Síria: a indústria de direitos humanos na "guerra humanitária" (2/7), por Tim Anderson
Parte 2/7
1. Direitos humanos como pretexto para a guerra humanitária
A guerra humanitária não é nova. As suas origens remontam ao imperialismo liberal europeu do século XIX. A ênfase teórica do liberalismo no individualismo, num estado não intervencionista e no intercâmbio pacífico, tende a mascarar a sua história colonial. Por exemplo, o liberal inglês John Stuart Mill, famoso pelos seus escritos sobre a liberdade individual, descreveu o colonialismo britânico como "o melhor dos negócios com o qual o capital de um país antigo e rico pode querer se envolver", acrescentando que "as mesmas regras de moralidade internacional não se aplicam entre nações civilizadas e bárbaros" (Sullivan 1983: 601). Para esta versão do liberalismo, "os bárbaros não têm direitos como nação, excepto o direito ao tratamento que os conduzirá a se tornar uma" (Mill 1874: 252-253). Mill acreditava na virtuosidade da intervenção britânica para, por exemplo, "mediar conflitos e interceder por um moderado tratamento dos vencidos" (Mill 1859: 2).
Esse legado da "missão civilizadora" foi adoptado pelas tradições norte-americanas de "excepcionalismo", distinto das tradições imperiais europeias e em favor de evangelizadas missões pela "liberdade". Apesar das suas compras do período colonial (por exemplo, Louisiana) e das suas conquistas (por exemplo, México, Cuba), os Estados Unidos da América sempre rejeitaram, de forma consistente, p estatuto de potência imperial. A auto-imagem de um estado excepcional, uma "luz na colina", contínua a ser essencial (Gamble 2012). Isso nos diz que o poder norte-americano coloca maior ênfase no idealismo modernista do que os europeus, os quais muitas vezes ainda defendem os seus legados imperiais. O imperialismo dos EUA, por outro lado, finge não ter legado imperial. Nesse sentido, parece, pelo menos formalmente, ser mais consistente com a estrutura pós-colonial de direito internacional que foi desenvolvida após 1954, por intermédio das Nações Unidas.
A propaganda de guerra contemporânea baseia-se, portanto, neste idealismo, ainda que para os mesmos tradicionais fins: enaltecer a missão do agressor e descredibilizar a resistência, sobretudo daqueles que defendem os seus próprios povos e nações. Para tal, [a propaganda de guerra contemporânea] assimila normas contemporâneas e populares de "direitos humanos", subordinando-as à linguagem imperial modernista, de modo que todos os problemas de direitos humanos por resolver sejam "nossos". A delicada questão da autodeterminação de povos e de nações é assim destruída por persistentes narrativas em torno de estados "fracassados" ou estados "frágeis", dos quais os seus povos deve ser resgatados dos seus próprios "ditadores", eleitos ou não.
De qualquer, imperialismo é imperialismo. Naquele que veio a ser conhecido como o "Século Americano", e com uma esperança pelo "New American Century" (Pitt 2003) [Novo Século Americano], houve alternância entre uma versão "realista", no qual objectivos e métodos são mais directos, e um versão liberal, onde ocorre a consolidação da ideologia hegemónica. Os tradicionais objectivos de missão civilizadora e de eliminação de concorrência persistem (Fischer-Tiné e Mann 2004; MacKenzie 1986), mas com fases de reivindicação e de legitimação. No contexto contemporâneo, perante uma iminente crise energética e com Washington "perdendo" o Irão para a Revolução Islâmica desse país, apareceu a declaração de uma Washington "liberal" segundo a qual a região do Golfo Pérsico seria central para "os vitais interesses dos Estados Unidos da América" (Carter 1980). E assim se formalizou a reivindicação dos privilégios extra-territoriais dos EUA (praticado nas Américas por mais de um século) na região do Oriente Médio. Após o colapso da União Soviética e a aparente ascensão de um sistema global unilateral, a ideia de um Novo Século Americano começou a focar-se no completo controlo da região do Médio-Oriente rica em recursos. Não se tratava agora do simples controlo sobre campos petrolíferos ou gasodutos em particular, mas da dominação sobre uma região inteira. As alegações de terrorismo e desarmamento unilateral forneceram os pretextos para as "realistas" invasões do Afeganistão e do Iraque. Um "Novo Médio-Oriente" seria então criado por meio de uma "destruição criativa"; uma violência implicitamente sectária (Karon 2006; Nazemroaya 2006). Um general dos EUA declarou que o Pentágono pretenderia assumir o controlo sobre "sete países em cinco anos", começando com o Iraque e a Síria, e terminando com o Irão (Clark 2007).
