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Pensamentos Nómadas

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O público ocidental "não sabe", ou "não quer saber"?, por André Vltchek

09.12.18 | Luís Garcia

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Andre Vltchek Política Sociedade

 

Vivemos numa era na qual a propaganda ocidental se tornou verdadeiramente intensa, surreal até. Sempre assim foi, não haja dúvida, mas agora quem a produz perdeu de todo o respeito pelo público. Quase como se os propagandistas estivessem se rindo entre si, nalgum luxuoso escritório no topo de um arranha-céus, apontando os dedos às massas lá em baixo e dizendo: "Esta gente não tem cérebro. E, de qualquer maneira, estão do nosso lado. Até agora têm engolido, felizmente, tudo o que lhes enfiamos pela goela abaixo. E agora sabemos que engoliriam mesmo a mais ridícula das invenções. Já não há necessidade de sermos cautelosos, podemos lhes servir o que quer que inventemos e o que quer que seja conveniente para o nosso regime".

 

Será que é mesmo assim? Provavelmente é, infelizmente.

 

Recentemente, houve um ataque químico contra a cidade síria de Aleppo, realizada por terroristas apoiados pelo Ocidente. De acordo com minhas fontes da ONU na cidade, especialistas médicos russos imediatamente correram para os hospitais, a fim de tratar as vítimas. Aviões a jacto russos foram enviados para atacar as posições dos terroristas. Todas as evidências apontam para a Jabhat al-Nusra. O cenário é absolutamente transparente. Sim, transparente para si e para mim, mas obviamente não para os meios de comunicação ocidentais que começaram a baralhar os seus relatos quase imediatamente após o ataque terrorista. No dia 26 de Novembro de 2018, a CBS News noticiou, usando uma típica e bizarra dupla linguagem, que:

Ambos os lados negaram o uso de armas químicas e culparam-se um ao outro pelo ataque de Sábado. O jogo de atirar as culpas uns aos outros tornou-se familiar na brutal guerra de 7 anos que o país tem sofrido.

Horríveis imagens de um anterior ataque químico levaram a uma acção militar dos EUA, Reino Unido e França que atacaram com mísseis três locais, os quais, segundo estes, estariam "especificamente associados ao programa de armas químicas do regime sírio."

 

Será que isto é mesmo possível? Sim, é.

 

Confrontado com tão absurdas reportagens ocidentais, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, apenas comentou:

Washington não busca uma investigação objectiva sobre o uso de armas químicas na Síria.”

 

Mas você recebe o mesmo "relato" e a mesmíssima falta de objectividade de sempre, quando os meios de comunicação cobrem eventos na Venezuela, em Cuba, no Irão, na China, na Rússia, na África do Sul, na Coreia do Norte e em dezenas de outras nações que se recusam a se render ao diktat ocidental.

 

Navios ucranianos acabaram de violar as águas territoriais russas, provocando militarmente Moscovo, e o Ocidente imediatamente expressou o seu total apoio a Kiev. Fará isto algum sentido? Sim, claro que sim, se o "sentido" é definido pelos padrões do imperialismo ocidental.

 

Por outro lado, regimes genocidas totalmente criminosos, como os da Arábia Saudita ou da Indonésia, escapam impunes de assassinatos em massa (literalmente), embora você dificilmente ouça falar sobre isso, a menos que a vítima seja um correspondente de um grande jornal norte-americano.
 

Hoje em dia, até mesmo inocentes desenhos animados russos, como Masha e o Urso, não conseguem escapar à vitriólica campanha de difamação. Estas duas personagens, tão amadas em todo o mundo, são agora retratadas pelos meios de comunicação em massa do Reino Unido e dos EUA como sinistras personagens da "máquina de propaganda de Putin".

 

Ultimamente, no Ocidente, até mesmo as tentativas de se parecer, de alguma forma, "objectivo", foram pelo cano abaixo. Tudo, absolutamente tudo o que tenha a ver com os países que o Império considera serem "do mal" (leia-se: independentes), é agressivamente ridicularizado, sufocado e impiedosamente atacado: da cultura à política externa, do sistema económico até, sim, até  personagens de desenhos animados.

