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Pensamentos Nómadas

Nomadic Thoughts - Pensées Nomades - Кочевые Мысли - الأفكار البدوية - 游牧理念

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Poderão a China e a Rússia sobreviver neste desarmonioso mundo?, por André Vltchek

13.03.19 | Luís Garcia

 

Andre Vltchek Política Sociedade   

 

Será que compensa ser "bom"? Será ainda possível jogar de acordo com as regras neste mundo de loucos governado por bandidos?

 

E se as regras forem definidas e ratificadas por todos os países do mundo mas, um pequeno grupo composto pelas nações mais fortes (militarmente), as ignorarem por completo, enquanto empregam propagandistas profissionais para as reinterpretar das formas mais absurdas? 

 

Ao descrever este mundo, sinto com frequência estar de volta à minha escola primária. 

 

Quando era criança, tive a infelicidade de crescer numa racista Checoslováquia. Tendo nascido na União Soviética e tendo uma mãe metade russa metade asiática, era agredido com violência nos intervalos das aulas, logo a partir dos sete anos. Era sistematicamente atacado e humilhado por um bando de rapazes, por eu ter "orelhas asiáticas", por ter uma "mãe asiática" e por ser russo. No inverno, metiam os meus sapatos ao frio e mijavam neles. A urina transformava-se em gelo. A única consolação era que, "pelo menos", eu era russo e chinês. Se eu fosse um menino cigano (rom), provavelmente não teria sobrevivido sem perder pelo menos um olho ou ficar com as mãos partidas. 

 

Eu tentei ser educado. Eu fiz o melhor que pude para "seguir as regras". Até ripostei, mas sem entusiasmo.

 

Isto até que um dia, quando um miúdo que vivia na casa ao lado, disparou a sua pistola de ar e quase me acertou num olho. Assim, do nada, só porque eu era russo... e asiático, só porque ele não tinha nada de melhor para fazer naquele momento. E porque se sentia muito orgulhoso de ser checo e europeu. E também porque me recusei a engolir as merdas deles, a aceitar a sua "superioridade" e a humilhar-me à frente deles. Quer eu quer a minha mãe sentiamo-nos infelizes na Checoslováquia  e ambos sonhávamos com Leninegrado. Só que ela cometeu um erro pessoal e nós ficámos retidos numa sociedade hostil, provincial e pretensiosa que queria "regressar à Europa" e, uma vez mais, fazer parte do bloco de países que governa e oprime o mundo há séculos.

 

A pistola de ar e quase perder um olho acabaram por ser a última gota. Juntei-me ao meu amigo Karel, cuja única "culpa" era a de, aos 10 anos, pesar quase 100 kg. Não era culpa dele, era um problema genético, mas os miúdos também o ridicularizavam, acabando por o transformar num saco de pancada. Ele era um rapaz gentil e bondoso que adorava música e romances de ficção científica. Éramos amigos. Costumávamos planear juntos as nossas viagens espaciais em direcção às galáxias distantes. Mas, nessa altura, dissemos "basta"! Por fim ripostámos, de uma forma terrível. Depois de dois ou três anos de sofrimento, começámos a lutar contra o bando com a mesma força e brutalidade que eles nos vinham infligindo e, na verdade, a todos aqueles que eram "diferentes" ou pelo menos fracos e indefesos.

 

E ganhámos. Não pela razão, mas pela coragem e pela força. Quem me dera não termos de lutar, mas não tínhamos alternativa. Mais cedo do que tarde descobrimos como éramos fortes. E, depois de termos começado, a única maneira de sobreviver era ganhar a batalha. E ganhámos. Os miúdos que nos atormentavam eram uns cobardes. Assim que ganhámos e garantimos algum respeito, começámos também a dar abrigo e proteger os "outros", principalmente os meninos e meninas mais fracos da nossa escola, que também sofriam ataques do bando de "normais" brancos e tradicionalmente checos.

*

Eles são os auto-proclamados governantes do mundo: Europa, América do Norte, Austrália, Nova Zelândia e Israel. E há dois outros grupos: o das nações que estão cooperando plenamente com o Ocidente (como a Indonésia, a Tailândia, o Japão, a Arábia Saudita, a Jordânia, a Coreia do Sul, a Colômbia ou o Uganda) e o daquelas que decisivamente estão recusando aceitar os ditames ocidentais, como a Rússia, a China, a Coreia do Norte, a Síria, a Eritreia, o Irão, a África do Sul, a Venezuela, Cuba e a Bolívia.

O primeiro grupo não faz quase nada para mudar o mundo. Apenas segue a corrente. Aceita o reinado dos agressores. Colabora e, enquanto o faz, tenta pelo menos ganhar alguns privilégios (na maior parte das vezes sem sucesso).

 

O segundo grupo está bem ciente do estado desolador do mundo. Manobra, resiste e, às vezes, luta até pela sua sobrevivência ou pela sobrevivência de outros. Tenta seguir os seus princípios ou aquilo que costumávamos chamar de "valores universais".

