Palangkaraya: Sonhando com a capital "soviética" da Indonésia, por André Vltchek
Acredite ou não, há décadas atrás, a Indonésia era um país socialista, o berço do "Movimento dos Países Não Alinhados", uma nação liderada pelo progressista e impetuoso Presidente Soekarno. O Partido Comunista da Indonésia (PKI) era então o terceiro maior Partido Comunista do mundo, atrás dos da China e da União Soviética e, se não fosse pelo golpe orquestrado pelos EUA em 1965, teria confortável e democraticamente ganho as eleições de 1966.
Todos os estratégicos recursos naturais da Indonésia estavam nas mãos do seu povo e do seu governo, que era firme e intransigente. A Indonésia estava se tornando num dos países líderes do mundo: ainda pobre, mas optimista, determinado e cheio de esperança.
Soekarno era um sonhador, e assim eram os seus camaradas comunistas.
Mas, além de ser um "poeta político", Soekarno era também um pragmático engenheiro civil que sabia uma coisa ou duas sobre arquitectura e planeamento urbano.
Uma de suas grandes visões nascidas no final da década de 1950 foi a de construir uma nova capital para o seu enorme país com milhares de ilhas. Há quem diga que um dia ele calculou a localização precisa do "centro geográfico" da Indonésia, espetou um pionés nesse ponto, e depois declarou que seria aí que a nova ibu kota (capital ou "cidade mãe") viria a ser construída.
O proverbial pionés marcava uma área que, na realidade, se encontrava no meio da selva impenetrável de Kalimantan (a parte Indonésia do Bornéu), a cerca de 200 quilómetros da cidade mais próxima, Banjarmasin.
Antes do início da construção, em 1957, ali havia apenas uma aldeia, Pahandut, a qual pouco depois se tornou a capital da Nova Região Autónoma de Kalimantan Central, com Tjilik Riwut, um camarada de Soekarno, aceitando as funções de primeiro governador. Um ano depois, a futura cidade foi renomeada, passando a chamar-se Palangkaraya.
A ideia de projectar esta área urbana veio do camarada Semaun, que foi um dos fundadores e o primeiro presidente do PKI. Graduou-se na "Universidade Comunista dos Trabalhadores do Leste", na União Soviética. Semaun realizava com frequência tarefas de urbanista e, juntamente com Soekarno, estava determinado em erguer a "segunda Moscovo" no meio de Kalimantan/Bornéu, com magníficos centros de pesquisa, teatros, salas de concertos, bibliotecas, museus e transportes públicos, bem como fontes, avenidas largas, praças, parques e marginais.
Arquitectos, engenheiros e trabalhadores soviéticos (mas também professores) foram convidados para os ajudar neste gigantesco desafio.
No meio da floresta, entre dois rios tropicais, Kahayan e Sabangau, um dos maiores projectos Asiáticos de todos os tempos começava lentamente a ganhar forma.
O projecto foi lançado pelo próprio Presidente Soekarno a 17 de Julho de 1957, com a inauguração de um monumento no meio de uma nova rotunda que, mais tarde, deveria vir a tornar-se o centro da nova cidade, da nova província e, por fim, o centro de toda a República da Indonésia (RI).
O projecto começou a avançar de forma enérgica. Os soviéticos, lado a lado com os seus camaradas indonésios, iam construindo estradas e erigindo infraestrutura.
Havia inclusive planos para a construção de túneis; abrigos antibombas para se protegerem de potenciais ataques das forças malaias e britânicas; túneis preparados para poderem mais tarde ser aprofundados, alargados e servirem como infraestrutura de base para o sistema de transporte público subterrâneo da cidade (metro).
O zelo revolucionário do idealismo de Soekarno impulsionava quer construtores locais quer estrangeiros (soviéticos). Esse caótico mas maravilhoso período de "construção de carácter e da nação", como com muita frequência era descrito pelo maior romancista indonésio Pramoedya Ananta Toer, foi sem dúvida o mais glorioso período da por norma sombria história do arquipélago.
*
E depois, tudo parou de repente!
Entre 30 de Setembro e 1 de Outubro de 1965, o Ocidente, juntamente com quadros militares indonésios traidores liderados pelo General Suharto e por religiosos, derrubou a jovem Democracia Socialista e instalou uma das mais brutais ditaduras fascistas do século XX.