*

E o público ocidental, de forma obediente, consome todas estas invenções. Muitas vezes até parece que se "divertem com o espectáculo". A difamação, a humilhação e a ridicularização de todas as nações e culturas pelos doutrinadores ocidentais está se transformando num tipo de entretenimento sórdido, não muito diferente do "entretenimento" proporcionado por aqueles horríveis e vazios filmes de Hollywood que criam pseudo-realidades, esvaziando os cérebros de milhares de milhões de pessoas por todos os cantos do mundo.

 

Muitos dos meus leitores escrevem-me de volta, queixando-se que as suas próprias famílias, os seus bairros inteiros e os seus locais de trabalho foram irremediavelmente doutrinados, que as pessoas "não são mais capazes de ver".

 

Eu quero sempre saber mais; Sempre me questiono se: "Eles não vêem ou simplesmente não quererão ver?"

 

Por muito má e completa que seja a propaganda, há sempre muitas maneiras de descobrir a verdade, inclusive utilizando a internet. E muitos dos que vivem na Europa ou na América do Norte são certamente ricos o suficiente para poderem ver com os seus próprios olhos o que está acontecendo no mundo, particularmente nos países que estão sendo derrubados e destruídos devido à ganância das corporações e governos ocidentais. Em vez de fritarem seus corpos nas praias de ilhas das Caraíbas, ano após ano, podem voar até à Venezuela. Em vez de passarem férias na falsa ilha de Bali (ambientalmente arruinada, congestionada com os engarrafamentos, mas sendo vendida como um "paraíso na terra"), eles poderiam visitar o Bornéu e ver como todo o ecossistema está sendo arruinado pelo extremo capitalismo pró-ocidental. Não estou sugerindo que visitem uma zona de guerra real ou lugares onde ocorram genocídios, como a Papua Ocidental, Caxemira ou a República Democrática do Congo, mas poderiam pelo menos mostrar alguma curiosidade sobre aqueles lugares que estão sendo sacrificados para que possam ser mantidos os ridiculamente altos padrões de vida do Ocidente. Há tantos lugares na Terra onde anualmente milhares, inclusive centenas de milhares, morrem para que os europeus possam desfrutar dos seus cuidados médicos gratuitos, educação e os mais recentes modelos de automóveis.

 

A verdade é de facto muito "desconfortável". A ignorância é como um edredão num inverno frio: aconchegante, reconfortante e difícil de resistir.

 

Os propagandistas ocidentais sabem disso. E contam com isso, oferecendo aos ocidentais uma "fuga fácil" à responsabilidade de partilhar as culpas pelo estado do mundo.

 

“Deixai isso para nós”, dizem-no eles sem o pronunciar. “Deixai-nos ser os mauzões”. “Nós” aqui significa o mundo corporativo, os governos. “Você pode até mesmo gritar que nos odeia, de vez em quando, desde que não chame demasiada atenção, desde que você não comece a desafiar a essência da ordem mundial, desde que você apenas exija, de uma forma egoísta, melhorias nos seus próprios padrões de vida”.

*

Na Europa e na América do Norte, na Austrália e na Nova Zelândia, as pessoas são extremamente conhecedoras. Sabem perfeitamente que iPhone comprar: comparam modelos diferentes online, pesquisam cada detalhe de uma câmara, cada curva, cada função. Antes de partirem com seus dólares ou euros, garantem primeiro que estão realizando o melhor negócio possível. O mesmo se aplica aos carros, aos imóveis, às suas anuais viagens extravagantes a "lugares exóticos".

 

Em contrapartida, não mostram o mesmo zelo quando buscam a verdade. Não comparam a "pseudo-realidade" dos meios de comunicação ocidentais com o que se acredita na Rússia ou na China, ou em países revolucionários da América Latina, ou no Irão e na Síria, ou na Coreia do Norte. Em resumo: os ocidentais "não fazem compras em torno da verdade". E tal torna-os, pelo menos de uma perspectiva ideológica, totalmente fundamentalistas.
 

Mas porquê? Não é o conhecimento a maior das aventuras? E não é a "democracia" uma farsa quando quase toda a gente vê o mundo com os mesmos olhos?

 
A conclusão a que tenho chegado ultimamente é que os ocidentais não pesquisam, não comparam e "não querem saber" porque têm medo.

 

Medo de descobrir a realidade, a qual, por sua vez, os obrigaria a agir. Agir para, pelo menos, remover alguns dos privilégios básicos de que desfrutam os cidadãos dos países colonizadores .

