Passeios interessantes e encontros oportunos, por Luís Garcia
Cartas da Síria - 3
08.08.2017
Além de muítissimo caro o hostel em que ficámos 2 noites, o seu ambiente social era horrível em todos os aspectos. As empregadas africanas trabalhavam que nem escravas (e não é ironia minha) enquanto que as putinhas europeias (uma francesa e uma alemã) não faziam coisa nenhuma além de trocar mensagens no telemóvel, mostrar as belas perninhas e perguntar de 5 em 5 minutos se queríamos comprar uma bebida ao preço do ouro! Pior, diria, este pessoal que se mete a fazer intercâmbios da treta trabalhando de graça em hostéis de luxo sem ter a mínima empatia pelo pessoal que lá trabalha a sério e que não pensam que estão a roubar os empregos mais aprazíveis a imigrantes e refugiados que bem precisariam deles, sinceramente, provoca-me um profundo nojo. Em vez de mandarem mensagens e perguntarem-me se queria um café a 5$, que fossem antes limpar a nojice de casas de banho do piso de cima junto aos dormitórios! E não, não era culpa das miúdas africanas pois essas não paravam um minuto de tantas tarefas que tinham a realizar. Quanto ao dono e ao gerente, prefiro nem falar, não quero provocar más indisposições aí do outro lado.
- link para o hostel de lixo para new-agers aparvalhados aqui
Por tudo isto e muito mais, mudámo-nos para um hostel bem mais barato (al-Nazih), bem mais limpo, de gente muito boa e no qual os empregados (um refugiado sírio e uma emigrante etíope) são tratados de igual para igual pelo sábio e muito simpático dono. Um magnífico ambiente familiar onde dono e empregados partilhavam comida connosco e não nos deixavam pagar os cafés. Boas amizades que fiz ali, sobretudo com o dono, Mikael, graças ao seu melhor inglês, com quem passei serões discutindo/aprendendo política e história do Médio Oriente. Mas também com a sempre sorridente Lina e o muito querido George, refugiado sírio no Líbano e descendente de refugiados arménios na Síria. Portanto, uma escolha perfeita que se transformou em 2ª casa, graças ao excelente conselho do brasileiro-libanês de quem já falei por aqui.
- link para o hostel al-Nazih aqui
Pouco tempo de pois de termos chegado a este segundo hostel (al-Nazih), apareceu uma miúda espanhola (Julia) acabada de chegar de uma escola para crianças sírias algures junto a campos de refugiados no norte do país. Caía-nos do céu informação preciosa, da boca de gente boa e simpática, sobre aquilo que pretendíamos encontrar por conta própria nos próximos dias. Quem tem um mínimo de noção sobre o tema de voluntariado (e quem não tem, basta que faça uma pesquisa rápida na net), está farto de saber que quase todas as organizações de voluntariado ou ajuda humanitária, sobretudo as maiores, são, pelo menos, formas obscuras de lavar dinheiro sujo e, no máximo, organizações criminoso-mafiosas. O tema hoje não é esse, mas um dia haverá de aparecer aqui um artigo sobre este tema. Dizia eu, é difícil confiar em organizações do género, daí que, por defeito, não confiamos em nenhuma. Depois, para encontrar alguma pequena, honesta e com trabalho genuíno de louvar, há que procurar no terreno, e analisar caso a caso. Pelo que nos contou Julia, a Escola de Malaak parecia encaixar na perfeição no conceito de verdadeiro voluntariado em pequena escala. Pedimos-lhe, claro, os contactos, de forma a dar início à interacção. Também não é o tema de hoje, mas vou já adiantando que esta escola também não é o que pensámos ser depois de ouvir Julia. Enfim.
