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Pensamentos Nómadas

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Síria: a indústria de direitos humanos na "guerra humanitária" (3/7), por Tim Anderson

19.04.18 | Luís Garcia

capa

  

Tim Anderson  POLITICA SOCIEDADE

 

Parte 3/7

 

2. Conflitos de interesse normalizados 

As intervenções de "smart power" [poder inteligente] dos EUA e aliados na Líbia e na Síria ilustram muito bem como, numa era neoliberal, conflitos de interesse tradicionalmente compreendidos são agora ignorados. Washington, bem cedo, envolveu-se no conflito sírio, a princípio fornecendo apoio "não-letal" a grupos anti-governamentais, depois fornecendo directamente armas a alguns desses grupos. Tudo isso enquanto vendia milhares de milhões de dólares em armas aos sauditas, os quais haviam armado a insurreição islâmica na Síria desde o seu início (ver Anderson 2016b). Apesar de ser parte beligerante neste conflito, o governo dos EUA fingiu agir como mediador nesta guerra. Os EUA e seus aliados (sobretudo o Reino Unido e a França) financiaram também uma série de "media activistas" como o Aleppo Media Center (Beeley 2016b), assim como fontes de informação e defensores dos "direitos humanos" como o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, a Syrian Network for Human Rights, a Bellingcat e o Human Rights Data Analysis Group (ver Gráfico 1). A independência de todas essas agências fica comprometida perante o carácter beligerante dos seus patrocinadores. 

 

Esse conflito de interesses também foi visto na comissão das Nações Unidas criada em meados de 2012 para avaliar a situação dos direitos humanos na Síria. No início de 2012, a ONU nomeou a diplomata norte-americana Karen Koning AbuZayd para dirigir, em conjunto com Paulo Pinheiro, a Comissão da ONU para a Síria com sede em Genebra, substituindo a antiga Missão Especial (UNSMIS) para aquele país, liderada pelo general norueguês Robert Mood. 2012). A nomeação de AbuZayd foi uma decisão parcial da administração da ONU uma vez que, na altura, os EUA estavam apoiando a oposição armada na Síria. A substituição da UNSMIS por uma Comissão liderada por AbuZayd foi importante porque o massacre de habitantes de Houla, nos arredores da cidade de Homs, seria o primeiro grande teste para a doutrina da "responsabilidade de proteger" contra a Síria. A comissão AbuZayd-Pinheiro tentou culpar criminosos pró-governo não identificados, sem nenhuma prova relevante, motivo ou nomes (HRC 2012: 20). O relatório foi fortemente criticado no Conselho de Segurança da ONU, com a Rússia, a China e a Índia recusando aceitá-lo como base para uma acção contra a Síria. Quinze testemunhas oculares independentes identificaram publicamente líderes da Brigada Farouq (FSA) [sigla inglesa para Exército de Libertação Sírio] e colaboradores locais como tendo sido os autores do crime (Anderson 2016a: cap. 8). Esse mesmo grupo armado declarou um boicote e ameaçou com represálias todos aqueles que participaram nas eleições de 2012 para a assembleia nacional síria.

 

Cinco anos mais tarde, a comissão liderada por AbuZayd tentou retratar como "crime" a libertação da cidade de Aleppo de grupos aliados à al-Qaeda. A comissão alegou, falsamente, que houve "ataques aéreos diários" na parte leste da cidade de Aleppo no momento da sua libertação (HRC 2017: 19). No entanto, foi amplamente divulgado na imprensa estrangeira que os ataques aéreos na parte leste da cidade haviam sido suspensos desde o dia 18 de Outubro (BBC 2016; Xinhua 2016). Merrit Kennedy (2016), da NPR, relatou "várias semanas de relativa calma" durante a "pausa humanitária" destinada a evacuar civis. O "reinício" de ataques aéreos, quase um mês depois, foi dirigido contra grupos armados nas zonas rurais de Aleppo, e não nas áreas cada vez menores da cidade ainda sob controlo de jiadistas sectários aliados à al-Qaeda (Pestano 2016; Graham-Harrison 2016). Ainda assim, "media activistas" alinhados à al-Qaeda afirmaram que a cidade continuava a ser bombardeada (CNN 2016). A comissão da ONU, como salientou Gareth Porter, "não identificou fontes nenhumas para essa narrativa ... [mas] aceitou a versão dos eventos fornecida pelos "White Helmets", uma organização jiadista financiada pelos governos dos EUA e do Reino Unido (Porter). 2017). Este foi o padrão que vimos no panorama geral de reportagens de guerra.

 

A ambição declarada de Washington, desde meados de 2011, de derrubar o governo sírio liderado por Bashar al-Assad ("Assad must go"), mancha todas os media e [seus] apoiantes que recebem dinheiro da grande potência [EUA]. É lógica da mais simples, mas o óbvio deve ser dito. Os media que apoiam a política e as actividades do governo dos EUA têm maior probabilidade de obter financiamento; aqueles que são contra têm menor probabilidade. Nenhuma agência envolvida em polémicas relacionadas com o conflito sírio pode se afirmar independente se estiver na folha de pagamentos de governos envolvidos no derrube do governo sírio. Nem tampouco podem, aqueles que estão comprometidos com a "revolução" jiadista, afirmar serem fontes de informação independentes.

