Por que razão o mundo sofre de Síndrome de Estocolmo, por André Vltchek
Pode parecer incrível mas é verdade: em países que foram atacados e até mesmo totalmente roubados e destruídos pelo Ocidente, muitas pessoas ainda se mostram apaixonadas pela Europa e pela América do Norte.
Há anos que observo este "fenómeno", mesmo nas zonas de guerra e favelas mais pilhadas e devastadas. Muitas vezes sentia-me chocado, outras vezes completamente desesperado. Não sabia como responder, como reagir, como descrever o que tenho vindo a observar.
Entretanto, há alguns dias atrás, na Síria, mesmo ao lado da frente de batalha de Idlib, perto das mortíferas posições da Frente al-Nusra, num país onde o Ocidente e seus aliados assassinaram centenas de milhares de pessoas, um dos meus intérpretes exclamou numa "Patriótica" tirada: "Vejam como é linda esta terra! É quase tão linda como a Europa!”
E à noite, um dos meus guias, nostálgico, começou a recordar os seus gloriosos dias na Europa, quando ele ainda podia lá ir, antes da guerra na Síria ter começado.
Um dos intérpretes não sabia quem era Fidel Castro (eu tinha o seu retrato no qual acende um charuto como meu fundo de ecrã do meu telemóvel), mas ambos, os meus companheiros de campo de batalha locais, eram fluentes em gíria e visão do mundo ocidentais. E, no entanto, não sabiam quase nada sobre a China. São patriotas e apoiam o seu país a cem porcento mas, ao mesmo tempo, admiram o ocidente e os jornalistas ocidentais dos média mainstream, os mesmos propagandistas que ajudaram a sua bela e única Síria a chegar ao estado em que se encontra agora.
Tudo isto me pareceu esquizofrénico mas, definitivamente, não era nada de novo.
Já não aguentava mais. Decidi escrever este estória, apesar de, intelectualmente, ser um "campo minado". Decidi escrevê-lo porque as coisas são como são. Porque tenho de o dizer. Porque alguém tem de o fazer. E, acima de tudo, porque é absolutamente essencial combater a desonesta auto-imagem com a qual o Ocidente tem vindo infectando quase todas as nações do mundo, incluindo todas aquelas que tem saqueado e violado.
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Estaremos nós a lidar com a assim chamada "Síndrome de Estocolmo"? Provavelmente sim. E assim, a vítima apaixona-se pelo seu carrasco.
Durante séculos, o Ocidente tem colonizado e roubado, aterrorizando literalmente o planeta inteiro. Centenas de milhões morreram em resultado do colonialismo, do neocolonialismo e do imperialismo. A sua riqueza, as suas instituições culturais e educacionais, os seus hospitais, transportes, parques, tudo o que a Europa e a América do Norte possuem até à data e do qual se vangloriam, foi construído sobre montanhas de ossos, sobre desenfreados genocídios e pilhagens.
E tal não pode ser contestado, pois não?
Escravidão, assassinato em massa, genocida expansionismo; o Ocidente roubou o mundo e, em seguida, consolidou o seu poder, promovendo o seu excepcionalismo através de implacável lavagem cerebral (à qual chamamos "educação"), propaganda (à qual chamamos "informação") e tresloucado entretenimento para as massas que habitam os países mais pobres (a que chamamos de "cultura" e "artes").
De forma chocante e absurda, a Europa e a América do Norte ainda são amadas e admiradas por muitos, mesmo (ou especialmente) em lugares onde governos e empresas ocidentais arrasaram tudo que nem praga de gafanhotos, deixando para trás, para os locais, apenas terra queimada, veneno e miseráveis favelas.
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Como é que isto é possível?
Há anos que tenho vindo a trabalhar em África, um continente inteiramente subjugado pelo Reino Unido, França, Alemanha, Bélgica e outras expansionistas nações europeias. Essa África onde milhões de homens, mulheres e crianças foram trazidos para o "novo mundo" acorrentados, como escravos. Onde milhões morreram durante a "caçada", onde milhões morreram em "centros de trânsito" e, depois, em mar aberto. Estamos a falar de dezenas de milhões de vidas destruídas! A total pilhagem de recursos, a inimaginável humilhação do povo, as culturas desfeitas, os genocídios e o holocausto contra as populações locais, desde a Namíbia até à República Democrática do Congo! E de grandes heróis africanos como Lumumba assassinados pelos governantes ocidentais!