- link para o sítio da Escola de Malaak
Julia esperava a companhia de uma amiga também espanhola que chegaria mais tarde e, portanto, encontrava-se temporariamente sozinha. Com tanto para explorar em Beirute mas também com tanto a perguntar-lhe sobre a escola para refugiados sírios, convidámos Julia para se juntar a nós num longo passeio a pé pela capital libanesa no qual percorremos 14km. O plano geral era caminhar para sul, na direcção do campo de refugiados (permanente) palestinianos de Chátila, uns quilómetros a sul do hostel, e a mais de meio caminho do aeroporto internacionald e Beirute, onde Júlia iria esperar a chegada de uma amiga sua, enquanto que Claire e eu voltaríamos a pé, por outros caminhos, rumo ao hostel.
Beirute é uma cidade que surpreende a cada esquina, sobretudo pelos extremos que se tocam tão de perto, tudo co-existe lado a lado, até super-modernos edíficios ao estilo norte-americano junto a bairros de casas semi-destruídas cujas paredes ainda mostram milhares de balas cravadas durante os diferentes conflictos que ocorreram aqui nas últimas décadas. E não é só a arquitectura ou o que sobra dela que se misturam. As várias culturas, línguas e religiões formam um cocktail díficil de dissecar para um estrangeiro que não fale árabe. Ainda assim é possível detectar alguma desta riqueza e variedade, como quando nos aproximámos de um vendedor de café ambulante que perguntou-nos se queríamos café ou café turco. Após alguma hesitação, perguntámos e confirmámos que era turco o senhor, e trocámos algumas palavras em turco (que conhecemos das viagens pela Turquia, poucas, mas que nos permitiram falar um pouco mais que o nada do costume (em árabe). Pois sim, pedimos café turco, e pois sim, foi oferta da casa! :)
Muitas horas caminhando sob um calor sofocante dá fome, sobretudo quando se partiu do hostel já com fome e, portanto, mais cedo ou mais tarde, teríamos de parar para comer. Escolhemos um restaurante de shaorma num bairro pobre e muito degradado não muito longe da zona de Chátila. Ninguém falava inglês ou francês mas a boa vontade e simpatia do pessoal, sobretudo do jovem que preparava as shaormas, tornou muito fácil o que poderia ter sido díficil. Não é paranóia minha nem da Claire mas sim fruto das memórias de viagem na Síria. Tal como o sírio empregado do hostel de Mikael, o rapaz que preparava a comida era muito gentil, mas de uma gentileza calma e comedida, não como a gentileza turca ou iraniana de obrigar uma pessoa a comer e beber até mais não da melhor comida e bebida do mundo, hehe. Não, é outro tipo de gentiliza delicada, muito comum na Síria que conheci antes da guerra. E portanto sim, depois de acabado o almoço tardio, perguntámos ao jovem a sua nacionalidade. Sírio, pois claro.
De volta à estrada, caminhámos as centenas de metros que faltavam para chegar ao tristemente famoso bairro palestiniano de Chátila, fruto ignóbil do excepcionalismo criminoso do estado de Israel que rouba, conquista, humilha, aterroriza, tortura e mata palestinianos de forma absolutamente impune, graças à complacência ignorante-zombie da plebe ocidental.
Palestina - História de Uma Terra
(link alternativo, se necessário, aqui)
Apesar do aparato dos check-points e do controlo militar, foi muito fácil de entrar no bairro. À entrada fizeram-nos umas perguntas sobre a nossa presença ali e sobre os motivos da nossa visita, de forma muito cordial, explicámos de boa-vontade e com sorrisos, e fomos gentilmente convidados a entrar. Como bem esperávamos, fomos encontrar um campo de refugiados urbanizado mas sem condições devido ao excesso de população e ao défice de recursos. Ainda assim, dentro de Chátila, quem lá mora tenta levar a vida da forma mais normal possível, como qualquer outro ser humano, ora que espanto! :p Fazer desporto, conversar no café, ocupar-se da loja à beira da estrada, ler um jornal e por aí fora. Mas não é fácil quando falta tanto, sobretudo espaço e empregos (bem ou mal pagos) e quando, para juntarem-se aos milhares de refugiados palesrtinianos permanentes de há quase 70 anos, se juntam nos últimos anos mais uns milhares de refugiados sírios. Miséria acumulada por cima de miséria, criada sempre pelos mesmos países (EUA e Israel), esquecida sempre pelos mesmos estados vassalos (Europa e companhia). Melhor do que ler ou ouvir falar de Chátila, é pegar um voo até ao Líbano e visitar este e outros campos de refugiados permanentes, testemunhos flagrantes da barbárie ocidental.
