7ª PARTE - Bibliografia
traduzido para o português por Luís Garcia
versão original em inglês: Syria: the human rights industry in 'humanitarian war', Tim Anderson