O problema das figuras de autoridade e da propriedade intelectual, por Ricardo
Para mim, deixou de haver dúvidas, há muito, de que todos os problemas que existem no mundo moderno – e que sempre existiram ao longo da história humana, apenas agravados pelo facto de se ter vivido, até recentemente, em circunstâncias de real escassez de recursos, devido ao precário desenvolvimento tecnológico – derivam da cultura humana, ou das suas diversas culturas, que têm problemas em comum. Os problemas culturais em comum já referi de forma breve noutro artigo, podendo vir, no futuro, a trata-los de forma mais profunda.
Aqui, quero referir-me a um dos principais entraves ao desenvolvimento do conhecimento sobre o mundo material (o único que existe), portanto ao desenvolvimento científico e ao aproveitamento das capacidades humanas no geral e da instrumentalização com fins humanísticos e ambientais da tecnologia.
As figuras de autoridade são aquelas pessoas quem atribuímos o mérito por determinadas descobertas, pelo avanço do conhecimento sobre um determinado assunto, por determinadas invenções, por orientarem a vida de um grande número de pessoas através das suas ideias. Os problemas que derivam desta visão unidirecional e unifatorial de acontecimentos históricos no âmbito da produção intelectual, são variados.
O primeiro grande problema é construir, com base nisso, uma visão histórica errónea e altamente limitada, neste caso da evolução do conhecimento humano. Como eu expliquei brevemente neste artigo, é preciso conhecer todo o contexto em que os autores de determinadas ideias viveram, para perceber que as suas ideias foram tão somente o fruto das influências que receberam, da cultura para a qual foram condicionados e a sua própria experiência. Aliás, muitos avançaram grandemente o seu trabalho ao roubar ideias ou instrumentos criados por outros, que por sua vez foram o resultado de modificações graduais ao longo da história, pela mão de muita gente.
O segundo grande problema é que, a partir do momento em que se reconhece alguém como autoridade, e como há tanta informação para processar e somos condicionados para reconhecer incondicionalmente a autoridade daqueles que a adquirem ou nascem com ela (e antepassados deles adquiriram, normalmente por via da força), qualquer coisa acerca da qual teçam considerações é automaticamente levada a sério e tida em consideração. Não apenas isso, como normalmente adquire instantaneamente o estatuto de verdade. Querem um bom exemplo disto? Quando o Linus Pauling, depois de ter arrecadado dois Prémios Nobel, decidiu divulgar publicamente a crença em que a vitamina C curava a constipação. Até hoje não se produziu um único estudo científico que validasse a sua hipótese, antes pelo contrário. No entanto, não só isso se disseminou na cultura popular, como cerca de 50 anos depois, ainda é considerado verdade entre as pessoas não educadas para o método científico e que não fazem trabalho na área, até mesmo entre muitas pessoas com formação científica e, apenas porque Pauling o proferiu, adquiriu imediatamente estatuto de verdade, ou de teoria em termos científicos.
O terceiro grande problema, e em consequência do segundo, é que tal atitude para com as figuras de autoridade normaliza situações como aquelas em que se considera que tudo o que há de importante a considerar sobre um determinado assunto se resume ao que determinada figura de autoridade refere acerca dele. Numa linguagem mais simples, tudo o que há de importante sobre um assunto é aquilo que uma figura de autoridade identifica comofatoresatuantes nele. Por exemplo, se o Žižek, que agora é uma das grandes estrelas pop dos esquerdistas, diz que o único problema da disputa entre os produtos de agricultura biológica e os organismos geneticamente modificados é que o seu consumo está relacionado com o status que dele se pode derivar, então quem lhe reconhece autoridade sentir-se-á suficientemente informado para sair por aí a dizer que esta é a única questão. O facto de existir vasta bibliografia científica que demonstra os problemas dos produtos provenientes da agricultura biológica, as mentiras perpetradas pela indústria, e as vantagens atuais e futuras dos OGMs não interessa. Ou seja, alguém que reconhece autoridade a outra pessoa sente-se satisfeita com aquilo que essa pessoa é capaz de servir em termos de conhecimento sobre qualquer assunto que seja, que, normalmente, é muito pouco, principalmente nos dias atuais em que são publicados milhões de artigos científicos pelo mundo fora, tornando-se impossível para alguém manter-se atualizado sobre todos os assuntos. E, claro, também de outras áreas não consideradas científicas, mas de importância para o conhecimento do mundo real, como a História. Até mesmo ao nível da inteligência artificial é difícil desenvolver algoritmos suficientemente bons para manter uma monitorização e produzir resultados relevantes acerca de toda esta esmagadora quantidade de informação.
