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Pensamentos Nómadas

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Será Harare de facto a pior cidade à face da Terra?, por André Vltchek

06.03.19 | Luís Garcia

Será Harare de facto a pior cidade à face da Terrra?

 

Andre Vltchek Política Sociedade   

 

AVISO: A versão original em inglês deste artigo é antiga e data de 15 de Março de 2013. 

 

Para variar, não quero discutir política. Não quero discutir se Mugabe é realmente um herói nacional africano, como muitos acreditam neste continente, ou se é um brutal ditador, como repetem de forma incansável a BBC, o The Economist e praticamente todos os média do establishment ocidental.

 

Os "dados" sobre o Zimbabué são desenvolvidos algures, para servir os interesses políticos ocidentais, e depois são reciclados, sendo repetidos centenas de vezes em sites de internet. Relatórios antigos não são actualizados quando a situação melhora. As estatísticas incorrectas não são contestadas.

 

Não quero discutir isto agora. Um dia irei, prometo, e em detalhe.

*

Agora o mundo está em tumulto: o presidente Hugo Chávez morreu; faleceu ou, como alguns acreditam, terá sido assassinado. E este continente pobre e devastado, a África, está passando pela mais recente vaga de carnificina patrocinada e organizada por várias nações ocidentais. Da África Ocidental à Somália, do Mali à República Democrática do Congo, chamas, tanques, aviões, drones e também miséria e desespero estão, uma vez mais, matando milhões.

 

Ao mesmo tempo que Chávez, esse orgulhoso líder da oposição global e um dos sacos de pancada favoritos da propaganda ocidental, foi posto a descansar, eu descolava de Nairóbi. Três horas depois, dei por mim a aproximar-me do Aeroporto Internacional de Harare, de infinitas planícies e de fantásticas formações rochosas sob a asa do Embraer brasileiro da Kenyan Airways.

 

Eu tinha de fazê-lo; tinha de vir aqui, como um gesto simbólico, como uma homenagem à revolução latino-americana, como meu dever internacionalista para com África. Em vez de fazer luto por Chávez, decidi continuar a trabalhar em prol da revolução que ele desencadeou e da qual sempre tentarei fazer parte.

 

"A cidade menos habitável do mundo", li eu antes de vir, "a pior cidade da terra". Houve pesquisas de expats, pesquisas do The Economist e, a um dado momento, pesquisas que "condescendentemente" indicavam Harare como a quarta pior cidade do mundo em 2012, não a pior.

 

Estou habituado a trabalhar em zonas de guerra e nas mais desesperançadas e perigosas favelas. Estou habituado às cidades do sub-continente [indiano], da República Democrática do Congo, do Haiti. Sobrevivi a estadias em muitos postos avançados ocidentais por todo o mundo, oficialmente glorificados, mas que na verdade são centros urbanos em colapso (como Jacarta, Nairóbi, Kampala, Djibouti, Phnom Penh e o Cairo).

 

Eu não tinha medo da "horrível" Harare e os relatos vindos do Ocidente não me convenciam. Foi por isso que decidi regressar ao Zimbabué. Mais uma vez, usaria os meus próprios olhos, ouvidos e cérebro, desafiando a propaganda oficial vinda de Londres e Washington.

*

O Aeroporto Internacional de Harare é simples mas moderno. Os funcionários mostram-se desmotivados e lentos, mas são amigáveis e têm um grande sentido de humor. Não há tensão nem insultos, nem jogos de poder, como nos aeroportos de Nairóbi ou de Phnom Penh. Nada de atirar passaportes à cara de uma pessoa nem recolha de impressões digitais ou fotografias, como fazem em todos os aeroportos do terceiro mundo (de Banguecoque a Nairóbi), conhecidos por enviar a informação recolhida para o Ocidente.

 

Depois de pagar o meu visa on arrival, os funcionários da imigração não conseguiam arranjar troco. Tive de esperar cinco minutos. Enquanto esperava, conversámos sobre as eleições quenianas.

 

Pouco depois, sou levado de carro por entre ruas verdes e calmas, algumas com nomes bastante interessantes como Benghazi e Julius Nyerere, em direcção ao moderno e elegante centro da cidade de Harare.

