O estado atual do mundo humano e como o resolver (1/2), por Ricardo Lopes
Vou tentar não culpabilizar indivíduos, ou grupos de indivíduos, mas sim aspetos gerais do funcionamento sistémico da cultura e da sociedade humanas. Não prometo, contudo, que não me irrite e que não venha a redigir, aqui e ali, num tom mais agressivo, porque…eh pá, foda-se…as coisas, simplesmente, não têm de ser como são. Não têm mesmo de ser como são, por mais que tal pareça contraintuitivo, depois de a intuição de toda a gente que vive neste distorcido e retorcido mundo humano ter sido condicionada por milénios de ideias e valores obsoletos.
Toda a gente aponta o evidente – mesmo assim, poucos, mas refiro-me à quantidade mínima de pessoas que ainda é capaz de apontar seja que problema for -, mas não me parece que, pelo menos de uma forma significativa, alguém se disponha a apontar as causas basais e arranjar soluções para as mesmas.
Muita gente me irá odiar depois disto, mas os verdadeiros problemas do mundo não são a guerra, a pobreza, a fome, as doenças, as alterações climáticas ou a destruição dos recursos naturais. Não é com manifestos e discursos bonitos que vamos resolver os problemas do mundo. Não é a criarmos grupos minoritários investidos de uma causa “justa” contra toda a restante gente que faz parte do sistema hegemónico que vamos resolver os problemas do mundo. Não é a armarmo-nos em bons samaritanos e a darmos esmolas e a irmos para África em campanhas de solidariedade que vamos resolver os problemas do mundo. Não é a juntarmo-nos estupidamente para uma morte precoce a limpar derrames de crude que vamos resolver os problemas do mundo. Não é a moralizarmos os outros que vamos resolver os problemas do mundo. Os problemas do mundo não são os problemas das mulheres, nem dos homens, nem dos pretos, nem dos índios, nem dos chineses, nem dos etíopes, nem dos ricos, nem dos pobres, nem dos trolhas, nem dos professores, nem dos médicos, nem dos polícias, nem das vítimas de violência doméstica. Os problemas do mundo não são causados por psicopatas, nem por megalómanos, nem por criminosos, nem por misóginos, nem por homofóbicos, nem por direitistas, nem por esquerdistas, nem por sem-abrigo, nem por multimilionários. Tudo isso são sintomas, tudo isso é a rama dos problemas do mundo, e tudo o que se faça em relação a esses problemas isoladamente é como estar a tentar impedir um barco que tem um buraco no fundo de se afundar a tirar água com baldes. Não interessa se se arranjar um balde maior, não interesse se se aumenta a velocidade do enchimento do balde, não interesse se se arranjar mais gente com mais baldes. O barco vai continuar a encher de água até estar completamente submerso.
Os problemas do mundo começam com aquilo que as pessoas têm na cabeça.
A partir do momento em que se condiciona alguém para uma cultura que define papéis estanques, está-se a condenar essa pessoa para sempre. Inventam-se rótulos, e esses rótulos vêm acompanhados de um texto repleto de exigências e expectativas que têm de se cumprir. As pessoas nascem com um cérebro altamente plástico. Os neurónios e os circuitos neuronais organizam-se de acordo com os estímulos que se recebem do exterior. Não existe o “eu” e as circunstâncias, como alguém dizia. Existem as circunstâncias. As circunstâncias são tudo. Até se pode nascer com um determinado conjunto de genes, mas até mesmo a sua expressão é altamente influenciada por fatores externos. Não existe ser vivo nenhum que não seja completamente o resultado dos fatores ambientais a que está sujeito. Desde a sua biologia até ao seu comportamento, tudo é determinado por tal. E, no que diz respeito ao animal humano, tal é ainda mais complexo, uma maior quantidade de fatores atua sobre a determinação daquilo que designam de “personalidade”.
Quando alguém nasce, principia-se imediatamente o processo de condicionamento cultural. A criança já foi influenciada, principalmente a nível biológico, desde a sua vida intrauterina, por uma miríade de fatores físicos e químicos. Mas, assim que abandona o útero, começa a ouvir outras pessoas a falar. A linguagem é a base do condicionamento cultural e é o primeiro fator a atuar sobre o cérebro do bebé e a condicioná-lo para determinados sons, que mais tarde são emitidos. Esses sons são palavras ou o que quer que seja que determinem como unidade linguística. E estas mesmas palavras persistirão na memória do bebé e condicioná-lo-ão para um determinado ponto de vista do mundo. Não apenas isso, mas também servirão de base à posterior acumulação de novas palavras, palavras essas que apenas têm vigência na cultura para a qual a criança é condicionada, que não correspondem, portanto, ao mundo real, mas sim a uma representação do mundo real, provavelmente elaborada desde há dezenas de milhares de anos, ou mais.