- Chatila
De volta ao passeio em si, um dos momentos mais belos do dia aconteceu já na saída sul do bairro (tinhamos entrado pelo norte). Bancas de venda de roupa é coisa que não falta por aquelas bandas, e o que mais se encontram são t-shirts de grandes clubes europeus. O que não estava à espera era de encontrar à venda, numa dessas bancas, a camisola da selecção da Síria. Não resisti e aproximei-me para a comprar. Não me espanta que fique contente um vendedor por ter alguém disposto a comprar-lhe algo, pois claro que não. O que me espantou foi o seu entusiasmado espanto acompanhado de uma infinita gentileza e um belo sorriso (como podem ver na capa do artigo). Perguntei-lhe se era sírio, e pois sim, era. :)
Depois de sairmos de Chátila, mudámos de direcção ruma à costa e encontrámos, pelo caminho, uma enorme rotunda com um carro em ruínas no meio, usado como banco pelos adultos, como motivo de brincadeira pela miudagem, e como desculpa para uma pausa e sessão de fotografias por nós. Por não falarmo árabe, não deu para conversar com a criançada que nos rodeava e nos exigia fotos atrás de fotos, mas deu para perceber quem nem todos falavam árabe. Havia línguas estranhas (para nós) por entre o grupo de eufóricos pequenos diabinhos sempre prontos para gritar e para se espancarem uns aos outros. Que loucura. Só quando nos preparávamos para "fugir" da rotunda, cansados de tanta balbúrdia, apareceu um miúdo muito calmo, limpo (em contraste total com o resto dos diabretes), com uma postura de adulto e que falava muito bem inglês. Ficámos então mais uns minutos, trocando ideias e fazendo perguntas ao rapaz e ele a nós, numa conversa imporvável mas interessante até que nos disse que era sírio. Aí claro, para a conversa e tirámos uma foto juntos, para variar. :p
Pouco depois de despedirmo-nos do miúdo sírio, despedimo-nos também de Julia que pegou um autocarro rumo ao aeroporto. Claire e eu continuámos a nossa caminhada rumo ao hostel ainda a vários quilómetros de distância, passando por campos de refugiados à beira de estradas onde passam Ferraris e Lamborghinis, por um bairro palestiniano onde se pode encontrar um graffiti gigante com o retrato de Arafat e, já noite bem escura, por bairros tradicionais onde não se encontram estrangeiros nenhuns mas onde se pode facilmente encontrar gentileza libanesa assim como boa comida local. Numa das muitas lojinhas à beira da estrada comprámos pão árabe, queijo fresco e azeitonas para o jantar no hostel e, já bem perto do centro (e portanto do nosso hostel), encontrámos, para nosso encanto, um bar/caravana com uma grande pintura de Fairuz (mítica cantora libanesa de quem somos fãs). Infelizmente estava fechado o bar e não havia ninguém por perto. No dia seguinte voltámos, mas essa é uma alucinante estória que fica para o próximo artigo. :p
- Fairuz
De volta ao hostel, após a exaustiva mas muito enriquecedora caminhada de 14km, foi tempo de jantarada, cafés com a malta, e conversas até às tantas com empregado sírio, depois com o Mikael (o dono) e por fim com Julia e sua amiga que entretanto chegara. Um dia memorável! Pena que as palavras não me saiam bem e que eu não consiga explicar neste texto o quão excepcional foi este dia. Fica a ideai aproximada. Obrigado pela leitura! :)
Álbuns de fotografia
Luís Garcia, 31.08.2017, Minyara, Líbano
leia mais artigos do tema "Cartas da Síria" aqui