O que acontecerá se os Coletes Amarelos franceses ganharem?, por André Vltchek
O que acontecerá se os protestantes em Paris ganharem e o governo francês ceder às suas exigências?
O que acontecerá se os impostos forem reduzidos, os salários forem aumentados e o presidente Macron se retirar?
Não me refiro apenas ao imposto sobre os combustíveis, pois a tentativa de impor [um aumento] já foi abandonada. Não me refiro ao aumento do salário mínimo, pois o governo já concordou em aumentá-lo em 100 euro por mês.
Eu refiro-me a reais mudanças de fundo que muitos dos protestantes parecem desejar: uma substancial redução de impostos para a maioria dos cidadãos franceses, um generoso aumento dos salários e uma melhoria nos benefícios social para todos.
Portanto, se os Coletes Amarelos conseguirem obter tudo isto, o que acontecerá? Quem sairá beneficiado? E, por outro lado, quem sairá prejudicado?
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Um dos meus leitores escreveu-me recentemente dizendo que a França deveria reduzir o seu orçamento militar e, com esses milhares de milhões de euros poupados, poderia facilmente financiar as exigências dos protestantes.
Um outro leitor escreveu-me dizendo que os cidadãos mais ricos de França (as "elites", se preferir) deveriam ser fortemente taxados e que o dinheiro recolhido desta forma poderia ser distribuído pelos pobres e pela classe média-baixa.
Soa "razoável"? Sim, sem dúvida; razoável e lógico. O único minúsculo problema é que todos sabemos que tal nunca acontecerá.
O presidente Macron foi levado ao trono precisamente por essas assim chamadas elites. Em troca, esse pessoal rico espera ver garantidos os seus privilégios, ou até mesmo aumentados.
E imaginar que um país membro da NATO (neste caso a França) reduziria repentinamente o seu orçamento militar e que, com o dinheiro economizado, começaria a financiar vários novos programas sociais para os pobres e para a classe média, é irrealista, é infantil até.
Portanto, de onde virão os fundos se o governo francês decidir fazer algo verdadeiramente "radical"; radical pelo menos segundo os padrões do nosso turbo-capitalismo: ouvir o seu próprio povo?
Vou deixar-me de rodeios e colocar a minha questão de forma brutal e concreta: "Se todas as exigências dos Coletes Amarelos forem satisfeitas, quem pagará a conta?"
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Para pôr tudo isto num outro contexto: escrevo este ensaio em Hanói, capital do socialista Vietname.
Há uns tempos atrás, eu costumava viver nesta cidade. Passei mais de três anos aqui, quando [a cidade] ainda era pobre e as pessoas ainda se lembravam da guerra, algumas até [se lembravam] inclusive do colonialismo francês.
Imediatamente após a minha chegada, o que mais me chocou foi que, enquanto o povo vietnamita parecia ter "perdoado" os EUA, nunca tinham chegado a perdoar os colonialistas franceses.
"Porquê?", perguntei eu aos meus amigos. "Como é que isto é possível? Não foram os bombardeamentos e as campanhas de assassinatos durante a «Guerra Americana» (que é conhecida no ocidente como «Guerra do Vietname») terrivelmente brutais, levando à perda de milhões de vidas vietnamitas, cambojanas e laocianas?"
"Claro que foi", foi-me prontamente dito. "Mas nós lutámos e, apesar das horríveis perdas e dificuldades, nós derrotámos os americanos num relativamente curto espaço de tempo. E, de qualquer modo, não foram apenas eles; a coligação era também composta por países como a Coreia do Sul, a Austrália, a Nova Zelândia, o Canadá, a Tailândia e, claro, a França."
E a história continuou:
Os franceses ocuparam-nos e atormentaram-nos durante muito mais tempo. E também humilhavam continuamente o nosso povo. Eles escravizaram-nos, torturaram-nos, levaram as nossas mulheres, violaram-nas e roubaram-nos tudo o que tínhamos."
Perto do local onde costumava morar, havia uma famosa "Prisão Central", equipada com guilhotinas, salas de tortura, células para confinamento solitário. Agora, em exibição, encontram-se monstruosos instrumentos usados pelos colonizadores franceses para torturar e violar patrióticas mulheres vietnamitas capturadas: garrafas de cerveja, cabos eléctricos, bengalas.
O que quer que a colonizada Indochina tinha, foi roubado: levado até França, de forma a financiar a construção de grandiosos teatros, caminhos de ferros, metros, parques e universidades. E sim, para subsidiar a criação desse famoso sistema social francês que, como correctamente é dito agora pelos Coletes Amarelos, está sendo desmantelado pelas "elites" francesas e pelo sistema político que estes controlam por completo.
O povo vietnamita lutou com bravura contra os franceses, acabando finalmente por derrotá-los na icónica batalha de Điện Biên Phủ. Mas as vitoriosas forças comunistas vietnamitas herdaram uma terra saqueada e dividida, destituída de seus recursos e até mesmo dos seu trabalho artísticos (vários intelectuais franceses, incluindo o famoso escritor e depois Ministro da Cultura no governo de De Gaulle, André Malraux, que lá viveu quando era jovem, confessaram ter roubado objectos de arte de Indochina).
Agora pergunte em Hanói, pergunte em Phnom Penh ou em Vientiane, se o povo da "Indochina" (que insultuoso e bizarro nome foi dado a esta parte do planeta pelos franceses durante o período colonial) apoia os Coletes Amarelos em Paris? Pergunte-lhes se eles acham que, se [os Coletes Amarelos] obtiverem em Paris as concessões [que exigem], será melhorada a vida na Ásia.
Consegue adivinhar o tipo de respostas?