O que se seguiu foi um genocídio. O país perdeu entre 1 e 3 milhões de intelectuais, comunistas, ateus, artistas e professores. Os rios entupiam-se de cadáveres, mulheres e crianças violadas por gangues, quase toda a cultura progressista proibida, juntamente com as línguas chinesa e russa.
O comunismo e o ateísmo também foram banidos. Mesmo palavras como "classe" foram proibidas, juntamente com os dragões chineses, bolos [tradicionais chineses] e lâmpadas vermelhas [também chinesas].
O "projecto" Palangkaraya foi subitamente interrompido. Soekarno foi colocado em prisão domiciliar no Palácio de Bogor, onde morreu mais tarde.
Engenheiros e trabalhadores soviéticos foram levados para Jacarta e deportados sem cerimónias. Todos os indonésios que tiveram contacto com eles, sem excepção alguma, foram mortos ou "pelo menos" detidos durante um período mínimo de um ano, interrogados na prisão, torturados e, no caso das mulheres, violadas.
Os "campos de extermínio" não se encontravam apenas em Java, mas também a norte e a oeste da cidade de Palangkaraya.
O plano-mestre, os desenhos e, na verdade, quase todas a informação relacionada com a "segunda Moscovo" no meio de Bornéu "desapareceu" de repente .
Geograficamente, Palangkaraya é hoje a maior cidade da Indonésia, mas conta com apenas cerca de 250.000 habitantes.
Tal como todas as outras cidades do arquipélago, a sua infraestrutura é inadequada, com notória ausência de vida cultural e está repleta de miseráveis favelas. Não tem absolutamente nenhum transporte público.
Grandes sonhos desmoronaram-se por completo. Mas não foi só isso: agora, quase ninguém na cidade ou em qualquer lugar do país está sequer ciente desses grandiosos planos do passado, daquele enorme projecto de construir uma "Indonésia diferente". Um país verdadeiramente independente, anti-imperialista, liderado pelo Presidente Soekarno e pelo Partido Comunista da Indonésia (PKI), morreu, foi partido em pedaços. A demissão do General Suharto não mudou nada. Nunca chegou a acontecer um renascimento do socialismo. O Partido Comunista e o acto de pensar continuam sendo proibidos.
*
Enquanto trabalhava num documentário sobre a devastação natural e o colapso da terceira maior ilha do planeta, o Bornéu, viemos pela primeira vez para Palangkaraya em Outubro de 2018.
O que mais nos impressionou foi a forma como o regime limpou por completo tudo o que se relacionasse com o passado da cidade.
As pessoas tinham medo de falar, ou simplesmente "não sabiam" de nada. Tal como registei em filme, as crianças não sabiam absolutamente nada sobre o passado, com excepção para aqueles poucos enganosos e primitivos latidos que foram injectados à força nos seus cérebros.
Pesquisámos, mas não conseguimos encontrar nenhumas referências ou desenhos detalhados. Aqui como em Jacarta, Bandung e no estrangeiro, tudo desapareceu!
É evidente que o grande passado da Indonésia continua a ser classificado como "ultra-secreto". Assim é porque o contraste entre os sonhos revolucionários e a monstruosa realidade dos dias de hoje é demasiado grande e, potencialmente, "demasiado explosivo".
*
Aldeia De Pararapak, Distrito de Barito do Sul, Província de Kalimantan Central.
O senhor Lanenson, um homem de 78 anos, de Dayak, parece ser a única pessoa que ainda consegue "lembrar-se" e estar disposto a falar abertamente sobre o povo soviético e sobre o seu envolvimento neste país.
O senhor Lanenson é um homem forte e determinado, um homem com orgulho. O seu rosto mostra-se animado, fala alto, apaixonadamente, como quase todos os homens progressistas da sua geração (sejam eles o maior escritor indonésio, Pramoedya Ananta Toer, que já faleceu, ou o extremamente talentoso pintor javanês, Djokopekik, que ainda trabalha e que mostra um profundo despeito pelo actual regime) são capazes de falar.
Ele trabalhou com os soviéticos, de perto, lado a lado, como um camarada. Antes de 1965, ele era empregado da Agência do Projecto Rodoviário de Kalimantan (PROJAKAL), trabalhando na Divisão de Recursos Humanos.
