O estado atual do mundo humano e como o resolver (2/2), por Ricardo Lopes
Revolta-me que, depois de milénios de abstenção de críticas realistas à atividade religiosa, agora ninguém se chegue à frente para tecer o mesmo tipo de críticas a todas as atividades ideológicas que lhe são afins, e que são instrumentos, utilizados de uma forma mais ou menos intencional e voluntária, de manutenção do status quo.
A arte não vai salvar ninguém do seu próprio condicionamento. O próprio dito costumeiro dos artistas de que recorrem à arte como refúgio temporário do mundo real é sinal evidente da sua alienação. É a doença da insanidade.
É, para mim, isto a insanidade. A insanidade é um nome que eu uso para designar a forma como o cérebro opera quando condicionado pelos princípios ideológicos dos hábitos de pensamento. A insanidade é não conseguir lidar com o mundo real por termos o cérebro cheio deste entulho cultural que foi aumentando e diversificando-se ao longo da história da humanidade. A insanidade é não saber que um pensamento é apenas um pensamento, e que não corresponde a nada de real. A insanidade é confundir ideias com a realidade. A insanidade é o que resulta do processo de condicionamento cultural e que é causa secundária de um excesso desnecessário de sofrimento, pelo qual as pessoas passam por projetar no mundo real representações imodificáveis do mesmo.
Não existe uma única coisa imodificável no universo. Tudo muda constantemente de estado, a energia transfere-se de uns sistemas para os outros, a matéria reorganiza-se micro e macroscopicamente, os seres vivos evoluem pela pressão imposta por fatores ambientais. Até mesmo a cultura humana é mutável. Se há algo que a história humana demonstra é que a cultura humana muda continuamente. Não há nada estanque, nada final, nada perfeito, nada derradeiro, não existem utopias. A mente humana elucubrou estados perfeitos de existência e de organização coletiva, que designou de “utopias”, e a mesma mente humana, quando confrontada com a impossibilidade prática destas “utopias” elucubrou o seu oposto – as “distopias”.
Mas, o mais importante de tudo, e que se impõe sempre sobre qualquer coisa que o ser humano possa criar mentalmente, são as condições materiais. Não há ideia que supere a realidade, que supere o ambiente, que supere os fatores externos que atuam sobre o que quer que seja no mundo. Não há ideias que sejam superiores ao mundo, por mais que alguém se convença do oposto.
Um mundo melhor – não perfeito, mas melhor – nunca foi possível até recentemente, uma vez que não existiam meios nem instrumentos para providenciar as melhores condições materiais possíveis a cada momento às pessoas ou, pelo menos, à esmagadora maioria da população.
Mas um mundo melhor é possível agora. É possível porque a humanidade tem em sua posse o conhecimento científico e desenvolveu a tecnologia necessária para providenciar as melhores condições de vida à totalidade da população mundial.
A tecnologia que permite que as pessoas tenham acesso aos bens necessários para sobreviverem é fundamental. Mas, ainda mais importante, são os recursos em termos de conhecimento que deveriam ser providenciados a toda a gente, para que se possa adequar ao melhor novo mundo que se poderia criar.
As pessoas precisam de saber tudo aquilo acerca do qual eu aqui discorri, e muito mais. As pessoas precisam de conhecer o melhor possível como funciona o seu próprio cérebro, os fatores externos que nele operam, as influências que podem receber e a que correspondem exatamente. As pessoas precisam de perceber que as outras pessoas estão sujeitas a influências diferentes das delas e, por isso, é que têm ideias, visões do mundo, gostos e se comportam de maneira diferente. Não se tem de procurar igualdade entre as pessoas, a não ser a igualdade de oportunidades e providenciar acesso incondicional ao conhecimento mais atual acerca do mundo e da realidade em que vivem. As pessoas têm de ser educadas para aceitar a diferença e a lidar com ela. As pessoas têm de ser educadas para respeitar os outros incondicionalmente. As pessoas têm de receber os conhecimentos adequados para perceber que elas próprias e os outros se comportam de uma determinada maneira porque receberam influências para isso e tiveram diferentes tipos de experiências, que fazem com que processem cerebralmente a mesma informação de diferentes maneiras.
A uniformidade na cultura para promover a coesão social e as melhores interações interpessoais possíveis deve ser procurada no acesso e adesão de toda a gente a estes conhecimentos. Só assim é possível que as pessoas desenvolvam competências sãs de interação interpessoal, de resolução de conflitos, de entreajuda na busca de soluções para o melhoramento progressivo do mundo.
No mundo atual, tal não é considerado.
No mundo atual, ser uma pessoa “decente”, alguém que tenta não prejudicar os outros – embora tal não seja possível, porque todos consumimos produtos que provêm do trabalho escravo de outros – é um luxo, é quase um sinal de status. Isto porque a esmagadora maioria das pessoas não encontra condições para ser uma pessoa “decente”. A esmagadora maioria das pessoas tem uma vida demasiado merdosa para se poder dar ao luxo de considerar os outros sequer, para os poder ajudar, para poder, até, não cometer crimes.