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Eu não digo que sejam erradas as exigências do povo que luta nas ruas de Paris. Não, não são. São absolutamente legítimas.
As elites francesas são selvagens, egoístas e até perversas. O actual governo francês está simplesmente ao seu serviço, tal como todos os presidentes dos EUA estão ao serviço das grandes corporações, incluindo aqueles mortíferos conglomerados militares. "Eles devem ir embora", devem desaparecer e dar lugar àquilo que é o lógico padrão evolucionário humano: uma sociedade socialista e igualitária.
Só que estes não estão prontos para partir. Pelo contrário. Há séculos que vêm roubando o planeta inteiro e, agora, vão tão longe como pilhar o seu próprio povo (que estava habituado a receber uma parte do saque).
Os cidadãos franceses não estão habituados a ser pilhados. Durante séculos viveram bem e, durante as últimas décadas, viveram "extremamente bem". Desfrutaram de alguns dos mais generosos benefícios do mundo inteiro.
Quem pagava por tudo isso? E quem se importava com esta questão? Alguma vez foi esta questão importante para os habitantes de Paris, de outras grandes cidades ou do interior francês? Questionavam-se os agricultores franceses sobre a razão pela qual recebiam generosos subsídios quando produziam excessivas quantidades de comida e vinho e, também, quando lhes era pedido pelo governo que não produzissem grande coisa? Tinham eles o hábito de viajar até ao Senegal ou até outros lugares da África Ocidental e investigar como esses subsídios destruíram completamente o sector agrícola de várias antigas colónias francesas? Preocupavam-se eles com o facto de que milhões de vidas foram ali arruinadas por completo? Ou que, em lugares tão longínquos como a Indonésia ou o Brasil, corporações francesas têm agressivamente vindo a tomar conta da produção de comida e bebidas, assim como a distribuição de comida, e que, em resultado disso, o preço da comida tenha disparado para o dobro ou o triplo daquilo que custa em Paris, enquanto os salários locais continuam a ser, nalguns casos, apenas 10% dos salários em França?
E a comida é só um dos exemplos. Mas este ensaio era suposto ser sobre algo ligeiramente diferente: sobre os Coletes Amarelos e sobre o que acontecerá se todas as suas exigências forem satisfeitas.
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Se concordarmos que o regime que governa a França, todo o ocidente e muitas das suas colónias e neocolónias é verdadeiramente monstruoso, perverso e brutal, então temos de chegar à lógica conclusão de que este não irá pagar as facturas de um melhor serviço médico ou melhor [sistema de] educação, nem tampouco baixará impostos nem aumentará salários aos cidadãos comuns franceses.
Se as exigências dos protestantes forem atendidas, haverá outros que serão obrigados a pagar a conta. Muito provavelmente dezenas de milhões ou centenas de milhões serão "taxados". E esses não estão vivendo em França, na União Europeia ou sequer nas redondezas desta.
Será que os manifestantes do Movimento Coletes Amarelos estão a pensar neste problema? Será que se importam, um pouco que seja, com este problema?
Também não o fizeram no passado. Talvez quando umas poucas quantas pessoas como Jean Paul Sartre ainda estavam vivas, estas questões eram periodicamente perguntadas. Mas depois disso não; agora não. Durante esta rebelião dos Campos Elísios não.
Será que as pessoas em França se questionam sobre quantos milhões terão de morrer para que se possa melhorar a qualidade de vida nas cidades francesas e no interior francês?
Ou quiçá, para "compensar", para cobrir as despesas sociais, algum país "teria de ser" invadido? Teria de ser o Irão? Ou talvez a Venezuela?
O The New York Times, num dos seus artigos sobre o interior francês, mencionou o facto de que há quem se queixe de já não terem poder de compra para levar a sua esposa a jantar ao restaurante. Problema deveras sério, mas será que justificaria uma batalha pelo Irão ou pela Venezuela, e sua consequente pilhagem? Ou será que justificaria o massacre de mais umas centenas de milhares na Papua Ocidental?
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Eu sugeriria algo que ajudaria a convencer os verdadeiros internacionalistas, bem como as pessoas em todo o mundo pilhado, de que o Mouvement des Gilets Jaunes não está apenas lutando de forma egoista pelos benefícios que melhorariam a vida dos cidadãos franceses à custa de muitos outros em todo o mundo:
Esses devem explicitar que compreendem e que não são indiferentes aos outros. Digam claramente que são contra o capitalismo e o imperialismo, contra o colonialismo e a pilhagem dos povos e dos seus recursos em absolutamente todas as partes do nosso Planeta!
Digam que são pela liberdade, igualdade e fraternidade de todos os seres humanos, não apenas de franceses!
Digam que isto é revolução de verdade, uma verdadeira batalha para melhorar o mundo, não apenas por mais dinheiro, impostos mais baixos e melhores benefícios exclusivamente para aqueles que vivem em França!
Digam que nunca aceitariam quaisquer benefícios ou dinheiro extra, se fossem fruto do roubo do pouco que sobra em nações pobres e colonizadas.
Se disserem tudo isto, e se demonstrarem que realmente falam a sério, então terei de gritar Vive la Révolution!, e juntar-me-ei a eles (os manifestantes) do fundo do meu coração.
Mas até que o façam, até que eu esteja convencido de que a sua vitória não prejudicaria outros, milhões de outros, eu continuarei muito mais preocupado com as pessoas do Vietname e da Papua, com o Irão, com África, com a Síria ou com todo o Médio Oriente, do que com a possibilidade de um qualquer indivíduo do interior francês poder se dar ao luxo de levar a sua esposa a jantar fora num restaurante.
André Vltchek, 17 de Dezembro de 2018
Traduzido para o português por Luís Garcia
Versão original em inglês aqui.
André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.