E, ainda assim, muitos africanos vêem o Ocidente como um grande "exemplo", como uma "luz orientadora", como um "pai" severo mas respeitável, que usa o cinto quando é necessário, mas que também recompensa de forma justa aqueles de entre os seus "filhos" que "se comportam como deve ser".
Repulsivo, sim, mas inegável.
Os maiores escritores africanos encontram-se agora ensinando nas universidades dos EUA e do Reino Unido. Foram "neutralizados" e "pacificados", muitos deles completamente comprados. Em muitos países africanos, os juízes usam cómicas perucas brancas, fazendo o melhor que podem para se parecerem com os seus homólogos britânicos. Os filhos das corrompidas elites vão coleccionando diplomas de universidades britânicas e francesas, e imitando sotaques das classes altas europeias.
Comportar-se, parecer-se e soar como os colonizadores é algo que lhes traz respeito.
O mesmo se aplica ao sub-continente indiano, pois claro.
Os maneirismos por entre as classes altas da Índia e do Paquistão são as mesmas que as do Reino Unido (e, ultimamente, as dos EUA). Ali, as elites desenraízam-se para serem mais britânicas do que as britânicas; mais californianas que os habitantes da Costa Oeste dos EUA. Inúmeras universidades privadas indianas intitulam-se "americanas" ou "britânicas", com "Oxford" ou "Cambridge" frequentemente "decorando" os seus nomes.
Em quase todas as antigas colónias e, portanto, em quase todo o mundo, "ser aceite" na Europa ou na América do Norte é a maior de todas as honras.
Espera-se dos "bem arranjadinhos", bem-educados e modernos asiáticos, latino-americanos, africanos e médio-orientais que imitam os ocidentais; vestir como os ocidentais, comer (e beber) como os ocidentais, "defender os mesmos valores" que eles.
Na realidade, espera-se que sejam muito mais ocidentais do que os próprios ocidentais.
Mas "esperado" por quem? Sim, acertou: muitas frequentemente pelo seu próprio povo!
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Pergunte e verá que muitos no "sul " dir-lhe-ão que tudo o que vem do Ocidente é belo, progressista e janota.
"Todo o bule é bonito", informou-me recentemente uma jovem indígena da cem porcento ambientalmente pilhada ilha de Bornéu/Kalimantan. Bule é uma palavra indonésia vulgar e depreciativa para dizer "branco", que literalmente significa "albino". E, no entanto, a senhora não estava a brincar comigo, era mesmo um elogio. Ela foi criada com a crença que todo o bule é realmente superior e esbelto.
No estado indígena Mexicano do Iucatã, logo após as eleições que levaram ao poder o presidente de esquerda Obrador, ouvi a conversa de uma dúzia de donas de casa de classe alta num dos cafés de uma cadeia ocidental. As suas referências eram completamente europeias e norte-americanas: das férias em Itália e Espanha aos filmes que estavam assistindo, até aos livros que andavam lendo. A Europa é o seu "continente-mãe", e Miami é a sua única verdadeira comparação. Antes de Obrador chegar ao poder, os povos indígenas estavam vivendo cada vez mais na miséria, com os seus telhados quebrados e os seus empregos desaparecendo. Mas as elites encontravam-se, como sempre, num estado de espírito europeu. O verdadeiro México não estava no seu radar, não importava ou nem sequer existia.
Mesmo alguns dos pobres do "mundo conquistado" verdadeiramente "preocupados" com o imperialismo ocidental, vêem-no como um problema abstracto. Eles vêem-no como uma questão estritamente política, militar ou económica. O facto de que o imperialismo ocidental imobilizou "culturalmente" nações e continentes inteiros dificilmente é abordado.
Mesmo nesses orgulhosos países que lutam de forma determinada contra o imperialismo ocidental, na China, Rússia, Irão ou Venezuela, a narrativa de excepcionalismo ocidental já provocou enormes estragos.
Na China, por exemplo, quase tudo o que era "ocidental" estava, até há bem pouco tempo, associado à modernidade. Ser "contra o Ocidente" era considerado algo de aborrecido, cinzento e desactualizado, de alguma forma associado à "propaganda comunista" do passado (e ninguém se importa com o facto de que muitas vezes a "propaganda comunista" estava certa). Esta atitude permitiu que ocorresse uma grande infiltração do mundo académico ocidental nas universidades chinesas, assim como a injecção do niilismo ocidental nas artes chinesas, na sua cultura e até mesmo no seu modo de vida. Só recentemente é que esta perigosa tendência foi invertida, não sem antes terem havido consideráveis danos.
