Será que a nossa civilização tem alguma hipótese de sobreviver?, André Vltchek
As minhas respostas variam, pois eu acho que não há uma só resposta para esta tão premente e tão importante questão.
Por vezes a minha resposta é influenciada pela minha localização, onde estou no momento, ou onde estive recentemente. Numa aldeia afegã controlada por talibãs, num telhado de um bordel em Okinawa, filmando mortíferas bases da Força Aérea dos EUA ou, talvez, num elegante café depois de assistir a um espectáculo de ópera com a minha mãe em Estugarda ou em Paris.
Se fui ferido em terreno de guerra ou numa favela, ou se fui aplaudido (a maior parte do tempo de forma hipócrita) nalgum evento onde fui convidado para discursar? Tenha eu andado a fazer algo "proibido", absurdo e perigoso, ou apenas trabalhando no meu material visual ou escrito no Japão ou em Banguecoque?
Dependendo das circunstâncias, posso soar pessimista ou cautelosamente optimista.
Mas a verdade, honestamente, é que tenho medo.
Não em relação à minha própria vida, à minha saúde ou, até, ao meu bem-estar. O meu trabalho e a minha luta ninguém me obrigou a fazê-los; tudo o que faço é fruto das minhas próprias escolhas. Quero fazê-lo e, por isso, faço-o. E enquanto o faço, dado que muitas vezes não é seguro, estou ciente que a minha vida pode acabar prematuramente ou que outra coisa qualquer muito desagradável pode acontecer. Tenho de o compreender, e compreendo-o. Muita merda acontece! E, infelizmente, com muita frequência. Mas não é isso que me assusta.
O que realmente me assusta é outra coisa, algo muito mais profundo: este belo "projecto", esta incrível e gigantesca experiência chamada humanidade poderá, muito em breve, acabar em ruínas e reduzida a cinzas.
O que me assusta ainda mais é que, talvez, já esteja a chegar ao fim, embora eu sinceramente espero que não esteja.
Não tenho religião, e não faço a mínima ideia se há algum tipo de vida após a morte ou não. Vida após a morte, Deus: o que eu tenho certeza absoluta é que ninguém neste planeta sabe a resposta a nenhuma destas assim chamadas grandes perguntas e, aqueles que afirmam saber, sabem ainda menos do que eu.
Este mundo e esta nossa maldita humanidade é tudo o que conheço, e é tudo o que tenho e que me importa. E eu amo-a porque não tenho outra escolha a não ser amá-la, apesar de toda a sua brutalidade e loucura, imprudência e miopia. Mas, este planeta que costumava ser tão incrivelmente belo e agradável a todos os nossos sentidos humanos, está agora assustado, humilhado e pilhado. Está a ser violado de forma selvática, mesmo em frente aos nossos olhos. E nós apenas observando, ruminando como gado, cagando e divertindo-nos de maneira cada vez mais acéfala.
E é isto que somos supostos fazer, de acordo com essa escumalha "no poder".
A nossa humanidade foi desencaminhada dos seus objectivos, metas e sonhos naturais. Objectivos como o igualitarismo, a justiça social, a beleza e a harmonia, costumavam andar na boca do mundo, independentemente do local onde viviam; há pouco tempo atrás, há apenas um século.
As mentes mais brilhantes, corajosa e determinadamente trabalharam para acabar com todas as formas de desigualdade, exploração, racismo e colonialismo. Os crimes contra a humanidade cometidos pelo imperialismo ocidental: racismo, escravidão e capitalismo, estavam sendo expostos, definidos, condenados e confrontados.
Infelizmente, há apenas um século atrás, estávamos prestes a alcançar o auge do iluminismo e, enquanto humanidade, estávamos muito mais perto da harmonia e da coexistência pacífica do que estamos agora.
Os nossos avós não tinham quaisquer dúvidas de que a razão e a lógica seriam em breve capazes de triunfar por todo o planeta e que, aqueles que governavam tão injustamente por todo o mundo, ou haveriam de "ver a luz" e voluntariamente abandonar o poder, ou seriam derrotados de uma vez por todas.