 

Vamos lá dar uma olhada nas notícias sobre o mundo. Enquanto este ensaio está sendo escrito, e como foi mencionado acima, a Síria está se recuperando de mais um terrível ataque químico. A França está possivelmente envolvida. E isto enquanto em França manifestantes vão se confrontando com a polícia. Por que razão? Os altos preços dos combustíveis. Preços dos combustíveis em França. Isto é até onde a Europa está disposta a ir com os seus movimentos de protesto: preços, salários, privilégios, privilégios, privilégios! Quem paga pelos privilégios é irrelevante (para aqueles que vivem no Ocidente). Os europeus só conhecem e só se preocupam com os seus "direitos" e não com as suas "responsabilidades" em relação ao mundo. Querem justiça para si mesmos, mas nunca justiça para a humanidade inteira. Quando eu comparo o quão as pessoas na Ásia têm que trabalhar no duro para sustentar as suas sociedades, e quão pouco estão trabalhando na Europa, de imediato me vem à mente esta questão: quem paga a educação gratuita e os cuidados médicos em Paris ou Hamburgo, quem paga aquelas curtas horas de trabalho ou aquelas seis semanas anuais de férias? Definitivamente não são os próprios europeus. Provavelmente pagam aqueles que vivem em devastados países africanos, ou os papuanos, e seguramente os habitantes nativos da ilha do Bornéu, bem como os árabes e tantos outros.

 

Pensamentos muito desconfortáveis, não são? Para aqueles que os "têm".

 

É por isso que, há dois anos, quando me dirigia ao parlamento italiano, disse aos seus representantes: “Sou contra a assistência médica gratuita e a educação gratuita na Europa porque sou pela assistência médica e educação gratuitas no mundo inteiro”.

 

O Ocidente adora os seus privilégios. Muitas vezes, ou na maior parte das vezes, nem sequer vê privilégios enquanto privilégios, mas sim como direitos inerentes. Estas coisas não são para ser questionadas; vêm naturalmente com o ter-se nascido na França ou na Alemanha, no Canadá ou até, em menor medida, nos EUA (um país com políticas sociais verdadeiramente pavorosas, se medido pelos padrões ocidentais, mas ainda assim incrivelmente generoso se comparado com a África, a Ásia do Sul, o Sudeste Asiático ou o Médio Oriente.

 

Há pouco tempo atrás, andei filmando por todo o México, um país que acaba de eleger um presidente de esquerda pela primeira vez em décadas. Na cidade de Oaxaca, dezenas de mulheres indígenas bloqueavam a entrada do palácio do governador, dormindo em tendas improvisadas. Exigiam justiça. Os seus corpos e almas mostravam cicatrizes. As suas terras foram saqueadas, enquanto muitos delas foram violadas e espancadas por forças paramilitares com ligações ao anterior governo de direita. Parte dos seus amigos e familiares morreram. E tudo isto, simplesmente, porque as "suas terras eram ricas" e porque, no passado, várias empresas de mineração (incluindo empresas canadianas) contrataram exércitos particulares para obter o que queriam.
 

Uma muito mais brutal versão do mesmo está acontecendo na Papua Ocidental, onde empresas americanas, australianas e britânicas empregam exércitos indonésios privados para defender os seus "interesses comerciais". Centenas de milhares de pessoas já foram assassinadas neste processo e toda a ilha está sendo irreversivelmente destruída. Escusado será dizer que nenhum jornalista estrangeiro tem autorização para cobrir o que lá se passa. E nenhuma crítica, nenhuma sanção é imposta à Indonésia ou aos países que participam neste genocídio.

 

Depois do México, voei para a Coreia do Sul e, a caminho, passei dois dias em Vancouver, Canadá, uma das cidades "com melhor qualidade de vida do mundo".

 

Pois sim, é uma cidade incrível. Quem discordaria? Embora sabendo o que sei, ainda assim não consegui desfrutar por completo dos seus encantos.

 

Se você é canadiano e acredita em contos de fadas que dizem que tudo, incluindo riqueza, conforto e segurança, cai directa e milagrosamente do céu para o seu colo, então poderá viver uma vida tranquila cercada de serviços sociais, espaços públicos e magnífica natureza quase intocada (a natureza é saqueada para si em lugares bem distantes, de forma a que você não precise de ver a pilhagem e que o seu egoísta coração demasiado sensível não tenha de sangrar).