E ele foi um daqueles que mais tarde foram capturados, presos e brutalmente interrogados, simplesmente porque haviam interagido com cidadãos soviéticos e porque estavam tentando construir, junto com seus amigos estrangeiros, uma muito melhor Indonésia. Ele passou um ano inteiro nas prisões de Suharto, sem que uma única acusação tenha oficialmente sido apresentada contra si.
Após o golpe de 1965 que ocorreu em Jacarta, houve prisões e massacres de pessoas suspeitas de estarem relacionadas com o PKI, ou por serem "Soekarnistas". Todos os que tinham alguma relação com a Rússia foram levados. Eu fui posto num campo de detenção em Palangkaraya.
O exército tratava os prisioneiros de forma desumana. Todas as manhãs acordávamos e depois batiam-nos e insultavam-nos. Os guardas estavam nos brutalizando.”
Os olhos do senhor Lanenson começaram a brilhar de emoção quando a sua mente começou a vaguear pelos passados anterior a 1965:
Os russos, eles são pessoas muito trabalhadoras e boas; eles nunca foram conflituosos para com a população local. Até me lembro de pormenores sobre como passava o tempo com o povo russo. À tarde, depois de acabarmos de trabalhar, jogávamos badminton e às vezes futebol, todos juntos. Às vezes, os amigos russos pediam-me para apanhar um porco selvagem, um javali, para podermos assar e comê-lo juntos. Ainda me lembro do nome de uma professora russa, a senhora Valentina. Mas os muçulmanos, já naquela altura, eram muito conflituosos; alguns eram «anti-soviéticos» apenas porque a maioria do povo soviético não era religioso.”
Será que ele ainda se lembra do entusiasmo da era Soekarno, da "diferente Indonésia" de fazer sonhar, do trabalho duro e da "construção de carácter e da nação"?
O optimismo e o entusiasmo estavam presentes; senti-o quando trabalhei em colaboração com o povo soviético, construindo a cidade de Palangkaraya.”
Ele também acredita fortemente que se o golpe de 1965 não tivesse acontecido, Palangkaraya seria um lugar absolutamente diferente.
Ele proferiu algumas palavras em russo, simples palavras, sem nexo mas, surpreendentemente, com uma perfeita pronúncia. Rabota: trabalho. Zdrastvuite: bom dia…
A certa altura começou a chover. Uma chuva forte e tropical. Eu não conseguia gravar em condições, mas ele não queria parar.
"Podes passar aqui a noite ", sugeriu ele.
"Como no Afeganistão", pensei eu, "sempre que eu lá trabalho e que começo a falar russo", as pessoas querem me hospedar e me alimentar. Querem falar e recordar-se. Porque os sonhos do passado são tudo o que lhes resta agora.
*
De volta a Palangkaraya, a senhora Ida, filha de Tjilik Riwut, senta-se no café que é sua propriedade, cercada por fotos a preto e branco do seu pai, o ex-governador da província, nas quais se pode vê-lo trabalhando, conversando e viajando com o Presidente Soekarno e vários outros altos funcionários, bem como com muitas pessoas locais.
Ela e a sua filha Putri não sabem muito sobre os massacres de 1965. Ou dizem que não sabem. Muitos tópicos, incluindo este, são ainda hoje um absoluto tabu. Ou especialmente agora, agora que a ilha do Bornéu se encontra completamente arruinada, minada, desflorestada e envenenada por corporações estrangeiras e bandidos locais descritos como "empresários", os mesmo que passaram a conduzir os destinos do país após o genocídio de 1965. Talvez simplesmente não queiram abordar o assunto. Nunca o saberei. Seja como for, "elas não sabem".
Mas a senhora Ida fala abertamente sobre esses dias do nascimento da cidade:
Ainda me lembro de quando os engenheiros russos estavam a construir a infraestrutura daqui. Palangkaraya foi construída a partir do zero. Os russos, juntamente com o povo Dayak local, desbravavam a floresta, fazendo um esforço tremendo para converter a selva numa cidade.”
Atrás dela está uma foto antiga de seu pai, com a sua famosa citação escrita por cima:
É minha obrigação lutar por esta região. E é também minha obrigação ouvir as vozes do povo. Assim é porque somos servos do povo e da nossa nação."