 

Por exemplo, uma grande parte da cobertura mediática ocidental sobre o conflito dependeu de uma única pessoa, Rami Abdul Rahman, um exilado sírio a viver em Inglaterra, que se apelida a si próprio de Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH). Muitas das estórias sobre contagens de corpos sírios, atrocidades do "regime" e enormes danos colaterais vêm desse homem (Skelton 2012; Christensen 2016). No entanto, nos primeiros anos do conflito, Abdul Rahman mostrava no seu site a bandeira do "Exército de Libertação" dirigido pela "Irmandade Muçulmana" (OSDH 2015; ver Gráfico 5). Rahman alegava recolher informações de uma rede de associados espalhados pela Síria. É lógico supor que esses associados são também, em grande parte, opositores ao governo. Os seus apoiantes ocidentais, frequentemente, afirmam que as fontes sírias, russas e iranianas devem ser rejeitadas devido à sua parcialidade; mas esses raramente dizem o mesmo sobre as fontes ligadas e integradas aos grupos armados anti-governo sírio. Esta posição é insustentável. Abdul Rahman, desde o início, admitiu receber "pequenos subsídios da União Europeia e de um país europeu que ele se recusa a identificar" (MacFarquar 2013). Sabendo que vive em Inglaterra, essa última fonte, muito provavelmente, será uma agência do governo do Reino Unido.

Tal como o OSDH, a Syrian network for Human Rights (SNHR) é mais um grupo basicamente gerido por um homem residente em Inglaterra. Este grupo alega ser "independente, apartidário, e não-governamental" e é dirigido por Fadel Abdul Ghani (SNHR 2016). Este minúsculo grupo proclama "prestação de contas", mas não declara as suas fontes de financiamento. A única coisa que pelos visto foi tornada pública foi a seguinte: "A SNHR financia o seu trabalho e as suas actividades através de incondicionais doações de indivíduos e instituições" (MOA 2017). Recentemente, até mesmo esta frase foi removida do site do grupo. Abdul Ghani está intimamente ligado a grupos jiadistas e, portanto, é é parte claramente parcial. Abdul Ghani disse em 2013, a um jornalista, que eram necessários ataques aéreos dos EUA na Síria, mesmo se esses matassem civis. Falando na primeira pessoa para se referir à oposição armada, acrescentou que: "Se não tentarmos retirar os mísseis e os tanques a Assad, [Assad] continuará a usá-los contra civis" (Scaturro 2013). Uma nota sobre a sua metodologia, no site da SNHR, admite que o grupo não está em condições de recolher dados fiáveis sobre a Síria. Afirmam que "a probabilidade de documentar opositores vítimas [de ataques] militares é ínfima", devido ao facto da SNHR não ter acesso às frentes de batalha e devido ao "secretismo da oposição armada". De forma similar, [números de] vítimas pertencentes ao exército sírio e a milícias aliadas não podem ser calculados devido à "ausência de uma metodologia clara" (SNHR 2017). Tal como Abdul Rahman, Abdul Ghani não tem experiência em investigação. Ambos compilam "dados" de maneira bastante ad hoc, usando para o efeito as suas próprias e parciais redes.

 

Fugira 1: As principais fontes de "informação" sobre a Síria são quase todas financiadas pelos mesmos governos ocidentais que fornecem armas aos grupos armados anti-governamentais.

 

Gráfico 1

 

Ainda assim, grupos sob tutela da ONU e a Amnistia Internacional fazem uso de “dados” do OSDH, do SNHR e de outro grupo norte-americano igualmente parcial chamado Human Rights Data Analysis Group (Price, Gohdes e Ball 2014). Este HRDAG obtém financiamento de fundações dos EUA, incluindo a Open Society Foundation de George Soros, assim como financiamento directamente proveniente do governo dos EUA através do National Endowment for Democracy (NED) financiado pelo Congresso (HRDAG 2017). Esse grupo, por sua vez, afirmou que "quatro fontes foram usadas nas suas análises: o Syrian Center for Statistics and Research (CSR-SY), o Damascus Center for Human Rights Studies (DCHRS), o Syrian Network for Human Rights (SNHR) e o Violations Documentation Center (VDC) (Price, Gohdes e Ball 2016: 1). Essas são todas as fontes anti-governamentais, ligadas em rede. Da mesma forma, Elliot Higgins, um investigador sem qualificação e bloguista, com o seu pequeno grupo chamado Belling Cat, reforça a "narrativa de guerra" dos EUA contra a Síria. Higgins admite que o seu grupo recebe dinheiro (entre outros) da Open Society Foundation (gerida pelo multi-milionário George Soros) e do NED (Higgins 2017), financiado pelo governo dos EUA. O gráfico 1 mostra essa rede de fontes parciais financiadas por governos ocidentais. Colaboração nesta unilateral narrativa de guerra foi solicitada e comprada a estas e outras agências. Viremo-nos agora para o papel de maiores e mais conhecidas agências de direitos humanos .

 

Tim Anderson, Janeiro de 2018

 

1ª PARTE - Sumário

2ª PARTE - 1. Direitos humanos como pretexto para a guerra humanitária

3ª PARTE - 2. Conflitos de interesse normalizados 

4ª PARTE - 3. Vendendo guerras humanitárias: HRW e AI  /  3.1 Human Rights Watch

5ª PARTE - 3.2 Amnistia Internacional

6ª PARTE - 4. Agências encomendadas à medida: "The Syria Campaign" e "The White Helmets"  / Considerações finais

7ª PARTE - Bibliografia

 

traduzido para o português por Luís Garcia

versão original em inglês: Syria: the human rights industry in 'humanitarian war', Tim Anderson

 

 
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