 

Muitos no Canadá e noutras partes do Ocidente acreditam em contos de fadas. É bem mais fácil assim, é "psicologicamente mais seguro". E portanto, a sério, se você é canadiano, será que você contrariaria os seus próprios privilégios? E se você é europeu, será que o faria? Procuraria você "a verdade"? Desafiaria você a propaganda do seu regime?

 

Alguns fá-lo-iam, meia-dúzia deles. Mas não a esmagadora maioria .

*

Na maior parte dos casos, não é verdade que a "população ocidental seja vítima de lavagem cerebral". Tal cenário seria de facto bem positivo e relativamente fácil de corrigir.

 

Só que o problema é bem maior: a população ocidental não quer saber porque, no fundo, não quer que o sistema mude. Não quer que a ordem mundial seja alterada.

 

Instintivamente sente que, se o que está sendo proposto pela Rússia, China, Cuba, Venezuela, Irão e outros países fosse implementado, os seus privilégios pessoais desapareceriam. Os seus países tornar-se-iam iguais a todos os outros países deste planeta; teriam que obedecer às leis internacionais e os seus povos serias forçados a trabalhar duro para sobreviver. Saquear o planeta seria banido. Acabar-se-iam os privilégios. 

 

E portanto, é melhor "não saber", não compreender. Dessa forma, não se fica sem a "fatia de bolo, ou a "cenoura", se preferirem. 

 

A "ignorância" no Ocidente é, creio eu, subconscientemente "auto-infligida". Com conhecimento, vem a responsabilidade. Com a responsabilidade vem a obrigação de actuar (visto que não actuar seria claramente imoral). Tudo isto levaria por certo à perda de privilégios. 

 

Os propagandistas ocidentais estão bem conscientes da situação. Alguns psicólogos de renome afirmaram-me que psiquiatras e psicólogos são empregues e usados no processo de "moldagem da opinião pública" e, portanto, trabalham para os criadores de propaganda. Eles estudam e analisam "o estado de espírito do público". Eles conhecem os desejos e as aspirações do público.

 

Tudo isto não é assim tão fácil como parece, certo?

 

Infelizmente, existe um acordo silencioso (sem anúncio nem assinatura) entre o público ocidental e o seu establishment, assim como com o mundo corporativo, de que o status quo deverá ser mantido a todo custo (pago pelos “outros”); o Ocidente deveria ficar com o controlo planeta, com pelo menos uma parte do saque compartilhada por entre as massas (ocidentais).

 

A razão pela qual estes [ocidentais] lutam agora nas ruas de Paris e outras cidades europeias, é saber "quão grande é fatia do bolo a atribuir ao bolso do europeu médio". Não há absolutamente nenhuma luta para acabar com a pilhagem ocidental do mundo inteiro.

 

Infelizmente, o mundo não pode contar com o apoio do público europeu ou o norte-americano na luta para acabar com o imperialismo, o neo-colonialismo e a sistemática e mortal pilhagem.

 

Não é porque o público no Ocidente "não sabe", mas sim porque faz tudo o que pode para não saber. E, se sabe ou suspeita de algo, certifica-se de agir como se tudo ignorasse. Pelos seus próprios interesses egoístas. Pelos seus próprios privilégios.

 

Por outro lado, países como a Rússia, a China, a Venezuela, Cuba, a Síria ou o Irão não conseguem "acalmar" o Ocidente. Enquanto exigirem justiça para todos e uma revisão da ordem global, estes serão difamados, demonizados e, mais cedo ou mais tarde, atacados. O confronto parece inevitável. E será o Ocidente que começará a guerra.

 

Há-de vir mudança e revolução, que até já começam a entrar vindas "de fora", vindas de países que recusam aceitar a brutalidade do Império e o controlo completamente antidemocrático de tantas partes do planeta.

 

E sejamos honestos: o Ocidente lutará, absolutamente unido e de todas as formas possíveis, contra qualquer mudança de relevo que ponha em causa a forma como o mundo se encontra actualmente organizado.

 

Em breve, será o Ocidente (incluindo governos, corporações e cidadãos extremamente obedientes e egoístas) contra o resto do planeta.

 

André Vltchek, 27 de Novembro de 2018

 

Por Lula, de Andre Vltchek

André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são  Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.

 

Foto da capa: André Vltchek

 

Traduzido para o português por Luís Garcia

Versão original em inglês aqui.

 

 

 

 

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