Ouvimos basicamente o mesmo da boca de um famoso jornalista local, o senhor T. T. Suan. Infelizmente, encontrámo-lo acamado, gravemente doente. Não queríamos incomodá-lo, mas a sua família insistiu que entrássemos e nos sentássemos à beira da sua cama. Durante a troca de palavras, a sua filha segurou a sua mão e gritou-lhe ao ouvido (ele ficou surdo do outro ouvido depois de ter sido brutalmente espancado, após o golpe de 1965, quando foi acusado de "colaborar com Tjilik Riwut").
Com uma voz fraca mas determinada, explicou:
Ainda me lembro daquela época em que nós, juntamente com os soviéticos, estávamos a construir a progressista cidade de Palangkaraya. Dessa época plena de entusiasmo e disciplina. Sim, os russos realmente nos ensinaram muito sobre disciplina: quando chegávamos ao escritório de manhã e planeávamos as nossas actividades, podíamos apostar que à noite tudo seria implementado.”
Perguntámos-lhe sobre o plano-mestre da cidade, entretanto desaparecido.
Perdido em sonhos, ele começou a recordar detalhes que ainda lembrava de cor:
A rotunda principal, onde era suposto ficar o grande lago. Esse seria o centro da cidade, de onde todas as planeadas estradas haveriam de partir. À sua volta ficariam os edifícios mais importantes e mais impressionantes: escritórios do governo, o Hospital Nacional, a biblioteca, a universidade, museus, teatros, assim como o Rádio Nacional da Indonésia.”
O povo indonésio e o mundo não são supostos saber estas coisas. Mas elas têm de ser conhecidas, documentadas e explicadas. Antes que seja tarde demais, antes que tudo desapareça, antes que morram as pessoas que ainda se lembram.
De uma forma enérgica, temos andado telefonando e contactando a família Tjilik Riwut que se encontra agora espalhada por toda a Indonésia. Dizem-nos que alguns membros desta família possam estar na posse do plano-mestre da cidade. Mas ainda não recebemos nenhuma resposta. O plano-mestre, ou foi destruído, ou foi convertido num documento "ultra secreto" e estará apodrecendo algures num cofre de metal. O optimismo da era socialista foi banido, fortemente desencorajado e quase nunca é discutido. Grandiosos projectos públicos foram interrompidos, depois da imposição a partir exterior de um regime capitalista estremista pró-ocidental, em 1965, que paralisou a nação.
Como noutros lugares da Indonésia, a propaganda e a censura são omnipresentes. Tanto a imprensa como os académicos são cúmplices..
Um arquitecto e professor da Universidade de Palangkaraya, o senhor Wijanarka, autor de um livro sobre o plano de Soekarno para a cidade de Palangkaraya (Sukarno dan Desain RencanaI bukota RI di Palangkaraya), não quis nos encontrar e recusou-se a comentar o contexto político deste tema:
Leia simplesmente o meu livro. O livro fala da pesquisa sobre a estrutura arquitectónica da cidade. Se você me perguntar algo relacionado com a União Soviética, eu lhe direi que não sei, pois apenas me interesso pelo aspecto arquitectónico e não por política.”
Como é óbvio, um socialista plano-mestre da cidade, de estilo soviético, faz parte da "política" pela qual ele diz não se interessar.
*
Na nossa segunda visita à cidade, uma torre eléctrica desabou depois de uma tempestade. Toda a cidade ficou às escuras, sem electricidade. Ficava desesperantemente escuro à noite, à excepção de alguns painéis publicitários de cigarros ridiculamente iluminados, assim como alguns bancos e hotéis usando os seus próprios geradores privados.
Quando chegámos à aldeia de Kelampangan, onde se encontravam por terra os destroços da torre de alta-voltagem, vimos dezenas de trabalhadores a fumar, a rir e a não fazer nada.
De facto, alguns deles chamaram-me "bule", um insulto indonésio violentamente racista e muito comum, que significa "albino".
"Estamos à espera das gruas", disse um deles, depois de eu lhe ter perguntado por que razão estavam todos conversando, fumando e fazendo nada.
Alguém estava a pilotar um drone por cima do local do acidente. Os polícias riam-se. A cidade sofreu durante alguns vários dias, antes da "grua chegar" e a linha ser reparada. Ninguém se queixou. As pessoas estão habituadas ao colapso total da sua ilha e do seu país. Nada é esperado, nada é exigido ao sistema. Nem em Palangkaraya nem em qualquer outro lugar da Indonésia.