Grandes revoluções eclodiram em todos os continentes. Declarou-se que as vidas humanas estavam muito acima do lucro. O capitalismo parecia estar acabado. O imperialismo e o capitalismo foram desacreditados, cuspidos e pisados por milhões de pés. Claramente, seria apenas uma questão de anos antes que todos os povos de todas as raças se unissem, antes que deixassem de haver ditaduras de empresários gananciosos e degenerados, de desonestos demagogos religiosos, de perversos monarcas e seus servos.
Naquela época, a humanidade estava cheia de optimismo, de ideias inovadoras, invenções, intelectuais, bem como cheia de coragem emocional e criatividade artística.
Uma nova era estava prestes a começar. A época da servidão e do capitalismo estava chegando ao seu fim.
Mas depois, as obscuras forças revanchistas de opressão e da ganância, reagruparam-se. Eles tinham dinheiro e, portanto, podiam pagar para comprar os melhores psicólogos, propagandistas, assassinos em massa, académicos e artistas.
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Cem anos depois, olhe onde estamos! Olhe para nós agora.
Não há nada para celebrar, e muito razões para vomitar.
Os gangsters e degenerados morais, que governaram durante todos os séculos anteriores, ainda detêm o total controlo do planeta. Tal como outrora, os povos oprimidos formam a maioria: e vivem em África, no Médio-Oriente, na América Latina, no sub-continente indiano e no Sudeste Asiático.
Na verdade, as coisas foram bem mais longe do que antes: a maioria das pessoas no nosso planeta perdeu a capacidade de pensar de forma lógica. Foram lavados do cérebro pelos meios de comunicação propagandistas, por filmes e música pop produzidos em massa, por bizarras "tendências" de moda e pelo consumismo agressivo.
A educação e os meios de comunicação perderam toda a sua independência e tornaram-se subservientes aos interesses do regime.
A "democracia" ocidental (que para começar não é lá um grande projecto ) morreu de forma silenciosa e discreta, e os seus arautos uma vez mais começaram a receber ordens directas vindas das grandes empresas, dos multimilionários e das suas corporações multinacionais. O sistema evoluiu do turbo-capitalismo para a turbo-cleptocracia.
Eu trabalho um pouco por todo o mundo, em todos os continentes, e o que me aterroriza é ver como o sistema se tornou tão "completo" ou, se preferir, tão "à prova de balas".
Com avançada informatização, com a capacidade que o regime tem de monitorizar e analisar praticamente todos os cantos do nosso planeta, parece não haver lugar na terra que possa escapar aos avanços e ataques do imperialismo ocidental e do neocolonialismo.
Imagine: um qualquer país decide resistir e trabalhar pelo bem-estar do seu próprio povo e, de imediato, a propaganda Ocidental, as suas ONG's, universidades, meios de comunicação e, possivelmente, os seus mercenários e militares, metem-se ao trabalho, sistematicamente denegrindo o governo rebelde e, quiçá, arruinando um país inteiro. Foi assim que a Argentina entrou em colapso, e depois o Brasil. Foi assim que a Síria foi desestabilizada primeiro e, mais tarde, quase destruída.
Parece que nada pode resistir à ditadura global.
E a ditadura global não tem misericórdia; perdeu por completo a razão.
Ganância, maximização de lucros. Não conhece limites. Sacrificar vidas humanas agora é algo que se comete de forma rotineira. Milhares de vidas humanas, ou mesmo alguns milhões, não parecem ter importância alguma. Na República Democrática do Congo ou na Papua Ocidental, que importa, desde que o coltan, o urânio, o ouro e o petróleo continuem a ser extraídos.