A admiração por tudo o que o Ocidente destruiu; a maior experiência progressista da história moderna: a União Soviética e o chamado "Bloco de Leste".
O poder da propaganda negativa ocidental, em conjunto com a promoção do individualismo extremo, do egoísmo e do consumismo, limpou literalmente todo o zelo internacionalista, humanismo e outros elevados princípios das mentes de dezenas de milhões de jovens checos, polacos, alemães de leste, búlgaros e até mesmo soviéticos.
O outrora orgulhoso Bloco de Leste Comunista, depois de ter libertado dezenas de países do colonialismo e depois de ter lutado por um mundo igualitário, mostrando solidariedade para com todas as nações oprimidas, foi depois gradualmente derrotado por tretas tão reles como as marcas de jeans, as letras sem sentido de músicas rock e pop (a arma preferida do mundo ocidental), a ganância, as religiões (outro arma ocidental) e slogans como "liberdade" e "democracia" (o mundo ocidental, que tem negado a liberdade e a democracia a quase todos os países do nosso planeta, de forma bem cínica, virou a verdade de cabeça para baixo e enganou por completo a Europa de Leste, habilmente aplicando, para o efeito, seculares métodos de propaganda).
No final, confusos e cada vez mais cínicos, o que muitos europeus de leste exigiram não foi "liberdade", mas sim mais dinheiro, mais marcas e a possibilidade de aderir ao bloco de países que têm andado a pilhar o mundo inteiro.
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E portanto, o que faz o Ocidente ser tão bem-sucedido quando se trata da lavagem cerebral de pessoas do mundo inteiro? Como é possível que, depois de todo esse banditismo, terror e crueldade, a maioria dos países oprimidos e conquistados ainda mostrem imenso respeito pelos mestres que residem em Nova Iorque, Londres ou Paris?
Creio que, se encontrarmos respostas para esta pergunta, poderemos salvar o mundo e inverter esta mortal tendência.
Em primeiro lugar, depois de ter interagido com milhares de pessoas em África, na Ásia, no Médio Oriente, na Oceânia e na América Latina, chego à conclusão de que o Ocidente (e o Japão) é muitas vezes admirado pelos seus "altos padrões de vida".
Em países tão miseráveis e à beira do colapso como a Indonésia, ouço muitas vezes disparates como: "os países europeus são mais «muçulmanos» do que nós. Tratam as pessoas muito melhor do que nós.”
Famílias de classe média e alta do Sudeste Asiático andam viajando para a Holanda ou para a Alemanha, e depois exclamam ao voltar para casa: "olhai para os seus parques, hospitais, ciclovias, eléctricos, museus... temos de aprender com eles! Eles fazem tanto para melhorar o nosso mundo.”
É precisamente isso que os africanos admiram na Europa. É isso que sentem muitos dos indianos "educados" ou muitos dos asiáticos do sudeste. É isso que os peruanos, hondurenhos ou paraguaios adoram em Miami.
Estarão eles errados? Haverá, afinal, muita coisa que os países pobres possam aprender com o Ocidente?
Sim, definitivamente estão errados! Estão completamente errados!
Vejamos "porquê".
O Ocidente "organizou" o mundo inteiro de acordo com o seu próprio sistema feudal dos séculos passados e elevou o seu sistema de desavergonhados regimes opressivos à escala global.
Admirar este monstruoso e regressivo sistema global seria como admirar a estrutura das sociedades europeias de há cerca de trezentos anos atrás. Em sua essência, seria como dizer: "Escutai, a aristocracia da França ou da Inglaterra era realmente muito boa, igualitária, educada e saudável, e nós deveríamos aprender com a forma como eles viviam e copiar os seus exemplos!”
Pois claro que a aristocracia, a realeza e a igreja da Europa sempre viveram bem, mesmo há 300 anos atrás. Eles tinham boas escolas para os seus filhos, tinham cuidados médicos decentes, palácios, residências de verão, sanatórios com águas minerais, teatros, parques luxuosos e toneladas de criados.
O único "minúsculo" problema era que cerca de 95% da população tinha que trabalhar para o luxo de que desfrutavam aqueles, subsistindo estes na total miséria. Além disso, é claro, essas dezenas de milhões de pessoas das colónias eram exterminadas como animais.