*
Na Biblioteca Central de Kalimantan, um empregada começou a falar entusiasmada para a minha câmara e para o meu gravador:
Naquele tempo, depois de 1965, a maioria das pessoas cultas da cidade foram mortas ou presas sem acusações nenhumas... por vezes tudo ficava confuso: nunca soubemos exactamente o que estava de facto acontecendo em Jacarta, tudo eram apenas rumores... Não há um único livro ou referência sobre o quilómetro 27, onde ocorreram os assassinatos em massa, ou sobre os assassinatos na aldeia de Pararapak... E mais, nas bibliotecas, nunca vimos nada parecido com o plano-mestre da cidade…”
No entanto, assim que se apercebeu do real propósito da nossa visita e que viu o cartão com o meu nome, recuou dizendo:
Não use o meu nome, ouviu? Se o fizer, eu processo-o!"
*
A vila ao lado do quilómetro 27 (de Palangkaraya) chama-se Marang. Aí filmo barcos e plataformas ilegais de mineração de ouro, flutuando no rio. Não há protecção, não há medo de ser apanhado enquanto se arruína ilegalmente o ambiente.
A miséria é omnipresente.
Uma vez mais, ninguém sabe de nada. As pessoas riem-se abertamente da nossa cara quando perguntamos sobre os assassínios em massa e as valas comuns.
Por fim, uma senhora idosa, a senhora Aminah, abre a porta da sua casa de madeira e conta-nos sobre esses terríveis acontecimentos do golpe de 1965. Foi como se ela estivesse à nossa espera. Ela veio à porta, ouviu a nossa introdução e as nossas perguntas, e depois começou a falar:
Naquela época eu era ainda adolescente. Só sei dessas histórias da boca de pessoas mais velhas. Nós, na aldeia de Marang, não sabemos o que de facto aconteceu em Palangkaraya ou em Jacarta. Só sabíamos que as pessoas que estavam registadas no PKI haviam sido presas e mortas. Lembro-me que nessa altura, na nossa aldeia, reinava o medo e o obscurantismo. Mas aqui, felizmente, ninguém foi preso, pois não tínhamos membros oficiais do PKI.
No edifício chamado Ureh (Gedung Ureh, na cidade de Palangkaraya), todos os suspeitos de apoiar o PKI ou, de alguma forma, relacionados com ele, foram detidos. Sim, centenas de pessoas foram detidas lá, sem instalações adequadas. Homens e mulheres foram forçados a se misturar. Algumas mulheres foram violadas e engravidaram. A tortura era comum. De lá, pessoas foram trazidas para aqui, para o quilómetro 27, e depois mortas.”
Quantos? "Muitos, muitos..." ela não sabe ao certo. Ela era muito nova, estava muito assustada.
Conduzimos até ao quilómetro 27. Há um rio, uma "floresta secundária". Silêncio. Ninguém sabe. Ninguém sabe nada aqui ou na aldeia de Pararapak. Em ambos os lugares, há um silêncio mortal, periodicamente interrompido pelos motores mal afinados das scooters dos locais.
Encontrámos um riacho onde milhares de corpos foram despejados. Todos aqueles que tentamos abordar, riem-se. É um pouco como no filme de Oppenheimer "O Acto de Matar".
Estes lugares costumavam ser campos de concentração indonésios, dos quais o maior localizava-se na Ilha de Buru, onde quase todos os intelectuais que não foram assassinados, foram detidos após os chamados "acontecimentos de 1965". Aqui, fora de Palangkaraya, aqueles que não têm medo de falar chamam a estes campos de matança mais pequenos: "Buru nos arrozais".
O Ocidente, que tira pleno partido da pilhagem massiva do Bornéu e de toda a Indonésia, apelida este país de "normal", "democrático" e "tolerante".
*
Museu de Balanga, Palangkaraya. Este era suposto ter sido um magnífico Museu Nacional, se os planos de Soekarno tivessem sido implementados.
Agora é apenas um complexo de barracas de um andar, com fraca manutenção, subfinanciadas e com falta de pessoal.
Visitámos um edifício dedicado à colecção de fotos e artefactos da era Tjilik Riwut.