 

Desde que cheguei, há algo que não bate certo. A pior cidade do mundo: procuro por sacos de areia e artilharia como em Nova Deli ou Mumbai; por gangues que vagueiem pelas ruas como em Colón, no Panamá; por rios entupidos de lixo; por horrenda poluição como em Jacarta ou Alexandria. Não encontrei nada disso aqui, não vi favelas terríveis nem vi fogos, reais ou metafóricos.

 

Há alguns pedintes nos passeios, mas menos do que em Nova Iorque ou Paris. Há muito pavimento em mau estado, desnivelado, até mesmo com buracos, mas nada comparado com Campala.

 

De repente, enquanto íamos nos aproximando do meu hotel no centro da cidade, veio-me à ideia a conclusão de que, pelo menos através da janela de um carro, Harare poderia ser descrita como sendo uma bonita cidade! É claro que não é tão impressionante como a Cidade do Cabo, e é muito menor, mas, de uma forma muito modesta, é bastante atractiva.

 

Downtown Harare, worst city on earth?

Centro de Harare, a pior capital do mundo?

*

O Aeroporto Internacional de Harare é simples mas moderno. Os funcionários mostram-se desmotivados e lentos, mas são amigáveis e têm um grande sentido de humor. Não há tensão nem insultos, nem jogos de poder, como nos aeroportos de Nairóbi ou de Phnom Penh. Nada de atirar passaportes à cara de uma pessoa nem recolha de impressões digitais ou fotografias, como fazem em todos os aeroportos do terceiro mundo (de Banguecoque a Nairóbi), conhecidos por enviar a informação recolhida para o Ocidente.

 

Depois de pagar o meu visa on arrival, os funcionários da imigração não conseguiam arranjar troco. Tive de esperar cinco minutos. Enquanto esperava, conversámos sobre as eleições quenianas.

 

Pouco depois, sou levado de carro por entre ruas verdes e calmas, algumas com nomes bastante interessantes como Benghazi e Julius Nyerere, em direcção ao moderno e elegante centro da cidade de Harare.

 

Desde que cheguei, há algo que não bate certo. A pior cidade do mundo: procuro por sacos de areia e artilharia como em Nova Deli ou Mumbai; por gangues que vagueiem pelas ruas como em Colón, no Panamá; por rios entupidos de lixo; por horrenda poluição como em Jacarta ou Alexandria. Não encontrei nada disso aqui, não vi favelas terríveis nem vi fogos, reais ou metafóricos.

 

Há alguns pedintes nos passeios, mas menos do que em Nova Iorque ou Paris. Há muito pavimento em mau estado, desnivelado, até mesmo com buracos, mas nada comparado com Campala.

 

De repente, enquanto íamos nos aproximando do meu hotel no centro da cidade, veio-me à ideia a conclusão de que, pelo menos através da janela de um carro, Harare poderia ser descrita como sendo uma bonita cidade! É claro que não é tão impressionante como a Cidade do Cabo, e é muito menor, mas, de uma forma muito modesta, é bastante atractiva.

 

Belisco-me. Fecho e abro os olhos diversas vezes, freneticamente. Peço ao meu motorista que me bata na cara, mas ele recusa.

 

"Porquê senhor?", perguntou ele perplexo.

 

"Mas...", murmuro eu,  "Harare parece ser um lugar muito agradável.”

 

"É", responde o condutor.

 

"Mas..." continuo eu confuso, "era suposto ser a cidade mais horrível do mundo.”

 

"Quem o diz?"

 

"Os jornais no Ocidente ... as reportagens, os inquéritos…”

 

"Ah", sorriu o condutor. "Então devíamos bater nas caras deles, não na sua. Por mentirem, entende?”

 

 
Harare from the mountains.

Harare vista das montanhas

*

Sugiro o seguinte: não falemos do presidente nem do passado e presente político do país. Deixe-me levá-lo por uma longa caminhada através de Harare, para que você possa conhecer a cidade descrita pelos nossos propagandistas como a pior, absolutamente a pior cidade do mundo. E deixe-me adicionar algumas imagens a esta descrição.