E isto é uma forma de violência. A criança não tem escolha senão ficar limitada à representação do mundo que lhe é imposta. Uma vez assimilada a língua e a sua gramática (que é, também, altamente circunstancial e concorre para a expressão contextual do mundo), seguem-se os papéis sociais. E há muitos. E, normalmente, uma mesma pessoa é vários. Vem o que é ser “mãe”, “pai”, “irmão”, “avó”, “avô”, “família”, “amigo”, “amiga”, “namorado/a”, “mulher”, “homem”, e tudo o mais que determina o papel que a pessoa deve assumir nas relações interpessoais, cobrindo todos os níveis de interação social, desde o pessoal ao familiar e ao profissional.
Então, a criança já sabe o que é ser um “bom” ou uma “boa” qualquer uma dessas coisas. E também o que é ser um “mau” ou uma “má” qualquer uma dessas coisas. Só ninguém a imuniza contra o sofrimento desnecessário pelo qual irá passar quando falhar em ser o “bom” ou a “boa” qualquer uma dessas coisas. Ninguém lhe explica o que é a língua, qual a sua origem, o que realmente representa. Ninguém lhe explica que todos estes rótulos foram inventados há muito tempo, numa altura em que eram ferramentas para manter a sociedade o mais coesa possível e facilitar as interações sociais, com o mínimo de percalços. Ninguém lhe mostra as falhas que este sistema de organização social tem. Ninguém lhe diz que existem ideias, e existe o mundo real, e que são duas coisas diferentes. Ninguém lhe diz que não tem de corresponder a ideais determinados para um mundo humano no qual não existem condições para alguém lhes corresponder e que, se tal acontece, é por mero acaso.
E porque é que ninguém faz isto? Porque não pode. Porque, como disse, não há condições para o fazer. Teria de ser feita uma transição gradual para outro tipo de sistema para que as pessoas se pudessem desenvencilhar definitivamente destes rótulos, destas abstrações que alguém inventou há muito tempo e que outros foram modificando através de associações com informação nova, mas que não funcionam.
Agora é moda ser contra a religião, da parte dos ditos “racionalistas”, ou pessoas “racionais”. A religião é, para o “racional”, a epítome do obscurantismo intelectual, da alienação da humanidade, da promoção da ignorância, do condicionamento das pessoas para o niilismo, por lhes prometer uma vida depois da morte melhor do que alguma vez esta poderá ser.
Eu não consigo distinguir as pessoas que designo de “ideólogos” umas das outras. Não consigo distinguir um religioso de um filósofo, um artista, um místico, um político ou um economista, apenas para nomear algumas das principais atividades a que se dedicam os tais “ideólogos”.
Os ideólogos, nas suas mais variadas manifestações, são pessoas que vivem com base nos seguintes princípios:
- Determinar a origem da informação que se tem no cérebro não é importante;
- As ideias são superiores aos dados empíricos;
- As ideias são superiores à informação que se recolhe do mundo real;
- Através da simples abstração, é possível descobrir “verdades” – informação acerca do mundo real;
- A linguagem tem uma relação de correspondência exata com a realidade;
- O raciocínio é a atividade que permite descobrir verdades acerca do mundo real, por excelência;
- Não interessa conhecer os viés a que se está sujeito;
- Não interessa validar o conhecimento empiricamente;
- Não interessa conhecer o condicionamento a que se está sujeito;
- Considera-se o autoritarismo – as ideias são boas se provierem de alguém que se distinguiu no seio da atividade;
- Como não se considera a informação empírica, almeja-se conhecimento que é universalmente válido, independentemente das circunstâncias;
- Toma-se o comportamento humano como sendo inalterável e intemporal;
- Estabelecem-se considerações acerca da “natureza humana” e do que a compõe;
- Determinam-se ideais impraticáveis, mas que se procura impingir ao mundo pela via da sua simples transmissão;
- Desconsidera-se todo o conhecimento existente acerca das condicionantes do comportamento humano;
- Atribui-se intencionalidade aos fenómenos que ocorrem no universo;
- Recorre-se frequentemente à “teoria da mente” para explicar fenómenos que não se procura conhecer empiricamente.
Estes são os principais fatores dos quais me consigo lembrar, mas certamente existirão outros e, cada um destes, poderia ter partido em ainda mais, expondo detalhes acerca destes hábitos de pensamento.
Agora, qual é a real diferença entre alguém seguir cegamente um livro que foi redigido por uma certa quantidade de pessoas ao longo de mais de 2000 anos e que contém a “palavra do Senhor”, e alguém seguir as ideias de uma ou várias pessoas que criaram conceitos definidos de uma forma puramente abstrata e que consideram que deveriam nortear a vida das pessoas e as suas relações interpessoais? Há que atentar na tentativa da parte de qualquer uma destas atividades em orientar, com base em meras ideias, a vida da totalidade da espécie humana.
continua...
Ricardo Lopes