No entanto, a doutrina imperial liberal foi remodelada na década de 90 nos Balcãs, onde alegações de crimes extremos forneceram os pretextos para a NATO se mobilizar e desmantelar a República Federal Socialista da Jugoslávia, apostando no jogo de divisões étnicas (Oberg 2014). As agências de direitos humanos incorporadas aos órgãos de política externa dos EUA começaram então a desempenhar um papel mais importante. A suposta inércia ocidental face às mortes em massa de 1994 no Ruanda ajudou a impulsionar as exigências ocidentais de intervenção. Na verdade, os EUA apoiaram a "mudança de regime" que se seguiu aos massacres do Ruanda (Philpot 2013). Os argumentos de intervenção humanitária reformularam as linhas de debate tradicionais sobre a política externa dos EUA. Em 2000, Holly Burkhalter, ex-directora da Human Rights Watch, argumentou, num "livro branco" em nome do Departamento de Estado dos EUA, que Washington deveria se envolver mais em intervenções militares em áreas "humanitárias", supostamente para evitar crimes de grande envergadura. A sua posição era mais assertiva do que a das Forças Armadas dos EUA, que defendiam uma linha mais cautelosa, ligada aos interesses dos EUA (CFR 2000). A ressurgente ideia de "intervenção humanitária" começou então a corroer a antiga distinção entre "falcões" militaristas e "pombas" diplomáticas.
A revolta popular ocidental no momento da invasão do Iraque pelo governo de Bush, em 2003, baseado num óbvio falso pretexto de desarmamento (Hoeffel 2014), levou a que os liberais dos EUA tomassem a iniciativa. Uma maior legitimidade teria de ser incorporada ao projecto do Novo Médio-Oriente. A noção de "smart power" [poder inteligente], para combater a abordagem "realista" mais feia, foi proclamada por Suzanne Nossel, uma funcionária da Human Rights Watch que, mais tarde, trabalhou com Hillary Clinton no Departamento de Estado dos EUA e que, em 2012, tomou a liderança da secção norte-americana da Amnistia Internacional. Num artigo de 2004, esta posicionou-se em favor da reafirmação do "internacionalismo liberal" dos EUA. Washington deveria oferecer uma "liderança assertiva", na tradição do "excepcionalismo", de forma a impulsionar uma série de objectivos mas, "ao contrário dos conservadores, que confiam no poder militar como principal ferramenta de governação, os internacionalistas liberais vêem o comércio, a diplomacia, a ajuda externa e a disseminação dos valores americanos como sendo igualmente importantes ”(Nossel 2004). Esta abordagem multifacetada era consistente com a doutrina de "full-spectrum dominance" [dominação de espectro total] do Pentágono (Garamone 2000), interligando a hegemonia militar às hegemonias económica, política e comunicacional.
O Departamento de Estado dos EUA introduziu então a nova doutrina de "responsabilidade de proteger" [responsibility to protect, ou R2P], por intermédio de uma comissão da ONU. A "Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal", em 2001, apresentou a ideia de "soberania enquanto responsabilidade", focando-se na violência dentro de novos estados ou de estados fracos. O "World Summit" de 2005 declarou que os estados tinham a responsabilidade de prevenir crimes maiores, mas, se fracassassem, a comunidade internacional deveria estar "preparada para tomar acções colectivas (...) através do Conselho de Segurança" (ONU 2005: 138-139). Uma grande parte deste texto foi adoptado pela resolução 1674 do Conselho de Segurança da ONU, no ano seguinte (UNSC 2006).
No entanto, na sua essência, a R2P é uma doutrina imperial que busca normalizar a guerra e reforçar as prerrogativas dos grandes poderes para que possam intervir. Edward Luck argumenta que não há necessariamente uma contradição entre esta doutrina e a soberania de estado. No entanto, este admite que é levantada a questão de que estas ideias de R2P "possam ser usadas por estados poderosos (...) para justificar intervenções coercivas levadas a cabo por outras razões" (Luck 2009: 17). De fato, a R2P não muda o direito internacional, mas atrai uma maior atenção para o Capítulo VII, sobre os poderes de intervenção do Conselho de Segurança. Esta doutrina promove "uma nova norma de direito internacional consuetudinário", (Loiselle 2013: 317-341), sugerindo até uma obrigação de intervir.