 

Fique a meu lado e caminhemos juntos, durante vários dias, à procura da verdade.

 

Mas antes de começármos a passear, oiçamos algumas vozes do Reino Unido e dos EUA, aquelas que fabricam opinião pública por esse mundo fora.

 

No dia 7 de Setembro de 2011, a iAfrica informava que:

Na quinta-feira, um grupo de pesquisa de renome classificou a capital do Zimbabué como a pior cidade para viver, por entre as 140 cidades analisadas. A britânica Economist Intelligence Unit informou que os seus investigadores excluíram cidades da Líbia, do Iraque e de outras zonas de guerra. Harare, onde falhas de energia e água ocorrem diariamente, marcou 38 por cento na «classificação de habitabilidade», disse o grupo.

O grupo afirmou que a ameaça de distúrbios civis e a disponibilidade de cuidados médicos públicos e de transportes públicos em Harare são intoleráveis. Energia e abastecimento de água foram classificados de indesejáveis, escreve o grupo, apelidando os telefones e serviços de internet de desconfortáveis…"

 

Em 2009, a BBC afirmou que as mulheres no Zimbabué tinham uma esperança média de vida de 34 anos e que os homens, em média, não viviam para além dos 37 anos. Essa informação foi repetida por inúmeros sites.

 

Outras reportagens da BBC foram republicadas, palavra por palavra, por milhares de jornais e fontes de referência, incluindo a Wikipédia:

O sistema de Saúde entrou mais ou menos em colapso. Até o final de Novembro de 2008, três dos quatro principais hospitais do Zimbabué haviam fechado, juntamente com a Escola de Medicina do Zimbabué, e o quarto maior hospital tinha duas alas e nenhuma sala de operações em funcionamento. Devido à hiper-inflação, esses hospitais, ainda abertos, não são capazes de obter os medicamentos mais básicos."

 

De forma previsível, a agência oficial de propaganda do Reino Unido, adicionou palavras coloridas como "genocídio" e "tragédia", e seleccionou citações de vários médicos culpando o governo do Zimbabué pela situação.

 

Nem um vislumbre de diversidade, nem um argumento do "outro lado".

 

Nem uma palavra sequer sobre aquilo que a maioria dos habitantes do sul de África acredita, nem sobre o que alguns membros do establishment ocidental confirmaram recentemente.

 

De acordo com o African Globe (17 de Novembro de 2012]:

O governo dos Estados Unidos admitiu, pela primeira vez, que as sanções ilegais que impôs destruíram a economia do Zimbabué e estavam a afectando pessoas comuns.

O novo embaixador dos EUA no Zimbabué, David Bruce Wharton, admitiu-o ontem numa mesa-redonda dos meios de Comunicação Social em Harare, e comprometeu-se a trabalhar com as autoridades do Zimbabué e dos EUA para normalizar as relações.

A admissão chegou depois do World Diamond Council ter dito estar também dialogando com o governo dos EUA e a União Europeia para levantar as sanções impostas aos diamantes de Marange, apesar do Zimbabué ter recebido o aval do Kimberly Process Certification Schemepara para exportar estas pedras preciosas."

 

Mas eu prometi: nada de política... apenas caminhemos e observemos.

 *

O "Hospital e Centro de Cuidados Traumáticos de Harare" está localizado numa parte tranquila da cidade, e poderia facilmente qualificar-se para o título de instalação médica mais elegante que eu já tenha visto neste mundo. É elegante, repleto de arte e, ao mesmo tempo, tecnologicamente avançado e imaculadamente limpo.

 

Saúdo dois representantes que trabalham na área de recepção. Uma delas é Ana, uma jovem e sofisticada senhora que veio da Sérvia.

 

"Eu vim aqui para ver se Harare tem alguma sala de operação", murmuro eu, sentindo de repente vergonha. "Veja, há alguns relatos que indicam que a capital fechou todos os seus hospitais, ou pelo menos todos as  suas salas de operações.”

 

"Bom, está dito!", pensei eu, esperando levar de resposta. Em vez disso, recebo um grande e acolhedor sorriso.