 

Mas será que poderão mesmo sobreviver sem confrontação?

 

O Ocidente não tolera dissidência. A sua cultura tem sido, durante séculos, extremamente agressiva, belicosa e extremista: "estás connosco (isto é, sob o nosso controlo) ou contra nós. E, se contra nós, serás esmagado e algemado, roubado, violado, espancado e, por fim, forçado a fazer o que mandarmos, custe o que custar.”

 

A Rússia é talvez a única nação que conseguiu sobreviver, não tendo sido conquistada durante séculos, mas pagando o inimaginável preço de dezenas de milhões de vidas do seu povo perdidas. Foi invadida, uma e outra vez, por escandinavos, franceses, britânicos, alemães e até mesmo por checos. Os ataques ocorreram regularmente, justificados por uma retórica bizarra: "a Rússia era forte" ou "era fraca". Foi atacada "por causa da sua grande revolução socialista de Outubro" ou simplesmente por ser comunista. Qualquer grotesca "justificação" era mais do que suficiente para o Ocidente. A Rússia tinha de ser invadida, pilhada e terrivelmente ferida só porque resistia, só porque se mantinha livre e de pé.

 

Mesmo a Grande China não conseguiu resistir aos assaltos ocidentais. Foi destruída, dividida, humilhada; a sua capital foi saqueada pelos franceses e pelos britânicos.

 

Nada nem ninguém podia sobreviver aos ataques ocidentais: por fim, nem mesmo o orgulhoso e determinado Afeganistão.

*

Li Gang, um académico chinês, escreveu na sua obra “Como Pensamos: Uma Visão Chinesa Sobre a Filosofia de Vida” que:

«Harmonia» é uma importante categoria de pensamento na cultura tradicional chinesa. Embora o conceito tenha a sua origem na filosofia, representa a vida social estável e integrada. Este influencia directamente a maneira como o povo chinês pensa e lida com o mundo... nas antigas obras clássicas da China, a "harmonia" pode, na sua essência, ser entendida como sendo harmoniosa. Os povos antigos enfatizaram a harmonia do universo e do meio ambiente, a harmonia entre os seres humanos e a natureza, e, acima de tudo, a harmonia entre as pessoas... o povo tradicional chinês toma o princípio como um modo de vida e tenta o seu melhor para ter relações amistosas e harmoniosas. Para alcançar a "harmonia", as pessoas tratam-se umas às outras com sinceridade, tolerância e amor, e não interferem nos negócios dos outros. Como diz o ditado [chinês], «a água do poço não se intromete com a água do rio»."

 

Poderia algo estar mais longe da filosofia da cultura ocidental, a qual se baseia na necessidade constante de interferir, conquistar e controlar?

 

Poderão países como a China, o Irão ou a Rússia realmente sobreviver num mundo controlado por agressivos dogmas europeus e norte-americanos?

 

Ou, mais precisamente, será que poderão sobreviver de forma pacífica, sem serem arrastados para sangrentos conflitos?

*

O início do século XXI indica claramente que a "resistência pacífica" a brutais ataques ocidentais é algo de contraproducente.

 

Implorar por paz em fóruns como as Nações Unidas não leva a lado nenhum. Têm caído países uns atrás dos outros, sem a oportunidade de serem tratados com justiça e de serem protegidos pelo Direito Internacional: Jugoslávia, Iraque, Líbia.

 

O Ocidente e seus aliados como a Arábia Saudita ou Israel estão sempre acima da lei. Ou, mais precisamente, eles são a lei. Distorcem e modificam a lei como bem lhes convém a eles e aos seus interesses políticos e comerciais.

 

Harmonia? Não, estes não estão minimamente interessados em coisas como harmonia. E, mesmo que um grande país como a China esteja interessado, esse logo é visto como sendo fraco e todos se aproveitam dele.

 

Poderá o mundo sobreviver quando um grupo de países joga completamente contra todas as regras e enquanto a maioria do planeta tenta, de forma meticulosa, respeitar as leis e regulamentos internacionais?

 

Pode, mas acabaria sendo um mundo completamente distorcido, completamente perverso, como o nosso já é. Seria um mundo de, de um lado, impunidade e, do outro, medo, escravidão e servilismo para com o outro lado.

 

E, de qualquer forma, não seria um "mundo pacífico", visto que o opressor sempre iria querer mais e mais; não ficaria satisfeito até que tivesse total e absoluto controlo sobre o planeta.

 

Aceitar a tirania não é uma opção.

 

E portanto, que fazer? Estaremos nós demasiados assustados para o dizer?

 

Se um país é atacado, este deve defender-se e lutar.

 

Como a Rússia fez em tantas ocasiões. Como a Síria está fazendo agora, sofrendo enormes sacrifícios, mas com orgulho. Como a Venezuela fará e deve fazer, se for agredida.

