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Pensamentos Nómadas

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O problema do senso comum, da razão e da lógica, por Ricardo Lopes

07.01.17 | Luís Garcia
 

 

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RICARDO MINI copy  SOCIEDADE 

 

- Artigo parcialmente baseado no artigo “Reason and Logic”, que podem encontrar aqui. -

 

Decidi escrever este artigo motiva principalmente pelo facto de verificar que até mesmo pessoas que fazem da ciência a sua vida ou pessoas que se interessam por ciência, muito facilmente recorrem a termos como “senso comum”, “razão” e “lógica”, como se fossem princípios orientadores do método científico, como se fossem ferramentas de trabalho das quais se depende para se poder conhecer o mundo através da metodologia empirista da ciência.

 

Não são. Mas, antes de perceber porquê é preciso perceber a que é que corresponde cada um deles, e o que é que têm em comum.

 

O senso comum não é mais do que o conjunto de crenças e opiniões que são geralmente aceites numa determinada época e num determinado local. Ora, o que é que isto é exatamente? Cultura, certo? Corresponde ao conjunto de todas as ideias que são partilhadas por um grupo de pessoas numa época e local específicos. O que é que isto tem a ver com ciência? Zero. Isto é uma ferramenta utilizada pela ciência, recorrer ao que a pessoa comum pensa sobre um determinado assunto? Não. É um princípio orientador da ciência tratar a informação com base naquilo que a pessoa comum pensa? Não.

 

Por isso é que não percebo porque é que, por exemplo, cientistas se fartam de partilhar publicações no facebook a acusar a religião de não se guiar pelo senso comum. Mas, é absolutamente o oposto! A religião é senso comum! Lembram-se da parte do conjunto de “crenças”? Pois. E também porque é que ficam tão chateados quando alguém que se opõe ao conhecimento científico os acusa de não terem senso comum. Olha, e ainda bem que não. Qual é que é o problema? Se se guiassem por ele, nem sequer eram cientistas, não conseguiam produzir conhecimento ou informar-se sobre ciência de uma forma adequada. Aliás, na verdade nem sequer conseguiriam compreender o método científico.

 

Eu penso que o principal problema que promove a associação entre o senso comum, e também a razão e a lógica, com o pensamento “crítico” e científico é que muitos cientistas tendem a pensar que como a cultura é algo que vem depois do ser humano enquanto ser biológico, ou seja é algo pata o qual é condicionado, e que algo como a religião se adquire através de um processo de doutrinação, há de haver um período em que o cérebro ainda se encontra num estado “virgem” ou “imaculado” em que é capaz de trabalhar informação de uma forma que conduza a conclusões acertadas e produzir conhecimento que corresponde ao mundo real, que existe uma espécie de mecanismo inato de trabalhar informação que se recebe através dos sentidos e organizá-la de maneira a produzir conhecimento acerca do mundo. É também daí que advém a crença de que se deixarmos as crianças explorar o mundo, sem as contaminar com determinadas ideologias, através da sua simples “curiosidade” acabarão por descobrir coisas novas e produzir conhecimento empírico sobre o mundo que as rodeia.

 

O problema é que ninguém nasce, nem vejo que haja evidências para suportar tal teoria, com um mecanismo de raciocínio inato que permite trabalhar a informação que se recebe do exterior de uma maneira ou de outra. Na melhor das hipóteses, e como o sistema nervoso inclui determinado tipo de recetores para proteger o organismo, como recetores de dor, pressão, calor, frio, recetores papilares para determinados sabores e recetores olfativos para determinados odores – e, mesmo assim, isso é em muito maior extensão determinado pela experiência que a pessoa tem. É a experiência que determina os odores que a pessoa considera agradáveis ou repulsivos, o nível de dor que consegue suportar, etc. -, se deixarmos um bebé a explorar o mundo sem critério, então poderá aprender a não comer determinadas coisas depois de ter tido uma indigestão ou dores intestinais, a não beber determinadas coisas porque o deixam nauseado, a não meter a mão no fogo porque queima e dói, entre outras coisas que qualquer humano primitivo, sem acesso aos recursos intelectuais que temos hoje em dia teve de aprender, ou não chegou a aprender e morreu mais cedo e não transmitiu os seus genes à geração seguinte.