O quarto grande problema prende-se com o facto de, perante uma cultura de culto da personalidade, tende-se a menosprezar o facto de que qualquer pessoa que nasça com um cérebro funcional, se criada num ambiente propício, é capaz de contribuir tanto para a produção de conhecimento como qualquer outra. Não existem capacidade inatas. Existiram, e ainda existem, inúmeras pessoas ao longo da história humana que dedicaram toda uma vida à produção intelectual em torno de meras ideologias e, portanto, de coisas que nem sequer correspondem a nada de real, e foram consideradas génios. Outros houve, também, que se trabalharam com os recursos que tinham à disposição na altura para tentar fazer avançar o conhecimento sobre determinados assuntos, e não conseguiram, não por limitação cerebral, mas sim por limitação das circunstâncias que lhes determinaram as limitações da época. Leiam as histórias dos considerados grandes intelectuais da história humana. Não houve um único que não teve um acesso privilegiado a boas condições económicas, teve acesso a educação, foi incentivado pela família a ler e teve a sorte de ter tido contacto com determinadas ideias de outras pessoas. Não há um único com quem isso não tenha acontecido. Quem não nasceu privilegiado, conseguiu, de uma forma ou de outra, atingir uma situação de privilégio que lhe permitiu ter acesso a conhecimento sob a forma escrita. Ou seja, é um processo, é alto que resulta de muito trabalho, do contacto com muito conhecimento produzido por outros, do contacto com muitas teorias e instrumentos que foram sendo aprimorados ao longo de muito tempo. Nada disto é inato. Não há pessoas que nascem com mais capacidades do que outras. Há pessoas que recebem influências diferentes de outras e há os privilegiados que conseguem ter acesso a informação. Peguem em qualquer pessoa de onde quer que seja, ensinem-na uma determina língua, ou várias, ensinem-na a ler e, atualmente, a ver documentários, ensinem-na a utilizar determinadas ferramentas mentais e instrumentais para produzir conhecimento, ensinem-na o método científico e deem-lhe acesso irrestrito a fontes de conhecimento relevante sobre o mundo em que vive, e vão ver o grande “génio” que dali resulta. As pessoas são as suas circunstâncias, não há nada de inato em ninguém, exceto determinados mecanismos reflexos, que não têm nada que ver com capacidades intelectuais nem com desenvolvimento pessoal.
E, agora, e por fim, o quinto grande problema (que eu pretendo identificar neste texto, que não é, nem pretende ser, uma exposição exaustiva do assunto), é um grave entrave que o culto da personalidade representa para o avanço do conhecimento e o desenvolvimento científico e tecnológico no mundo moderno, já livre das amarras da escassez natural (mas insistindo na escassez artificial, da qual esta é um dos fatores, sob a forma de escassez de recursos intelectuais). É compreensível que, num sistema de escassez, se tenha promovido, outrora, a propriedade intelectual. Afinal e contas, é disso que depende a sobrevivência das pessoas que dedicam a sua vida à produção intelectual, ao desenvolvimento tecnológico, etc. Também é por isso, e porque vivemos atualmente num sistema de escassez artificial, que muita gente ainda se insurge contra a pirataria, existem direitos de autor, patentes, leis contra o plágio, e toda uma panóplia de legislações a defender das mais variadas formas a propriedade intelectual. Tudo isso, eu consigo compreender perfeitamente num sistema de escassez. Agora, quando temos ao nosso dispor todos os meios para superar a escassez, a propriedade intelectual impede o acesso a informação relevante por parte de pessoas que não têm meios económicos para lhe aceder e promove a competição, devido a questões de ego que se imiscuem na atividade. A competição até pode, pelo menos em algumas situações, motivar as pessoas a produzir seja o que for. No entanto, essa mesma competição promove o desperdício de tempo em atividades que não têm nada a ver com o objetivo final de produção de conhecimento, como a autopromoção, os debates e demais guerrinhas estabelecidos com os oponentes. No caso particular da competição no mundo comercial, conduz a um desperdício enorme de recursos naturais, uma vez que existem diferentes empresas que oferecem o mesmo tipo de produtos com ligeiras diferenças, que normalmente nem sequer estão relacionadas com a sua qualidade ou performance.
