Psicólogo de camionistas
BOLEIAS – EPISÓDIO 1
Esta insatisfação, não consigo compreender, sempre esta sensação, que estou a perder. Tenho pressa de sair, quero sentir ao chegar, Vontade de partir, p’ra outro lugar. (Estou Além, António Variações)
PSICÓLOGO DE CAMIONISTAS (Portugal, Espanha, França, 2007) – A primeira boleia que eu e o meu colega Diogo obtivemos na aventura Sudeleste 2007 foi-no oferecida por um camionista português que em Vilar Formoso nos garantiu poder transportar-nos até Irún, junto à fronteira franco-espanhola, mas não mais longe que isso. Perfeito, de uma assentada só atravessaríamos a totalidade da extensa Espanha! Se bem que rolando num camião cujo limite de velocidade é de 90 km/h e com cerca de 600 km para atravessar a viagem prometia ser imensamente longa e monótona. Bom, pelo menos jogávamos pelo seguro e garantíamos que no dia seguinte estaríamos já a caminho de França. Se é certo que de carro se viaja bem mais rápido, a incerteza de encontrar um que pare para dar boleia em Espanha e Portugal, juntamente com as esperas possivelmente de horas entre boleias de carros que por norma são de distâncias bem mais curtas que as dos camiões de transporte internacional, levou-nos a aceitar a generosa oferta do nosso compatriota e partir em direcção ao desconhecido.
O senhor ao início, embora educado e amável, mostrava-se (naturalmente) um pouco reservado e diria até desconfiado. Faltava-lhe algo que lhe mostrasse um pouco das nossas personalidades de forma a assegurá-lo que estava em face de dois jovens aventureiros e não de perigosos assaltantes fazendo-se passar por viajantes. Esse algo veio com as conversas que travámos (eu e o Diogo) ao telefone com o nosso colega Ivo que acabara de sofrer um terrível azar (ler estória La Guardia Civil). Se antes dos telefonemas imperava no ar um certo desconforto resultante do silêncio tímido e/ou receoso, depois, e por vontade expressa do tagarelíssimo senhor, instalou-se naquele camião em andamento um verdadeiro consultório de psicologia para condutores de camiões e análise de seus traumas!
Como os camiões só têm dois assentos (condutor e um passageiro), um (eu) teve de se sentar na cama por detrás dos assentos. No banco da frente ía o Diogo, rapaz muito calmo e tímido e por isso sem pedalada para acompanhar o caudal de histórias, pensamentos e inquietações existenciais ou de outra ordem debitadas pelo infatigável condutor. Com o tempo foi se tornando cada vez mais difícil para o Diogo seguir aquela avalanche de informação desconectada apresentando ainda alguma frase-feita original como resposta que demonstrasse um mínimo de interesse (primeiro genuíno, depois politicamente correcto) pelos incontáveis dizeres do outro. Juntando-lhe ainda os muitos pedidos de opinião sobre assuntos que não lembrariam a ninguém feitos pelo condutor a um Diogo semi-dormente e esgotado, decidi-me finalmente por convidar o meu colega a trocar de lugar. Trocámos mas o Diogo não se veio sentar na cama, antes deitou-se e aterrou exausto por uns tempos. Era a minha vez de ocupar a cadeira de psicólogo ambulante.
Só quem não conhece a vida solitária de um camionista é que poderia criticá-lo pelo seu comportamento aparentemente egocêntrico de falar até mais não, sem demonstrar um mínimo de empatia por nós e tentar aperceber-se se estaríamos cansados de ouvir, ou cansados, simplesmente. Dado o contexto profissional faz todo o sentido este tipo de comportamento embora nem todos sejam assim tão chatos.