 

"Quer um pouco de água,  café? Podemos mostrar-lhe o hospital. Antes de você chegar, já cá estava uma equipa de filmagem investigando a mesma questão.”

 

Sou levado até uma sala de emergência de alta-tecnologia, equipada com a mais recente tecnologia. Aí, foi-me pedido para tirar os sapatos e mudar de roupa. Quando dou por mim, estou a usar um bata branca e a ser levado através de uma sala de esterilização para duas salas de operação que se parecem mais com o interior de uma nave espacial. Salas de cirurgia não são os lugares onde eu normalmente escolheria passar as minhas noites, mas estas são salas de cirurgia magníficas! E, acima de tudo, apesar do que dizem em Londres, elas realmente existem!

 

"Deixe-me tirar-lhe uma foto ao lado do equipamento de operação, para que em Inglaterra ou nos EUA não digam que as imagens foram manipuladas por algum jornal médico", diz Ana rindo.

 

"Temos salas de operações especializadas em fluxo laminar usado para "cirurgias pelo buraco da fechadura", e ortopedia ..." Eu continuo a tomar notas. Não faço ideia do que ela está a falar, mas o que vejo parece definitivamente impressionante. Ana continua: "há cirurgiões torácicos e vasculares no hospital. Temos neurocirurgiões de serviço…”

 

Após a visita, sou convidado a tomar café com o Dr. Vivek Solanki, dono do hospital.

 

"Eu não deveria estar falando sobre a competição", sorri, "mas em Harare temos uma abundância de hospitais operacionais com decentes a excelentes salas de operação. Isso é tudo propaganda, o que dizem sobre os cuidados médicos neste país. Claro que houve um período muito curto e difícil, por volta de 2008, mas não durou muito.”

 

Pergunto ao Dr. Solanki se este hospital super-moderno e eficiente é apenas para os mais ricos dos ricos.

 

"Eu introduzi aqui um novo conceito", explica ele de forma apaixonada. "É claro que este é um hospital privado, mas estamos determinados a servir o povo do Zimbabué. Portanto, ao contrário daquilo que acontece nos EUA, aqui, quando a ambulância, táxi ou parentes nos trazem um paciente, um paciente que precise de tratamento urgente... não importa quão complicado seja o caso, nós tratamos o paciente, independentemente de ele ou ela ter ou não dinheiro ou seguro. Nunca perguntamos e nunca verificamos se ele ou ela pode pagar. Estabilizamos o paciente primeiro, e só depois que ele ou ela esteja fora de perigo, a escolha é dada: se ele ou ela optar por pagar, ficamos com o paciente. Se não, transferimo-lo para um hospital estatal e não cobramos nada por lhe salvar a vida. Também tratamos bebés com menos de 6 meses, bem como idosos com mais de 70 anos, GRATUITAMENTE.”

 

"Perdemos dinheiro", sussurra Ana, expressando indignação, meio a brincar. "Mas ele é o dono do estabelecimento, e não há nada que possamos fazer.”

 

"Eu tornei-me médico graças ao presidente", acrescenta o Dr. Solanki. "A educação neste país é gratuita. Sou zimbabueano, um indiano de terceira geração. Recebi ajuda quando precisei. Agora tenho de retribuir. Eu construo hospitais. Sou médico. Sei como curar pessoas, salvar vidas. É isso que tenho de fazer.”

 

No carro, enquanto nos dirigíamos para o centro da cidade, recebo uma mensagem de texto de Nairóbi: "a esperança média de vida no Zimbabué para as mulheres é de 34 anos e para os homens é de 37. Incorrecto. Mesmo de acordo com a CIA Factbook 2012, a estimativa de esperança média de vida à nascença no Zimbabué é de 51,82, mais alta que na África do Sul, com 49.41".

 

"É tudo por causa da SIDA", diz o meu motorista, "Fez cair a pique a nossa esperança média de vida. Mas sabe, as coisas estão a ficar muito melhores aqui, ultimamente, e todos os que são honestos dir-te-iam isso, independentemente do que pensem sobre o presidente. Por exemplo, temos todos esses tratamentos anti-retrovirais de graça aqui. Também recebemos preservativos grátis, bem como muita informação do governo.”