Duas curadoras do museu, ou chame-as de atendedoras, não tinham absolutamente nenhuma ideia sobre como Palangkaraya foi de facto construída. Nada sobre o seu plano-mestre, nem mesmo sobre no que consistia o "plano-mestre".
"Passado socialista da Indonésia?" interroga-se uma delas, depois de eu lhe perguntar. "Na verdade sim, sinceramente, nós aqui socializamos, mesmo agora.”
A curadora do museu não sabia nada sobre os assassinatos em massa na região. Quando insistimos, ela começou a olhar para nós com medo. Queria-nos ver longe dali, longe, mas era demasiado educada para insistir que saíssemos do local.
A outra mulher começou a explicar, sobre o genocídio, que:
Toda a gente sabe, mas as provas foram todas destruídas. As histórias passam de avós para pais, e deles para nós, os filhos. Mas apenas histórias, nada de concreto.”
Meninas, alunas de um colégio local, algumas com 12 anos, outras com 13, primeiro riram-se, depois coraram, quando perguntadas sobre a cidade e sua história. Não sabiam absolutamente nada sobre o passado de Palangkaraya. Perguntadas sobre as condições da cidade, responderam, em uníssono:
A cidade é fixe.”
E o que dizem sobre o futuro da cidade? Recebemos pré-fabricadas respostas "pop":
No futuro, esperamos uma cidade cheia de carros, escolas…”
*
O escritor Indonésio J. J. Kushnir, que nasceu no centro de Kalimantan, mas que passou muitos anos em França, está agora de volta. Vive com a sua mulher em Palangkaraya.
Até agora, não é claro se ele esteve exilado em França ou se ele foi para a Europa estudar e lá ficou durante décadas. O que se sabe é que durante a Orde Baru (a "nova ordem" fascista de Suharto), ele foi proibido de entrar na Indonésia.
Encontrámo-nos com ele, que nos explicou que agora ele se oporia a transferir a capital da Indonésia de Jacarta para Palangkaraya, porque as condições mudaram após estas várias décadas:
Acredito que agora Palangkaraya e Kalimantan Central têm características de semi-colónias. Nos tempos de Seokarno era muito diferente, tudo fazia sentido: se você mudasse a capital para Palangkaraya, militarmente, teríamos espaço de manobra. E os outros, a Malásia e os britânicos. não seriam capazes de nos atacar facilmente. Kalimantan Central encontra-se no meio do país.”
J. J. Khushi conta-nos sobre os campos de concentração e os campos de matança. Ele também descreve um sombrio cenário de desespero, quando fala sobre o actual estado da cidade e da província.
*
Poderia Palangkaraya ser descrita como um fracasso total, um cemitério de sonhos?
Sem dúvida!
Um enorme área da cidade encontra-se repleta, tal como no resto das cidades indonésias, de bairros mal planeados. Há favelas nas margens dos rios, grotescos bairros de lata, alguns sobre estacas, sem saneamento básico e com um extremamente escasso fornecimento de água e de electricidade.
Enormes mesquitas estão sendo construídas um pouco por todo o lado.
Aqui não há cultura e há muito poucos espaços públicos.
Apenas uma cidade indonésia mediana, onde o "estado é incapaz de fornecer serviços básicos aos seus cidadãos" (a definição de um estado fracassado, em teoria).
Kiwi D. Rampai, um arqueólogo de 74 anos, conhecido pelos seus muitos estudos sobre a história de Kalimantan Central, em particular a cultura do povo Dayak, gosta de falar sobre o optimismo trazido para Palangkaraya pelas mãos de Soekarno:
Lembro-me da era Soekarno como um período de grande optimismo e entusiasmo. Palangkaraya foi construída por Soekarno, juntamente com o povo Dayak de Kalimantan Central e os trabalhadores estrangeiros, especialmente os dos Sindicatos Soviéticos. Tudo foi feito com grande dedicação…”
Infelizmente, os estudos históricos conduzidos pelo senhor Kiwok durante décadas nunca receberam o necessária apreço. Alegadamente, houve mesmo uma tentativa de eliminar os documentos, muito provavelmente por razões políticas.
*
Na biblioteca, perguntámos se há muitos investigadores ou pesquisadores indonésios e estrangeiros interessados na história da cidade.
"Nunca ninguém vem fazer perguntas semelhantes às que você fez" é a resposta.