O lado bom foi ouvir da sua voz uma miríade de truques, trafulhices, insólitos e mitos urbanos. Por exemplo, o truque de colocar um disco de papel recortado entre os 0 e os 90 km/h e sobrepô-lo ao disco do taquímetro do camião de forma a poder rolar mais depressa sem que fique registada a informação da transgressão (algo que não foi feito na nossa viagem). Hoje em dia os taquímetros são electrónicos e funcionam com cartões magnéticos que tornam a batota mais difícil (mas não impossível segundo outro camionista com quem viajem recentemente). Além do mais engana-se quem julgar que sejam os camionistas os principais culpados. Na esmagadora maioria dos casos a ordem vem de cima, imposta pelo patrão exigindo níveis de rapidez incompatíveis com as leis rodoviárias estabelecidas. E não é só no controlo da velocidade que a batota existe. Muitas empresas e respectivos patrões em vez de enviarem um camião ao seu destino com dois motoristas que trabalhem por turno, arriscam multas avultadas e enviam apenas um que chegam a conduzir mais de um dia sem parar. Uma vez, em Portugal, tive boleia de um camionista que quando parou para eu entrar já viajava à 23 horas! É duro, duríssimo, no entanto a tentação é enorme para quem tem dívidas e famílias para sustentar e muitos acabam por aceitar draconianas condições de trabalho deste género. Coisas do bem-amado capitalismo...
Seguiram-se muitas outras estórias: fait divers sobre o pessoal da sua terrinha, atritos e alegrias familiares, queixas um pouco nacionalistas (com razão ou não) sobre a forma com que são tratados os camionistas portugueses em Espanha, rivalidades e desconfianças entre camionistas de diferentes nacionalidades nos parques de camiões, histórias de camiões assaltados enquanto pernoitam. Selecciono dois mitos urbanos para voz contar, os meus preferidos. Um é sobre o hipotético comportamento de muitos (segundo ele) camionistas que, quando transportam mercadoria que lhes agrade abrem da forma que puderem uma palete e retiram-lhe do centro, por exemplo, 2 caixas de botas, fechando cuidadosamente para que não se perceba que a mercadoria foi alterada. Depois rezar para que o responsável da empresa destinatária, ao descarregar a mercadoria não dê conta da alteração e assine o documento de entrega. A partir desse momento, está arrumado o assunto para o camionista e as botas em falta entram para o prejuízo da referida empresa. Digo mito e não facto pois não posso provar algo a que nunca assisti, mas o nosso camionista assegurou-nos que há mesmo quem o faça e que de vez em quando lhe chegam aos ouvidos relatos do género.
O outro mito é um clássico da estrada. Ao contrário de Portugal, em Espanha as casas de prostituição são legais e pode-se encontrar imensas à beira das estradas que atravessam o país. O nosso amigo, mostrando os seus dotes de GPS mental avisava-nos com uma antecedência de alguns quilómetros (e durante a noite escura que nem breu) a localização da casa seguinte com uma impressionante precisão. Na confirmação de uma dessas previsões acertadas, vendo de passagem os néons piscando num rosa-choque cansado, o camionista sobressaltou-se e começou-nos a contar a estória do seu “mais belo romance”. Segundo ele, trabalhava ali uma formosa e “muito bem cheirosa” jovem de um país de leste (perguntámos qual, mas não nos sabia dizer) que tinha uma paixão ardente por ele e que esperava sempre impaciente pela sua próxima visita ao estabelecimento. “Ali todos pagam, e bem”, assegurava ele, “mas para mim ela fá-lo sempre de graça, e ainda pede para eu voltar, ardendo de paixão”! Ahahah, pois claro...
À 1 hora da manhã chegávamos finalmente a Irún, o camionista estava cansadíssimo pela longa jornada de condução, nós não menos, desabituados a tão longos períodos de tempo enjaulados num veículo e com a cabeça em água de tantas estórias ainda por assimilar. Ele ajeitou a sua cama por detrás dos assentos da cabine, enquanto que nós encontrámos uma relva razoavelmente confortável nos jardins do parque de estacionamento e aí instalámos os sacos de cama. Mau mesmo foi quando a meio da noite começou a cair uma borriça que nos obrigou a procurar refúgio por debaixo de uns arbustos muito pobres em folhagem. Uma noite muito mal passada, sem dúvida!