Os problemas de ego, claramente, surgem num sistema de escassez de recursos, materiais e intelectuais, no qual as pessoas têm de competir por recursos finitos e escassos. Mas, em conjunto, e aproveitando os biliões de cérebros humanos de que dispomos, e através de coisas como o Maker Movemente (ou Maker culture), que conseguiu tornar Shenzhen na capital mundial do desenvolvimento de hardware, um ambiente no qual participa muita gente, no qual cada um dá o seu contributo, cada um melhor um aspeto ou vários de uma peça de hardware, até chegar ao produto final que é o melhor desenvolvimento possível de um conceito que foi resultado de muitas pessoas e muitos cérebros a cooperarem em vista do mesmo objetivo, e que demonstra que se pode acelerar muito o desenvolvimento tecnológico com a participação de mais pessoas que aprendem fazendo e com acesso aos recursos e à informação certa, que está disponível para todos, numa cultura open-source. Juntem a todos os biliões de cérebros humanos a inteligência artificial aliada à Big Data derivada da Internet of Things, e poderão facilmente vislumbrar o quão poderíamos acelerar a produção e atualização do conhecimento e o desenvolvimento tecnológico. A automação de processos, o tratamento computacional de dados e o desenvolvimento da inteligência artificial não são coisas “más”. A aplicação da ciência e da tecnologia depende de quem as aproveita, da forma como a instrumentaliza, e do contexto no qual são aplicadas. Aquilo que pode conduzir a diversas formas de tumulto social, pelo facto de as pessoas perderem empregos por via da automação do trabalho, poderia, noutro contexto, conduzir a uma abundância de recursos materiais e intelectuais e a um aceleramento da aquisição de conhecimento sem precedentes históricos.
A propriedade intelectual é apenas mais um dos entraves culturais que se perpetuam no sistema capitalista, com uma grande força histórica por sempre ter estado presente ao longo das diversas culturas hegemónicas. E, porquê? Porque o sistema capitalista promove a escassez e, como tal, tudo aquilo que se manifestava no comportamento humano e que determinava a formulação de normas e regras sociais num real sistema de escassez de recursos, como foi aquele em que todos os humanos viveram até há bem pouco tempo, de um ponto de vista histórico, foi continuado através do sistema capitalista, que promove a escassez de uma forma artificial.
Mas, as coisas não têm de ser assim e, depois daquilo que aqui expus, podem encontrar bastantes semelhanças entre o fim da propriedade intelectual, a apropriação coletiva dos meios de produção e do conhecimento, como uma defesa do marxismo. Mas, não é. Não é, porque Marx acreditava que o simples desenvolvimento tecnológico conduziria a uma abundância tal que as pessoas seriam libertadas do trabalho imposto pelos burgueses. Mas, tal não aconteceu, porque as pessoas não podem contribuir para soluções coletivas sem estarem munidas de conhecimento relevante acerca do mundo que as rodeia. O sistema educativo público foi criado no século XIX, na Prússia, com o intuito de criar trabalhadores e soldados, e de promover o nacionalismo, e não com o intuito de providenciar real conhecimento às pessoas. Por isso, muita coisa tem que mudar e, ao contrário do que Marx teorizou, as pessoas não conseguem unir-se e encontrar soluções coletivas alternativas espontaneamente perante um desenvolvimento tecnológico tal que cria condições de abundância, como nunca existiram antes. Não, isso não acontece se as pessoas não tiverem acesso a conhecimento relevante, se continuarem a ser condicionadas pela mesma cultura que se produziu num sistema de escassez natural e que continua a condicionar pessoas que vivem num sistema de abundância.
E também é por isso que, para terminar, vos deixo o link para um livro (The Money Game and Beyond) que faz uma exposição detalhada do sistema económico em que vivemos, de escassez artificial na sua forma moderna, e de soluções alternativas a tal, em conjunto com outros links que fui deixando ao longo deste artigo e todos os restantes artigos e livros que podem encontrar no site TROM (The Reality of Me).
Ricardo Lopes