O mesmo se passa agora. Toda a Europa (com a excepção dos seus pobres) mudou-se para a classe da nova aristocracia, pelo menos comparativamente. E o resto do mundo está trabalhando, morrendo, sendo violado e pilhado, de forma a que se mantenha este "maravilhoso" projecto de estado social ocidental. Mesmo os EUA e o seu modelo turbo-capitalista relativamente feroz, ainda assim, é "socialista" (para os cidadãos dos EUA) em comparação com países como a Indonésia, a Índia, o Peru ou a Nigéria.
Os padrões de vida ocidentais não podem ser replicados noutros lugares. Acreditar que o Ocidente permitiria que africanos ou asiáticos do sudeste construíssem um estado social é algo de ingénuo, intelectualmente quase insultuoso. Singapura, Coreia do Sul e Japão são raras excepções, onde o Ocidente fechou os seus por razões estritamente estratégicas.
Para que o Ocidente prospere, mantendo um nível de vida super elevado, com todos os conhecidos benefícios para os seus cidadãos, milhares de milhões de "servos" em todo o mundo têm de sofrer, sacrificar-se e trabalhar por quase nada. Quantos mais viverem de forma dantesca, melhor.
A natureza tem que ser pilhada em lugares como o Bornéu, a Papua, a República Democrática do Congo e, em breve, o Brasil.
As pessoas têm de ser governadas por corruptos oligarcas pró-ocidentais e pelos seus líderes militares e religiosos. A Arábia Saudita, a Indonésia e agora o Brasil, são países perfeitos para o Ocidente. Estes, feliz e voluntariamente, sacrificam o seu próprio povo, de forma a garantir a prosperidade ocidental.
Você não sabia? Que disparate! Não queria saber! Todas as pessoas (que importam de verdade) estão muito felizes com este arranjo, sendo essas os governantes ocidentais, os cidadãos da Europa, América do Norte, Austrália, Nova Zelândia e Japão, e os governantes/elites dos países pobres. Os únicos que estão verdadeiramente sofrendo são os milhares de milhões de pobres em todo o mundo, mas estes não valem nada e, de qualquer modo, ninguém lhes diz nada, visto que os meios de comunicação sociais, assim como a "educação", estão todos nas mãos do Ocidente e dos seus lacaios.
Quanto mais pobre for um desses países, mais resplandecentes parecerão ser as verdes colinas e as pastagens do Paraíso Ocidental.
E assim, a história perpetua-se.
Na Índia, Indonésia, Uganda, Jordânia, Ilhas Fiji ou Honduras, eu ouço sempre a mesma porcaria da boca de cidadãos locais semi-educados ou com educação ocidental: "as pessoas no Ocidente são realmente muito boas, os seus governos é que são maus." E eu pergunto-me: estarão estes certos disso?
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Francamente, honestamente, estou farto deste status quo. E não acho isto nada divertido, estou farto de ouvir admiradoras declarações sobre os países europeus e outros países ocidentais no meio de horrendas zonas de guerra, em áreas atingidas pela fome, em horríveis minas, nas margens de rios envenenados ou dentro de favelas.
Sou um revolucionário "à antigamente". Os escravos têm de se erguer e lutar. Se necessário, morrer pela liberdade. Não devem admirar seus mestres e carrascos.
Os crimes dos colonizadores têm de ser expostos. Este louca organização do mundo tem de ser bem compreendida e, depois, desfeita em pedaços.
Os adoráveis eléctricos, ciclovias, parques, museus, óperas, cafés, universidades e hospitais da Europa são construídos sobre rios de sangue e os ossos de "Os outros". Disse-o há três anos no parlamento italiano e repeti-o uma e outra vez, onde quer que eu vá.
Não há outro questão que importe mais, neste momento, no nosso planeta.
Tudo está ligado a esta questão, incluindo o medo e o ódio que o Ocidente sente e espalha sobre países como a Venezuela, a Rússia, a China, o Irão, a África do Sul, a Síria ou Cuba.
Eles detestam-nos, detestam aqueles que resistem, que se mantém firmemente de pé. E devem temer! E, oxalá, hão de levar com o mesmo em troca, se a verdade for pronunciada com a necessária frequência!
André Vltchek
Traduzido para o português por Luís Garcia
Versão original em inglês aqui.
André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.
Fotos de André Vltchek.