 

"Também recebem ajuda da China", é-me dito mais tarde por um dos funcionários da ONU que trabalha em Harare. "A China fornece médicos e medicamentos gratuitos. A China ajudou muito este país.”

 

Your correspondent in the 'big operation theatre' at Harare Trauma Centre.

O vosso correspondente numa "grande sala de operação"  do Centro de Cuidados Traumáticos de Harare

 

Sofrendo com as sanções ocidentais, a economia do Zimbabué entrou em colapso. Desde então, tem passado por uma lenta mas contínua recuperação.

 

Uma vez mais peço desculpa; dissemos "nada de política". Eu disse "deixe-me levá-lo por uma longa caminhada". Portanto pegue no meu braço. Continuemos o nosso passeio pela cidade.

 

Ao lado do meu hotel fica a entrada para um magnífico complexo de natação, a Piscina Municipal de Les Brown. Não sei se é público ou não, e esqueci-me de perguntar, mas parece ser. Ao seu lado está o Harare Gardens, um belo parque de estilo inglês, onde há pessoas descansando na relva, a desfrutar de piqueniques, a ler.

 

Ter áreas públicas e "abertas" como parques é simplesmente impensável em Jacarta, onde há apenas uma área verde pública de tamanho considerável, a MONAS. E Jacarta é um monstro com 12 milhões de habitantes, enquanto Harare tem uma população de apenas dois milhões. Dois milhões desfrutando de vários magníficos parques e jardins, passeios largos e arte exibida em locais públicos por toda a cidade.

 

Mas não esqueçamos, esta é uma nação "teimosa", um país que recusa a ajoelhar-se e a saudar os seus agressores. Enquanto isso, Jacarta e Phnom Penh são capitais de dois países que são uns fundamentalistas adeptos do mercado. Estas sufocam com as suas próprias nuvens de fumo, e não têm quase nada que possa ser definido como sendo público mas, aos olhos do regime ocidental, não podem ser tão más como Harare, Caracas, Havana ou Pequim! Têm a sorte de ficarem imunes a perguntas desconfortáveis, e recebem total e caloroso apoio de publicações religiosamente pró-business como o The Economist.

 

Também não há quase nenhum espaço público noutras capitais africanas que têm servido como estados clientes do Ocidente durante anos e décadas, como é o caso de Campala, Quigali, Adis Abeba ou o Cairo, embora, neste último, pelo menos as pessoas podem encontrar-se nas pontes da cidade.

 

Mas Harare, dizem-nos, é a pior cidade à face da terra!

 

Parece não haver crime na cidade, e toda a gente está de acordo sobre este ponto. Zimbabueanos negros e zimbabuenos brancos, especialistas estrangeiros, polícias e médicos, falei com todos estes grupos, e todos me disseram que Harare é uma das cidades mais seguras do continente africano. Em Nairóbi, Tegucigalpa ou Port-au-Prince, ninguém pode caminhar na rua, devido ao medo de serem vítimas de crimes violentos. O nível de perigo para as mulheres indianas em Nova Deli e noutras cidades do sub-continente é quase tão elevado como o de zonas de guerra.

 

Mas Harare, uma das cidades mais seguras da África Subsaariana, é que é descrita como a cidade "menos habitável" da terra.

 

Olho à minha volta e vejo que as pessoas estão deitadas na relva ou que, pelo menos, muitas delas estão a ler jornais e revistas. Por que razão o fazem? Em primeiro lugar, porque são alfabetizados; porque esta é a nação mais alfabetizada de todo o continente, do Suez ao Cabo da Boa Esperança. Segundo a All Africa, do dia 14 de Julho de 2010:

O Zimbabué foi classificado como o país com a maior taxa de alfabetização de África, ultrapassando a Tunísia, indica a mais recente análise estatística do PNUD. A Tunísia manteve o primeiro lugar durante anos, com o Zimbabué em segundo lugar, e em primeiro lugar na África Subsariana. Actualmente, o nível de alfabetização do Zimbabué é de 92 por cento (acima dos anteriores 85 por cento), enquanto que a Tunísia mantém-se nos 87 por cento."