 

Isto tudo para dizer o quê? Para dizer que, deixados a explorar o mundo sem critério, e porque não, não há nenhum mecanismo inato de processamento de informação, principalmente do ponto de vista intelectual, os humanos não podem fazer mais do que reger a sua vida por tentativa e erro e ir acumulando viés. Por isso é que criaram a religião, numa tentativa de explicar fenómenos cuja causalidade desconheciam numa altura em que ainda nem sequer existia palavra escrita, quanto mais método científico, e aceitaram isso como conhecimento, porque era-lhes muito mais fácil perceber o mundo como sendo governado por um ou mais seres conscientes que faziam acontecer as coisas por diferentes razões, do que simplesmente ser tudo caótico e sem explicação e, daí, imprevisível. Se deixarmos as pessoas a explorar o mundo sem critério, é este o resultado. Cada um inventa a explicação que lhe parece mais plausível para um determinado fenómeno, de acordo com a experiência que acumulou a interagir com as coisas que existem neste mundo e aquela que soar melhor e der melhores resultados prevalece e dissemina-se entre os outros. O que é que tem de errado inventar uma reza ou um ritual de sacrifício a um deus? Nada, principalmente se se identifica essa ação como causa e, depois, nem que seja meses depois, volta o sol e se pode voltar a caçar com maior abundância ou a semear a terra. O que é que tem de errado inventar uma reza ou um ritual de sacrifício a um deus? Tudo. Primeiro, porque não resultado. Segundo, porque reforça uma ideologia acerca de como se pode conhecer o mundo que não corresponde a nada de real. Terceiro, porque decorrente da primeira acontece merda, e acho que toda a gente deve saber mais ou menos ao que me estou a referir. E, atenção, eu aqui poderia ter substituído a religião por arte, filosofia, economia, política, moralidade, ou qualquer outra atividade humana de produção de conhecimento que se baseie na produção exclusivamente mental de conhecimento.

 

Mas, percebem agora qual é o problema do senso comum e porque é que os cientistas têm a tendência a associar o senso comum ao pensamento crítico e ao método científico, e porque é que não tem nada a ver uma coisa com a outra?

 

Agora, passando à razão e à lógica, que são duas coisas que é praticamente impossível tratar em separado. Aliás, na verdade até é impossível tratar em separado com o senso comum, e nem vejo sequer que sejam três coisas diferentes, apenas porque as pessoas insistem em usar palavras diferentes para as definir. Mas, já lá vamos chegar.

 

Costuma-se designar Aristóteles como o pai da lógica. E a que é que corresponde a lógica exatamente? Bem, em termos de conteúdo, corresponde a qualquer coisa. Em termos de forma, corresponde à coerência discursiva ou textual. Agora, o que é um texto ou um discurso coerente? É aquele que segue uma cadeia de associações demonstradas entre diferentes informações provenientes do conhecimento científico? Não. Ou melhor, não necessariamente. A coerência é, também ela, determinada pelo conjunto de crenças e opiniões, pela totalidade das ideias, que operam numa determinada cultura, numa época e espaço definidos. Os textos do Aristóteles são lógicos, certo? Sim. Os textos do Kant são lógicos, certo? Sim. E quanto daquilo que eles desenvolveram como conhecimento foi validado empiricamente pela ciência? Nada! Ou, o pouco que foi, eles anunciaram-no sem se ater a evidências e calhou que aquilo que lhes soava bem a eles tinha correspondência com algo de real. Mas, por mera coincidência. Por exemplo, foi o Aristóteles que criou a teoria da geração espontânea. O que é que isto tem de verdade? Zero! O Kant baseou o raciocínio com base no qual redigiu os seus livros e criou as suas teorias epistemológicas, estéticas, éticas, etc., nas crenças e opiniões vigentes no seu tempo, como, por exemplo, a filosofia e a moral católicas.

 

Foi o senso comum a levar a que as pessoas acreditassem que a Terra era plana durante muitos séculos. E, de um ponto de vista meramente sensorial, e para quem não tinha acesso aos meios de locomoção modernos, muito menos ao conhecimento e às provas empíricas obtidas do espaço, não era algo perfeitamente “lógico”? Não vejo por que não. Exemplos não faltam, pela história humana fora, acerca de ideias, opiniões e teorias que hoje a pessoa comum considera absurdas e risíveis, mas que noutros tempos tinham a aprovação de todos (senso comum) e eram consideradas lógicas (porque soavam bem aos ouvidos de todos, ou de uma larga maioria, pelo que eram consideradas coerentes).