Testemunhei o "afundamento" de nações inteiras, que se tornaram inabitáveis devido ao aquecimento global: Quiribáti, Tuvalu, Ilhas Marshall. Vejo enormes ilhas como o Bornéu (conhecido como Kalimantan na Indonésia) sendo completa e irreversivelmente arruinadas. E ninguém quer saber. Cientistas corruptos (corrompidos pelo Ocidente e pelos seus próprios governos servis) em lugares como a Indonésia, ainda questionam se o aquecimento global e a desflorestação, assim como as plantações de óleo de palma, estarão de facto ameaçando o planeta e a sua sobrevivência.
Há cerca de cinquenta anos atrás, teria havido poderosos livros escritos sobre estes assuntos. Maravilhosos filmes de arte teriam sido criados, canções teriam sido escritas e cantadas por trovadores, e as massas, tanto do mundo oprimido como do próprio Ocidente, teriam comprado milhões de cópias de livros revolucionários. Multidões de pessoas teriam feito filas para assistir a filmes retratando as suas vidas, as suas lutas e o seu sofrimento.
Agora? Agora as massas destruídas foram condicionadas a esquecer os seus pesadelos e, em vez disso, assistir a imbecis filmes de terror, a algum "épico" do Star Wars, a "comédias românticas" retratando suave sofrimento ou [a vida de] ricos e famosos. Depois de fazerem poupanças durante meses, famílias pobres do mundo devastado arrastam os seus filhos até um Disney World, para essas fábricas de sonhos de plástico desprovidas de emoções, para esses Burger Kings de contos de fadas!
Os telemóveis substituíram os livros de papel, os jornais e as revistas. Durante séculos, os livros de papel foram o símbolo do conhecimento. Nenhum computador ou ecrã de telemóvel pode substituir a palavra impressa. Um estudioso, um homem ou uma mulher de letras, sempre se viu rodeado de livros, de apontamentos, de documentos.
Nada disto está acontecendo por acaso. A oferta electrónica é muito mais fácil de controlar, manipular e asfixiar do que os materiais impressos em papel. A desintelectualização do mundo segue claramente um plano pré-concebido, passo a passo, de forma organizada. Esqueçam "homens e mulheres renascentistas" no nosso século XXI: até mesmo os cultos pensadores ocidentais anti-capitalistas são agora "especializados". Não lêem ficção. Andam por aí recolhendo "factos", produzindo ensaios e livros não-ficcionais, bem como documentários e vídeos, mas negligenciando por completo o facto de que todas as revoluções bem-sucedidas sempre se basearam em emoções, criatividade e arte, inspirando as massas, fazendo-as rir e chorar, sonhar e ter esperança.
O mundo está cheio de "dados", de dígitos. Os "factos" encontram-se amplamente disponíveis, mas não inspiram nem movem ninguém. Não apelam as pessoas à acção, às barricadas. Tudo é padronizado. A propaganda ocidental conseguiu regular o desejo humano, ditando como o corpo "perfeito" feminino ou masculino deve aparentar-se e comportar-se. Ou qual deve ser a "correcta" percepção de "democracia", ou o que está na moda e o que deve ser considerado aborrecido e ultrapassado.
As vidas quer das vítimas quer dos carrascos parecem estar "despolitizadas". Mas não estão! A aceitação da propaganda ocidental e a colaboração com o seu regime é, na verdade, um acto extremamente politizado!
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Eu tenho medo porque parece que uma grande maioria das pessoas aceitou o que o vigarista regime lhes impôs.
Aceitaram a vigilância, as tendências, os "desejos" desumanizados, o "politicamente correcto", o imperialista fascismo global, tudo o que é pop, o grotesco capitalismo e a cinzenta uniformidade .
Como os papagaios, repetem slogans anti-comunistas, assim como baboseiras propagandistas contra todos os países e governos que ainda resistem a esta monstruosa ditadura ocidental levada ao seu mais bizarro extremo .
Tenho medo e, ao mesmo tempo, sinto-me cada vez mais furioso. Se este é o futuro da humanidade, nós, enquanto seres humanos, teremos de facto o direito de existir, de sobreviver enquanto espécie? Seremos nós assim tão submissos, tão apáticos, para acabármos sempre a implorar por migalhas, a rezar a alguma inventada força superior e a prostrar-nos perante monarcas gananciosos e indivíduos e sistemas moralmente corruptos?