 

"Isto mostra o quão alfabetizado e educado é o Zimbabué", foi-me dito por um alto funcionário da ONU que trabalha para o PNUD em Nairóbi e que, por razões óbvias, não quer ser identificado. "Quando se trabalha com zimbabuenos, as coisas acabam sempre por ser feitas. As coisas lá funcionam. É uma verdadeira tragédia que tantos profissionais de topo tenham de ter partido para a África do Sul durante a crise. O Zimbabué é vítima de uma campanha de difamação conduzida pelos meios de comunicação ocidentais. O mesmo se pode dizer do presidente Jacob Zuma da África do Sul.”

 

Harare National Library at sunset.

Biblioteca Nacional de Harare ao pôr-do-sol

*

Será que as coisas não são assim tão más em Harare? Há vários hospitais em condições, cuidados médicos preventivos, a maior taxa de alfabetização do continente, uma das menores taxas de criminalidade do continente e espaços públicos por todo lado.

 

Claro que frequentemente há apagões em Harare, mas não são mais frequentes do que em Nairóbi, Campala, Quigali, Lagos, Adis Abeba, Jacarta, Daca ou Colombo, para mencionar apenas alguns exemplos. O abastecimento de água precisa de ser melhorado, mas dificilmente poderia ser considerado uma tragédia, como certamente é na Indonésia, na Índia e na maior parte de África. O governo tem falta de dinheiro e tem sérios problemas com a recolha e reciclagem de lixo. Mas, apesar disso, Harare ainda parece ser muito limpa para os padrões africanos, mais ao nível da muito mais rica Cuala Lumpur do que ao nível de cidades como Manila ou Surabaia.

 

Não me deixando influenciar por horríveis relatos vindos do Reino Unido e dos EUA, deixado só com o meu julgamento imparcial, eu poderia facilmente acreditar que esta seria uma das cidades mais habitáveis do Hemisfério Sul.

 

Mas essa é exactamente a ideia: não era suposto eu fazer o meu próprio julgamento. Eu não deveria analisar de forma objectiva aquilo que meus olhos vêm e o que meus ouvidos ouvem. Era suposto eu estar pré-condicionado, era suposto alguém me indicar como ver as coisas e até como analisar o que vejo.

 

Mbare Township - as bad as it gets in Harare.

Zona de Mbare – o pior que pode encontrar em Harare.

 

O Sr. Hezekiel Dlamini, Conselheiro para a Comunicação e Informação no escritório da UNESCO em Harare, é natural da Suazilândia e trabalhou muitos anos no Gana, em França e no Quénia, antes de aceitar este cargo no Zimbabué. O Sr. Dlamini consegue se integrar bem neste país que ele considera "bonito" e "confortável":

É muito mais sossegado aqui do que em Nairóbi", explica. "Em Harare, a cultura é muito importante e é muito diversificada e interessante. Você consegue obter a verdadeira, vibrante e tradicional cultura local no centro e em outras partes da cidade, ou pode dirigir até Borrowdale, a poucos quilómetros de distância, e a outros bairros, onde encontrará o que é comum encontrar nos subúrbios brancos da África do Sul ou na Cidade do Cabo: todas aqueles luxuosos shoppings, cinemas mostrando os mais recentes lançamentos, cafés requintados.”

 

Estamos sentados num simples mas confortável café, perto da parede de vidro da National Art Gallery. É calmo, quase sereno. Várias impressionantes exposições de arte estão ocorrendo dentro da instituição, enquanto um vasto parque de esculturas está repleto de casais saindo vestidos com as suas melhores roupas, sentados na relva. Tal como nos parques nicaraguenses, os jovens vêm aqui para dar as mãos e sussurrar confissões íntimas à sombra de uma imponente obra de arte, em vez de se sentarem num estereotipado espaço de uma cadeia de cafés no meio de um centro comercial deprimente e chato a ouvir música banal ou ruidosos anúncios.

 

"Você pode comer comida local, você pode comer em vários locais chineses, e há restaurantes indianos, restaurantes portugueses, até mesmo alguns restaurantes de sushi.”

 

"Estarão os brancos realmente sofrendo, aqui, como nos dizem os média ocidentais?", pergunto eu.