 

E o que é a razão? A razão, mais uma vez, em termos de conteúdo pode ser qualquer coisa. A razão corresponde simplesmente ao nome que atribuíram ao processo através do qual alguém raciocina. É o tal mecanismo inato de que falava, que muita gente continua a acreditar que existe e que permite que as pessoas atinjam conhecimento relevante acerca do mundo real simplesmente tentando dar-se ao trabalho de pegar na informação que têm na cabeça e estabelecer uma relação “lógica” entre as associações que consigam fazer.  

 

Por exemplo, porque é que o Darwin conseguiu chegar às conclusões que chegou e criar a sua teoria evolutiva das espécies, e o Aristóteles ficou-se pela geração espontânea? O Aristóteles viveu cerca de 2000 anos antes do Darwin. O Aristóteles apenas pôde “raciocinar” com a informação que tinha ao dispor naquele local e naquela altura. O Darwin foi exposto não só a novos dados empíricos que recolheu nas suas viagens, como a teorias de geólogos contemporâneos dele, que influenciaram determinantemente a sua própria, que ele demorou décadas a finalizar mesmo assim.

 

E o mesmo acontecerá no futuro. Aquilo que, para nós, hoje em dia, nesta época e no local em que cada um vive, embora o local seja cada vez menos importante graças à globalização, é “lógico”, é “racional” e faz parte do “senso comum”, mais tarde perderá o estatuto de conhecimento e será substituído por outra coisa qualquer, que, se ainda existir método científico, corresponderá a uma melhor aproximação à realidade do que a teoria que é agora vigente.

 

Se ainda é difícil perceber porque é que não existe uma “lógica”, uma “razão” e um “senso comum”, e porque é que nada disso conduz a conhecimento relevante do mundo, nem sequer são ferramentas ou fazem parte dos princípios do método científico, basta pensarem em tudo o que a ciência descobriu ao longo da história e que foi contra o conjunto de crenças e ideias vigentes na sociedade da época e do local e de tanta coisa “contraintuitiva” que foi validada empiricamente. Mais uma vez, imaginem viver no paleolítico e não terem acesso ao conhecimento moderno do mundo. Imaginem viver na Idade Média e não ter qualquer conhecimento acerca do movimento dos astros no céu, nem acesso a matemática, muito menos acesso a vaivéns espaciais. Imaginem viver num mundo em que os fósseis ainda não tinham sido descobertos. Imaginem não saber nada acerca de átomos e moléculas. O que seria “racional”, “lógico” e “senso comum” para vocês? Sem essa informação, e apenas com a pouca que tinham disponível no vosso cérebro para refletir e estabelecer associações, a que conclusões “lógicas”, “racionais” e “sensatas” é que chegariam?

 

Por isso, é que não serve para nada insistir com as pessoas para serem “racionais” ou usarem a “lógica” ou acusá-las de não serem nada disto e de lhes faltar “senso comum”. Nada disso vai mudar nada, se não for mudada a informação que as pessoas têm na cabeça.

 

E, também por isso, é que o raciocínio, a reflexão, ou o queiram chamar ao ato de tentar produzir conhecimento por um processo meramente ideológico, não pode nunca conduzir a descobertas ou a teorias que tenham validade empírica nem que correspondam a algo de real, a não ser por mera coincidência ou golpe de sorte.

 

O que interessa é a informação que as pessoas possuem e o seu grau de adequação à realidade, nada mais. O que interessa não é passar horas sentado num sítio a pensar muito, mas sim obter mais informação sobre um assunto ou, no caso de não existir, desenhar um método de estudo para obter mais informação e, então sim, estabelecer associações com toda a informação recolhida sobre um determinado assunto.

 

Termos como “lógica”, “razão” e “senso comum” são termos que foram criados e correspondem a uma forma primitiva de pensamento, a epistemologia ideológica, ou idealismo se quiserem usar o termo filosófico comummente aceite, que correspondem à crença na possibilidade de extrair conhecimento do “mundo das ideias”.

 

Ricardo Lopes

 
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