A primeira experiência com esta norma foi vista na destruição da Líbia pela NATO em 2011, um pequeno país com os mais altos padrões de vida do continente africano. O pretexto neste caso foi o alegado massacres de civis, na sequência de uma insurreição jiadista no leste da Líbia. O britânico The Guardian, um dos principais defensores do conceito de "intervenção humanitária", afirmou que "centenas de civis" haviam sido mortos em "protestos" (Cronogue 2012). A Amnistia Internacional, por sua vez, apoiou as alegações de "assassinatos, desaparecimentos e tortura" (Amnistia 2011: 8). A Amnistia Internacional apoiou a intervenção na Líbia, ao mesmo tempo que fingiu ter uma posição crítica "imparcial" quanto àquele pequeno país e às poderosas forças da NATO. Kovalik observa que a Amnistia Internacional apelou à "acção imediata" da ONU contra Gadafi, e que depois fez algumas advertências contra a NATO, durante o período de bombardeamentos (Kovalik 2012). A tempestade de acusações e de pedidos de intervenção levou rapidamente à resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, que apelava à protecção de civis através da criação de uma "zona de exclusão aérea". Aproveitando-se deste mandato de "protecção de civis", os bombardeiros da NATO intervieram, o governo líbio foi derrubado e Gadafi foi publicamente assassinado. A secretária de Estado [dos EUA], Hillary Clinton, regozijou-se publicamente da morte do presidente [Gadafi] (Daly, 2011). De todas as formas, a NATO ultrapassou, de longe, o mandato criado pelo Conselho de Segurança da ONU.
Os falsos pretextos para esta guerra foram imediatamente expostos. Genevieve Garrigos, da Amnistia Internacional (França), admitiu que não havia "provas" que sustentassem as alegações iniciais (da sua organização) de que Gadafi teria usado "mercenários negros" para cometer massacres (Cockburn 2011; Forte 2012; Edwards 2013). O académico norte-americano Alan Kuperman demonstrou que a repressão de Gadafi contra a insurreição islâmica no leste da Líbia foi "muito menos letal" do que havia sido sugerido. De fato, ao contrário da popularizada narrativa ocidental, Gadafi não ameaçou massacrar civis e "absteve-se de violência indiscriminada". Segundo estimativas posteriores, das quase mil vítimas nas primeiras sete semanas, apenas cerca de três por cento eram mulheres e crianças (Kuperman 2015). Foi quando as forças do governo líbio estavam prestes a recuperar o leste do país que a NATO interveio. Mais de dez mil pessoas foram mortas em resultado da intervenção da NATO, e o estado líbio foi desmantelado. "Nenhuma prova ou razão" foi encontrada que apoie a alegação de que Gadafi tenha planeado realizar massacres (Kuperman 2015). O Conselho de Segurança da ONU foi enganado e a confiança depositada na NATO foi traída.
Este abuso imediato da R2P na prática, causou desânimo. Dunne e Gelber dizem que a experiência líbia minou a ideia de uma "norma" R2P, com a mudança que a NATO realizou de uma "zona de exclusão aérea" para uma mudança de regime "que traiu" a confiança da ONU e que demonstrou a natureza partidária da intervenção (Dunne e Gelber 2014 : 327-328). Brown concorda, dizendo que a intervenção na Líbia demonstra que a "natureza apolítica" da sugerida responsabilidade de proteger "é uma fraqueza e não uma força". "A suposição de que a política pode ser removida do enquadramento promove a ilusão e, deste modo, convida à desilusão” (Brown 2013: 424-425). A doutrina perdeu o seu brilho intelectual. No entanto, com um governo democrata em Washington e uma incipiente guerra por procuração na Síria, os argumentos da "guerra humanitária" não haviam morrido. Sentindo-se traídos pela experiência na Líbia, a Rússia e a China bloquearam as propostas de "zona de exclusão aérea" para a Síria no Conselho de Segurança. No entanto, mesmo que uma resolução do Conselho de Segurança da ONU não fosse possível, os argumentos "morais" para a intervenção humanitária na Síria já estavam bem encaminhados.
Tim Anderson, Janeiro de 2018
1ª PARTE - Sumário
2ª PARTE - 1. Direitos humanos como pretexto para a guerra humanitária
3ª PARTE - 2. Conflitos de interesse normalizados
4ª PARTE - 3. Vendendo guerras humanitárias: HRW e AI / 3.1 Human Rights Watch
5ª PARTE - 3.2 Amnistia Internacional
6ª PARTE - 4. Agências encomendadas à medida: "The Syria Campaign" e "The White Helmets" / Considerações finais
7ª PARTE - Bibliografia
traduzido para o português por Luís Garcia
versão original em inglês: Syria: the human rights industry in 'humanitarian war', Tim Anderson