No dia seguinte encontrámos o nosso companheiro de viagem nas casas-de-banho públicas e juntámos-se a ele para um café matinal no restaurante da estação de serviço. Aí, durante a conversa de pequeno-almoço o motorista convidou-nos a voltar à estrada com ele. No dia anterior ele tinha-nos explicado que, normalmente, camiões com destino a Itália e aos países de leste costumam usar a rota que passa por La Jonquera, junto aos Pirenéus orientais onde passam a primeira noite. Pelo contrário, aqueles cujo destino é o norte da França ou Europa do norte têm por hábito acabar a primeira etapa em Irún (onde nos encontrávamos). Ora, precisamente pelo seu trajecto ser atravessar a França numa diagonal para nordeste que o levaria para Alemanha, de início hesitámos em aceitar o convite. A questão principal era: se por um lado teríamos a hipótese de partir de imediato, por outro dirigir-nos-íamos para a zona errada, o que nos obrigaria posteriormente a fazer quilómetros extra para voltar à nossa rota. Ambas as opções tinha prós e contras e ficámos deveras indecisos. A solução (pragmática) foi a de pedir boleia a outros camionistas na meia hora seguinte, enquanto o camionista português fazia os preparativos para partir e, findo esse tempo, se não tivéssemos encontrado nada de interessante, juntar-nos-íamos a ele.
Meia hora depois estávamos de novo instalados no gabinete de psicologia que conhecêramos na véspera, e lá fomos com o nosso colega de aventuras rumo a França. E sim, as sessões foram retomadas, o camionista tinha recarregado e bem as baterias e encheu-nos de novo a cabeça com mitos e lendas da estrada. À entrada de uma pequena vila francesa avisou-nos para prestar atenção aos passeios pois “desde há muito tempo que ovelhas insistem em pastar nos canteiros sem nunca (e sublinhou veemente o “nunca”) arredar pé”. Nós inocentemente lá destinámos a nossa atenção a observar cuidadosamente todas as árvores e respectivos canteiros que dos quais nos íamos aproximando lentamente enquanto que ele, o motorista, continha-se o mais possível para não se rir declaradamente. A meio da povoação confirmou-se, pela metade, aquilo nos contara. Haviam sem dúvida ovelhas brancas aparentemente pastando na berma da estrada, mas o motivo para “nunca arredarem pé” era o facto de serem recriações feitas de cimento! Ah, como ele troçou de nós, todo contente!
Durante horas a fio atravessámos o verdejante interior francês, vimos alces fugir ao longe nas planícies, assustados pelo barulho dos camiões, tirámos algumas fotos da França rústica e envelhecida e fomos diversas vezes convidados pelo condutor do camião a fazer-lhe companhia mais um dia e viajar até ao seu destino final: região industrial do noroeste alemão! Insistiu e voltou a insistir que estava encantado pela nossa companhia e a nossa paciência para o ouvir (pois não!) e que seria um enorme prazer para ele concluir a viagem connosco. Mas não, não faria sentido nenhum, o nosso projecto era incompatível, o tempo e recursos económicos disponíveis não o permitiriam, não estávamos minimamente interessados em visitar a Alemanha, não nos alegrava a ideia de nos tornarmos psicólogos a tempo inteiro e, aliás, já nos tínhamos desviado muito mais da rota do que jamais poderíamos ter imaginado: parámos ao final da tarde para pernoitar em Sens, vejam lá, quase às portas de Paris!
Desta vez estacionámos no meio do nada, na beira de uma estrada que se perdia na imensidão da planície de plantações de trigo já colhido. Avistámos não muito longe rolos de palha dos quais nos poderíamos servir (pensámos nós na altura) para improvisar a cama desta segunda noite de viagem. No entanto, o céu coberto de nuvens escuras prometia chuva e o camionista veio ter connosco convidando-nos a instalar os sacos-cama nas traseiras do camião junto às peças de motores Mercedes que transportava (ver slide-show acima). O que ganhámos em garantia de uma noite menos molhada que a anterior, perdemos em desconforto ao nos deitarmos sobre o chão rijo e metálico do camião separado dos nossos corpos apenas pelo fino tecido dos sacos-cama.
No dia seguinte pedimos-lhe que nos levasse até uma estação de serviço da estrada Paris-Lyon onde tentaríamos de novo pedir boleia rumo a sul. Mas essa é outra mirabolante aventura à boleia contada na próxima Estória de Viagem!
Luís Garcia, 31.03.2016, Lampang, Tailândia