 

"Claro que não!", diz Hezekiel rindo-se. "Vá a qualquer um dos seus subúrbios. Vá até ao Sam Levy’s Village ou a qualquer outro grande centro comercial. Você verá, ainda há segregação, não por causa do governo, mas por causa da minoria branca. Têm tudo o que querem nos seus subúrbios; conseguiram criar o seu próprio universo. Se eu levar as minhas filhas para uma escola branca, eles dirão "não". Não me vão dizer que é por eu ser negro africano; vão argumentar que a escola está cheia. E o governo não pode fazer nada em relação a isto.”

 

Fui então visitar os subúrbios chiques, equipados com campos de golfe, clubes desportivos, belos shoppings, supermercados recheados com os produtos alimentares mais requintados importados da África do Sul e da Europa, com cafés elegantes e lojas de marca que vendem roupas da Hermes e da LV.

 

Há de tudo aqui. Chegado a este ponto, não entendo nada.

 

Harare tem de tudo! Como é que alguém pode sequer colocar a possibilidade de isto ser um inferno na terra?

 

Eu disse "nada de política", não não desta vez... Mas deixai-me ao menos colocar algumas perguntas retóricas: existe alguma razão pela qual este país esteja sofrendo sanções e humilhação, esteja sofrendo viciosa propaganda e demonização, outra que não o facto de ter decidido voltar a redistribuir a sua terra? Ou porque tentou impedir o Ruanda de realizar mais um golpe de estado na República Democrática do Congo em nome das empresas e governos ocidentais? Ou porque colabora com a China na mineração de diamantes? Ou porque firmemente rejeita o imperialismo ocidental?

 

E a miséria, e as favelas?, pergunto eu ao meu amigo Hezekiel, poucas horas depois.

 

"Há a favela de Mbare", explica. "Mas não é tão terrível como Kibera ou Matare em Nairóbi.”

 

Fui até lá. Mbare não é um subúrbio amigável, mas é pequeno, no máximo um quilómetro quadrado, provavelmente até bem menor. Parece-se mais com South Bronx do que com a Cité Soleil em Port-au-Prince. Possui infraestruturas básicas, incluindo instalações desportivas. Enquanto que lugares como a favela de Kibera em Nairóbi abrigam centenas de milhares (alguns falam de um milhão de pessoas), amontoadas em condições desumanas, a população de Mbare deve ser, no máximo, de dez ou vinte mil pessoas.

 

Os históricos Harare Mountain e Fort Salisbury ficam a cinco minutos apenas de Mbare. Lá, há também um outro parque público e têm-se uma vista privilegiada do centro histórico da cidade e do seu impressionante horizonte.

 

Há um antiga placa comemorativa britânica referindo-se aos colonos como "pioneiros".

 

"Pioneiros!", ri-se o meu condutor de forma sarcástica. "Que grandes pioneiros!"

 

Alguns jovens estão ocupados a fazer flexões. Tudo é muito tranquilo e, de uma certa forma, reconfortante. Não faço ideia porquê, mas sinto-me como se estivesse de volta à América do Sul, nalguma parte desse continente.

 

"Não há problemas de segurança?", pergunto eu sorrindo.

 

"Veja", começa o meu motorista. Ele tem uma mente crítica e um maravilhoso sentido de humor. "Na África do Sul, se sacármos de uma nota de 100 Rands nalgum lugar público, podemos ser mortos. Lá, essa quantidade de dinheiro pode facilmente encher alguns sacos de compras. No Zimbabué, se tirármos uma nota de 100 Rands, as pessoas riem-se de nós, porque não vale nada. As coisas são tão caras." O grupo de atletas pára de fazer flexões e começa a rir.

 

"Tens razão", diz um deles. "Tens toda a razão.”

 

Pouco depois, forma-se um pequeno círculo e as pessoas mergulham apaixonadamente na discussão sobre os preços dos alimentos, a segurança e as próximas eleições. Não há medo como no Ruanda ou no Uganda. Não há tensão como em Djibuti, no Quénia ou na Etiópia, todos esses estados clientes do Ocidente.

 

Ninguém me chama nomes, ninguém me aponta o dedo; sou incluído na conversa.