90% da população prisional corresponde a pessoas que não cometeram crimes violentos. São pessoas que cometeram atos, condenáveis aos olhos da lei, para lhes permitir sobreviver, continuar mais um dia vivos, poderem sossegar o cérebro das redes de conexões neuronais estafadas de informação insana através de drogas.
Não se pode ser uma pessoa “decente” sem se ter uma casa onde viver, sem se ter o que comer, o que beber, algum conforto, sem ter acesso a cuidados médicos, sem ter acesso a transportes e, provavelmente tão importante como tudo isto, sem ter acesso a uma educação relevante. Relevante, neste caso, é uma palavra que eu uso para me referir a informação que é a melhor representação possível da realidade, o oposto de ideologias.
Por isso é que não serve de nada fazer discursos moralistas e apelar a que as pessoas se tornem nisto ou naquilo, quando não lhes são oferecidas condições materiais e mentais para tal. As pessoas precisam de ter a sua sobrevivência assegurada e precisam de ter acesso a conhecimento científico atualizado para poderem desbloquear os hábitos de pensamento e, então sim, tornarem-se “melhores” pessoas.
Os discursos moralistas estão repletos de palavras bonitas que não querem dizer nada, ou querem dizer tanta coisa que não querem dizer nada em concreto, ou que querem dizer aquilo que cada um interpreta. Linguagem abstrata, sujeita a interpretação, é um flagelo comunicacional. É um entrave ao estabelecimento de uma comunicação real entre as pessoas, à resolução de conflitos. É uma excelente ferramenta para se passar horas a discutir coisas que não existem, que não têm a mais mínima correspondência com nada de real. Muitas vezes, até, as pessoas utilizam as mesmas palavras para se referirem a coisas completamente diferentes, ou palavras diferentes para se referirem à mesma coisa, e discutem violentamente sem sequer se aperceberem de tal, porque nem sequer tiveram o cuidado de clarificar a sua noção do conceito a que recorrem antes de começarem a discussão.
É preciso melhorar a linguagem. As pessoas tratam a linguagem como se fosse uma religião, mas esta tem de ser o mais objetiva possível, o menos aberta a interpretação possível, tal como o é a científica. O interesse é em promover o entendimento entre as pessoas e não os conflitos baseados em mal-entendidos derivados de interpretação pessoais impostos ou projetadas sobre aquilo que outra pessoa proferiu.
A ciência, mais do que conhecimento do mundo real, é um processo interminável de melhoramento desse conhecimento por recolha e tratamento de novos dados empíricos. A ciência é também uma representação do mundo real. A ciência é como o mapa e o território é o mundo real. O mapa não é o território, mas pode-se fazer o mapa corresponder o melhor possível ao território. E é isso a ciência, esse processo de aproximação da nossa representação do mundo ao mundo em si. Será sempre um processo inacabado. E, também por isso, é que, caso o mundo humano seja reorganizado e tornado em algo mais são, não consigo conceber um futuro que inclua coisas como a religião, a arte, a filosofia, entre outras atividades ideológicas.
A religião e a filosofia, em particular, são, entre outras coisas, tentativas de compreender o mundo, tentativas de arranjar explicações para fenómenos para os quais, em tempos antigos, não se dispunha de instrumentos nem conhecimentos adequados para explicar e conhecer. Foram atividades e processos importantes, também porque tiveram um papel fundamental nas primeiras tentativas que houve de organizar coletivamente seres humanos, mas são ferramentas obsoletas no mundo científico e tecnológico.
O mundo físico é o único que existe, é nele que acontece tudo e é nele que se podem observar os mais diversos fatores em interação uns com os outros e as interações que estabelecem entre si, desde as mais mínimas partículas que compõem a matéria até à cultura humana, ou de outros animais.
Também numa sociedade futura, na qual não haja razões para alguém se alienar do mundo real, e as pessoas estarão abertas a explorar o mundo real em todos os seus infindáveis aspetos, a arte não terá um papel relevante. Ou melhor, não terá um papel de todo.
As pessoas têm de perceber que os placebos de hoje, não terão utilidade no mundo de amanhã. Não há nada, nunca houve, nem nunca haverá, de perpétuo. Pareço repetir-me, mas é uma verdade fundamental. Tudo muda. Até mesmo neste mundo humano, repleto de ideias e valores primitivos – justiça, honra, vingança, deus, mitologia, nacionalismo, patriotismo, amor, ética e moral, verdade, bonito e feio, bom e mau – a mudança é a única constante.
Tal como olhamos para trás e consideramos bárbaros determinados costumes antigos, os humanos do futuro olharão para trás e apenas com dificuldade compreenderão a sociedade atual e tudo quanto compõe as atividades humanas e as relações interpessoais. No entanto, estou certo que compreenderão, porque terão uma noção muito mais acurada de como os fatores ambientais operam sobre o comportamento humano, individual e coletivamente.
Leia a primeira parte aqui
Ricardo Lopes