 

A China e a Rússia são duas grandes culturas que foram, em certa medida, influenciadas pelo Ocidente. Quando digo "influenciadas, quero dizer vigorosamente "penetradas", invadidas, brutalmente violadas. Durante essa violenta interacção, alguns elementos positivos da cultura ocidental foram assimilados pelos cérebros das suas vítimas: música, comida e até planeamento urbano. Mas o impacto global foi extremamente negativo e, tanto a China como a Rússia, sofreram e têm sofrido imenso com isso. 

 

Durante décadas, o Ocidente tem soltado a sua propaganda e as suas forças destrutivas de forma a "conter" e devastar ambos os países no seu âmago. A União Soviética caiu nas armadilhas do Afeganistão e da corrida ao armamento financeiramente insustentável e, consequentemente, foi literalmente desfeita em pedaços. Durante vários e sombrios anos, a Rússia enfrentou confusão, humilhação e caos social, moral e intelectual. A China foi penetrada por extremas "forças de mercado", as suas instituições académicas foram infiltradas por exércitos de guerreiros "intelectuais" anti-comunistas vindos da Europa e da América do Norte. 

 

Os resultados foram devastadores. Ambos os países, a China e Rússia, estavam de facto sendo atacados, forçados a lutar pela sua sobrevivência.

 

Ambos os países souberam identificar a ameaça. Resistiram, reagruparam-se e aguentaram firmes. A sua cultura e a sua identidade sobreviveram. 

 

Sob a liderança do presidente Xi Jinping, a China é agora uma nação confiante e poderosa. A Rússia de hoje, sob a presidência de Vladimir Putin, é uma das nações mais poderosas do mundo, não só militarmente, mas também moral, intelectual e cientificamente. 

 

E é precisamente isso que o Ocidente não "perdoa". Com cada novo brilhante veículo eléctrico que a China produz, com cada nova aldeia abraçando a chamada "civilização ecológica", o Ocidente entra em pânico, denegrindo a China e retratando-a como um demoníaco estado. Quanto mais internacionalista se torna a Rússia, quanto mais protege nações arruinadas pelo Ocidente (sejam elas a Síria ou a Venezuela), mais implacáveis são os ataques do Ocidente contra o seu presidente e contra o seu povo.

 

Tanto a China como a Rússia vão usando diplomacia desde e quando esta seja construtiva. Só que agora, confrontadas com a força, mostram-se prontas a  usar da força para se defenderem. 

 

Estão bem cientes do facto de que esta é a única forma de sobreviver.

 

Para a China, a harmonia é essencial. A Rússia também desenvolveu o seu próprio conceito de harmonia global baseada em princípios internacionalistas. Não há dúvida de que, sob a liderança da China e da Rússia, o nosso mundo seria capaz de lidar com os problemas mais graves que tem enfrentado.

 

Mas a harmonia só pode ser implementada quando há boa vontade ou, pelo menos, uma categórica vontade de salvar o mundo.

 

Se um grupo de nações poderosas, de forma obcecada, só pensa em lucros, domínio e pilhagem e se, durante séculos e séculos, se comportam como bandidos, então há que agir e defender o mundo, inclusive pela força, se não houver outra alternativa! 

 

Só depois da vitória se poderá tentar alcançar verdadeira harmonia. 

 

No início deste ensaio, contei uma história da minha infância que considero ser simbólica.

 

Uma pessoa pode dar o braço a torcer e pode ser diplomática, mas nunca se a sua dignidade e a sua liberdade estiverem em jogo. E não se pode negociar indefinidamente com aqueles que estão matando e escravizando milhares milhões de seres humanos pelo mundo inteiro. 

 

A Venezuela, a Síria, o Afeganistão e tantos países estão agora sangrando. O Irão poderá ser em breve atacado. E a Nicarágua. E talvez até a própria China e a própria Rússia possam vir a ser mais uma vez confrontadas com uma invasão ocidental.

 

A construção de um "mundo harmonioso" poderá de ter de ser deixada para mais tarde; por certo que será construído um dia, mas terá de ser um pouco mais tarde.

 

Primeiro, temos de garantir que a nossa humanidade sobreviverá e que o fascismo ocidental não possa mais consumir milhões de inocentes vidas humanas .

 

Tal como eu e o meu grande amigo de infância, Karel, numa escola primária na antiga Checoslováquia, a Rússia e a China poderão ter de se levantar e confrontar uma vez mais "a desarmoniosa barbárie"; poderão ter de lutar, a fim de evitar um desastre ainda maior.

 

Não querem fazê-lo e farão tudo o que estiver ao seu alcance para evitar a guerra. Mas a guerra já está em curso. O colonialismo ocidental voltou. A brutal quadrilha de países norte-americanos e europeus está agora bloqueando a estrada, apertando os punhos, atirando em todos os que se atrevem a levantar a cabeça e olhá-los nos olhos. Pode-se ler "Ousariam vocês?" na forma como nos olham!

 

"Sim, ousaríamos", é essa a única resposta certa!

 

André Vltchek

 

Traduzido para o português por Luís Garcia

Versão original em inglês aqui.

 

André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.

 

Fotos de André Vltchek.

 

 

 

 

 

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