 

Eles adoram o seu país. A dolarização fez aumentar os preços, e os embargos ocidentais prejudicaram a economia. Mas as pessoas são resistentes e duras e, ao mesmo tempo, muito gentis.

 

"Por que veio aqui?", pergunta-me um dos atletas.

 

"Porque continuam escrevendo, no Ocidente, que Harare é a pior cidade da Terra", respondo eu. "E eu sei que é mentira. Por isso vim, para escrever sobre isso, para dizer que é mentira.”

 

"Porquê? Por que razão te importas com isso? Todos sabemos que é mentira. É uma cidade muito bonita, não é? Mas sentimo-nos impotentes. Eles escrevem essas calúnias sobre nós, e o resultado é que já ninguém vem... o turismo colapsou. As nossas grandiosas cidades antigas e os nossos parques nacionais estão todos vazios. Quem quer vir a um país com uma reputação tão horrível?”

 

"Por que veio contestar essas mentiras?", pergunta um segundo atleta.

 

Penso durante algum tempo, em silêncio. Depois digo-lhes: "Na Venezuela, longe daqui, o presidente Hugo Chávez morreu... ou foi assassinado. Ainda não sabemos. Quando isso aconteceu, eu estava em Nairóbi, mas Nairóbi é um posto avançado do Ocidente e estar lá não me parecia certo. Eu precisava de lutar, de lutar contra tantas coisas, especialmente contra a propaganda que vem do Ocidente. A América do Sul fica muito longe, e por isso decidi vir ao Zimbabué. Pelo menos por alguns dias.”

 

Houve um silêncio longo e profundo. Depois um dos atletas aproxima-se de mim,  abraça-me e diz: "Ainda bem que estás aqui. Eu entendo. Obrigado por ter vindo.”

 

Book Cafe night club with traditional Zimbabwen dances.

Danças tradicionais zimbabuenas no bar Book Cafe

 

À noite vou ao Book Cafe para ouvir música tradicional do Zimbabué. Depois, por volta da meia-noite, consigo entrar no imenso Harare International Convention Center (HICC), onde mais de 6.000 pessoas aguardam a aparição de um dos maiores artistas sul–africanos, Zahara, um músico, compositor e poeta.

 

Nesta "mais horrível cidade do mundo", milhares de pessoas gritam e dançam com os ritmos de Zahara, sussurrando as suas letras; e não há lutas, nem escaramuças, nem lixo, nem violações, nem violência.

 

Caminho de regresso ao meu hotel, a meio da noite, sozinho, em segurança, infinitamente impressionado, apaixonado de repente por esta cidade que tem se mantido de pé, apesar dos embargos, das intrigas e das calúnias provenientes dos antigos e novos mestres coloniais do mundo.

 

Enquanto passeio de forma enérgica pelas calçadas largas e bem iluminadas da capital do Zimbabué, meto-me a pensar nas Brigadas Médicas Cubanas. Estas pessoas, brilhantes e altruístas médicos, são enviados para onde quer que surja a necessidade de ajuda internacionalista, seja devido a um conflito ou a uma catástrofe natural.

 

É exactamente isso que nós (escritores, cineastas e jornalistas) precisamos de criar, precisamos de encorajar, precisamos de arranjar pessoal para Brigadas Internacionais de Investigação, unidades que poderiam expor as ultrajantes mentiras e a propaganda e o niilismo, esses terríveis subprodutos do regime e do Império.

 

Precisamos de formá-las muito em breve, antes que seja tarde demais.

 

Enquanto pensava nisso, embora estivesse caminhando sozinho, eu não me sentia só.

 

Na minha mente, eu continuava repetindo para um abstracto leitor meu: "Obrigado por se juntar a mim; por fazer esta longa e maravilhosa caminhada. Nem tudo está perdido ainda. Nem todos são vendidos. Há milhões de pessoas e muitos países que ainda resistem, não de joelhos, mas firmemente de pé.”

 

André Vltchek

 

Traduzido para o português por Luís Garcia

Versão original em inglês aqui.

 

André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.

 

Fotos de André Vltchek.

 

 

 

 

 

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