Os soviéticos foram-se embora de Palangkaraya. O seu legado foi aniquilado pelos ensurdecedores gritos de ódio, pelo derramamento de sangue, pela impingida ignorância e por determinadas campanhas de propaganda e intimidação.
Hoje a União Soviética já não existe, embora a forte Rússia anti-imperialista a tenha substituído em muitos aspectos na arena global.
Todos se lembram da "estrada russa", aquela que parte da rotunda e se dirige para oeste.
É permitido mencionar, até mesmo glorificar esta bem-construída via. Mas só se for "fora de contexto". "Os russos construíram a estrada; boa estrada, talvez a melhor estrada jamais construída na Indonésia.” Ponto. Nada sobre socialismo, comunismo, União Soviética. Nada sobre Soekarno, o PKI e nada sobre o estado de espírito anti-imperialista do jovem independente, sim, verdadeiramente independente país.
Na realidade, os russos (não apenas "russos", mas pessoas de todas as partes da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), vieram a Kalimantan para apoiar a recém-independente República Socialista da Indonésia. Vieram para oferecer ajuda e solidariedade internacionalistas, para construir a capital e, eventualmente, a indústria, a infraestrutura, os hospitais e as escolas. Era isso que os soviéticos faziam regularmente em África, no Vietname, no Afeganistão ou no Médio Oriente.
Após o golpe de 1965 apoiado pelos EUA, chegou um novo tipo de pessoas, principalmente do Ocidente, mas muitos de Java tambémm e até mesmo do próprio Kalimantan. Ajudaram a cortar a bela e imaculada floresta tropical, a aplanar as montanhas, a envenenar os rios e a exterminar inúmeras espécies endémicas. Implementaram malignas plantações de óleo de palma. Roubaram ao povo local as suas terras e tudo o que tinham e aconselharam o regime Indonésio a levar a cabo a "transmigrasi": um programa concebido para transformar a população nativa numa minoria na sua própria terra, para que nunca pudessem ter como objectivo a independência. Eles também educaram, ou melhor, "re-educaram" toda uma nação, incluindo a Província Central de Kalimantan: "Eles forçaram as massas a amar os seus carrascos. Transformaram-nos em seres obedientes. Destruíram a sua capacidade de sonhar, de voar, de lutar por um futuro melhor".
A Palangkaraya de Soekarno colapsou. Já não existe.
Tentámos encontrar um lugar sossegado para falar sobre a cidade com a neta de Tjilik Riwut, que voltou recentemente de Jacarta.
Ela tinha pensado em dois lugares. Um deles era um bar cheio de fumo e barulento, com monstruosa "música" rock e pop. Mas era impossível ter uma conversa lá, devido aos decibéis.
O segundo seria um dos dois hotéis mais ou menos decentes que, afinal, era um prostíbulo disfarçado de karaoke bar.
Acabámos por ficar no jardim do hotel.
"O que fazem as pessoas nesta cidade de um quarto de milhão?" perguntávamo-nos nós.
Não havia muito em que ela pudesse pensar. Também não havia muito em que pudéssemos pensar.
Mencionámos o metro, o Teatro Nacional, os grandes belos museus, galerias, salas de concerto, o circo, institutos de pesquisa, parques com fontes, hospitais públicos e universidades com bibliotecas bem abastecidas. Todos públicos, todos para o público. Tentámos envolvê-la numa conversa sobre os sonhos de Soekarno e do seu avô.
Ela mudou de tema.
Nós não.
E o resultado é este ensaio e, em breve, um livro sobre o grande sonho socialista que nunca chegou a ser realizado. Um sonho que foi silenciado, esmagado e denegrido pelo niilismo, servilismo e egoísmo. Mas, quiçá, só por enquanto.
O sonho chamava-se Palangkaraya. E era feito de coisas incríveis: de zelo, de homens e mulheres, lado a lado, altruisticamente construindo uma nova capital para a sua nova e amada Indonésia, no meio do nada, para o povo, sempre para o povo!
Este sonho é demasiado belo. Não poderá jamais ser traído. Não deverá nunca ser esquecido. E portanto, não permitiremos que seja esquecido.
André Vltchek, 2 de Dezembro de 2018
Traduzido para o português por Luís Garcia
Versão original em inglês aqui.
André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.
Todas as fotos do artigo por: André Vltchek.