Felizmente, nem todos estão cegos e nem todos se põem de joelhos. Nem todos nós perdemos a capacidade de resistir, de sonhar e de lutar por um mundo que parecia ser tão possível há apenas um século atrás.
Aqueles que ainda estão vivos e de pé sabem perfeitamente que a revolução é possível e moralmente justificável. O capitalismo e o imperialismo são totalmente desumanos. Um sistema socialista ou comunista é o único caminho a seguir: não de uma forma "conservadora", dogmática, mas de uma forma "internacionalista", esclarecida e tolerante. (como claramente é explicado no meu último livro Revolutionary Optimism, Western Nihilism).
Estamos no início de 2019. Tentemos recapitular algumas ideias básicas:
Destruir partes inteiras deste mundo e saquear os seus recursos naturais para lucro calculista e egoísta é errado.
Submeter países inteiros a lavagem cerebral, derrubando os seus governos progressistas e desencaminhando o seu desenvolvimento natural, também é muitíssimo errado.
Transformar as pessoas do mundo inteiro zombies idiotas, fazê-los consumir imbecis filmes violentos, ouvir música de merda e comer comida de plástico, fazê-los sonhar com fazer amor com manequins de montras de lojas e seus equivalentes humanos, tudo isto é demoníaco.
Utilizar os meios de comunicação social, a educação e o entretenimento para fins de doutrinação é sinónimo de barbarismo.
Igualmente bárbaro é transformar o planeta inteiro num primitivo mercado de consumo .
Combater tal sistema é [um acto] glorioso. E é, por definição, algo de "apelativo" e divertido.
Para utilizar a terminologia do Império: a colaboração e a uniformidade jamais poderão ser "cool". Ouvir e ver o mesmo lixo não pode ser "estar na moda". Teclar nos mesmos ecrãs de telemóveis dificilmente poderá ser definido como algo de "intelectualmente avançado".
Lamber as botas de um triste velho dono de bancos e de destrutivas empresas está bem longe de ser uma forma moderna, elegante e refinada de viver.
Ver o nosso amado planeta sendo consumido pelas chamas, devido ao neo-imperialismo e ao turbo-capitalismo, sem fazer nada para o impedir, mais não é que pura estupidez.
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Comecei 2019 a escrever o primeiro capítulo do meu romance de 1000 páginas “One Year of Life”. Este romance começou no início de 2019 e terminará no final do mesmo ano. No último minuto do ano. Já chega de fazer só não-ficção!
Como romancista e dramaturgo, acredito nas emoções humanas. Testemunhei revoltas e revoluções o suficiente para, por fim, perceber que factos e dados crus nunca trarão pessoas para as barricadas.
É hora de tirar o pó aos velhos estandartes, de trazer de volta a poesia, a arte, a literatura, os filmes, o teatro e a música. São estes os nossos melhores aliados.
O Ocidente tenta silenciar as emoções, "queimar" livros e atingir-nos a todos com horríveis ruídos e imagens sem sentido nehum, porque sabe perfeitamente que a beleza é criativa e inspiradora. A beleza e a criatividade são também "perigosas", até mesmo fatais, para os sombrios e deprimentes desígnios do regime.
Posso estar com medo, mas também estou cautelosamente esperançoso. Ainda podemos ganhar. Na verdade, é nossa obrigação ganhar. Este planeta tem de sobreviver. Se ganharmos, sobreviverá. Se perdermos, irá arder no inferno.
Será uma luta extremamente dura aquela que temos pela frente. E ninguém lutará apenas em nome de factos e de dados. Sabemos bem que as pessoas só lutam em nome de um futuro melhor. Para ganharmos, todas as grandes musas deverão marchar ao lado dos corajosos e determinados revolucionários!
André Vltchek
Traduzido para o português por Luís Garcia
Versão original em inglês aqui.
André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.
Fotos de André Vltchek.