O estádio de futebol em obras
DORMIDAS MÍTICAS – EPISÓDIO 2
Já houve tempos em que eu tinha tudo não tendo quase nada, Quando dormia ao relento ouvindo o vento beijar a geada, Fazia o meu manjar com pão e uva, fazia o meu caminho ao sol ou à chuva... (À Espera do Fim, Jorge Palma)
O ESTÁDIO DE FUTEBOL EM OBRAS (Eslovénia, 2007) – Num belo dia de manhã o meu amigo Diogo e eu decidimos que havíamos de viajar à boleia desde Pécs, no sul da Hungria, até Ljubljana, capital da Eslovénia. Os deuses da boleia não estavam connosco naquele dia e o mais longe que conseguimos ir até ao pôr-do-sol foi a fronteira entre esses dois países. Nada de grave, andar na estrada tem destas coisas e não podem correr bem todos os dias, não vá uma pessoa ficar mal habituada!. Ainda assim, depois de atravessar a fronteira a pé, decidimos continuar a caminhar enquanto não ficasse muito escuro, crentes que nesse país paraíso das boleias alguém nos iria resgatar da estrada. No entanto não, apanhámos um enorme contratempo: a estrada do lado esloveno encontrava-se a meio de grandes obras de remodelação onde era de todo impossível um carro parar para nos dar boleia, por muita vontade que o seu condutor tivesse de nos ajudar. Vimo-nos obrigados a caminhar muitos quilómetros a pé de mala às costas, receosos de sermos atropelados devido à falta de espaço.
Uns quilómetros mais à frente vimos finalmente um carro parar para nos dar uma curta boleia de menos de cinco quilómetros que no momento nos pareceu ridícula mas que no entanto acabou por mudar de forma radical o desfecho da estória. Essa boleia deixou-nos numa típica aldeia eslovena, muito verde e com a inevitável estrada de alcatrão para peões e bicicletas (coisas que estamos a anos-luz de encontrar em aldeias portuguesas), sem dúvida uma óptima característica para quem lá habita. Para viajantes à boleia é antes um grande pesadelo, pois havendo estrada dedicada a peões não temos o direito de caminhar à beira da estrada onde passam os carros cujos os donos precisamos de convencer a nos ajudar. Como pode imaginar pedir boleia a um carro passando numa estrada que se encontrava uns três ou quatro metros afastada da nossa é tarefa muito complicada. E sobretudo naquela amaldiçoada aldeia onde o caminho pedestre tinha um desnível tal que quem de carro passasse mal poderia ver as nossas cabeças. Daí que decidimos infringir a lei e continuar a caminhar pela berma da estrada principal, crendo que ainda arranjaríamos boleia para a capital antes de escurecer. Mas estávamos em definitivo num dia não e para nos estragar os planos passou por nós um carro da polícia, cujo condutor fez de imediato marcha atrás para nos interpelar. Perguntaram-nos, muito desconfiados, que andávamos nós ali a “aprontar àquelas horas numa aldeia tão pacata”, talvez imaginando-nos bandidos que tinham escolhidos atacar pela calada da noite um lugarejo habitado por indefesos idosos. Quiçá não foram com a nossa cara por nos acharem com aspecto de ciganos, passe o preconceito (deles, não meu). A verdade é que, mesmo depois de ouvirem as nossas sinceras explicações e inspeccionado todos os nossos documentos (válidos), ainda não estavam contentes e continuaram o ridículo interrogatório. Confrontados com a nossa profunda serenidade de quem não tem nada a esconder, e não tendo eles mais nada por onde implicar, deixaram-nos partir, avisando-nos contudo que teríamos de abandonar a estrada principal e voltar para a pedreste. Caso voltassem a encontrar-nos a infringir a regra “teriam” de nos levar à esquadra! Que sorte! E que remédio! Acatámos as ordens e continuámos a caminhar sem grande objectivo nem determinação, perguntando a nós próprios para quê e para onde caminhariam os nossos pés àquela hora do dia, quase noite. Fazer o quê? Ficar parado ali soava ainda mais absurdo que caminhar, daí que continuámos, aproveitando o resto de luz crepuscular que os nossos olhos ainda recebiam.
Continuámos uns bons quilómetros, sossegados, introspectivos, até que o súbito aparecimento de nuvens negras ameaçando descarregar uma tempestade sobre nós nos obrigou a acordar daquela letargia e lutar pela vida. Estávamos já longe da aldeia, numa estrada como quase todas as estradas eslovenas, isto é, rodeadas de floresta por todos os lados. Não havia sinal de civilização. Progressivamente fomos acelerando o passo com receio da tempestade e mais acelerámos quando sentimos as primeiras gotas grossas e pesadas cair-nos sobre a pele. Ah, era a confirmação de tempestade grande em via de desabar sobre nós se não arranjássemos com urgência uma solução. Já não me recordo bem qual de nós avistou, para nossa grande sorte, um estádio de futebol do outro lado da estrada, ao fundo de um caminho de terra batida. Não dava para ter a certeza, a luz já era pouca. Corremos na direcção do estádio fugindo à chuva que começava a cair com força mesmo atrás de nós. Foi uma verdadeira corrida contra o tempo. Assim que chegámos ao estádio, exaustos, tivemos o prazer de assistir abrigados ao imponente espectáculo que os céus nos ofereceram, um verdadeiro dilúvio de proporções que não me lembrava de ter visto igual.
Era óbvio que dali já não sairíamos mais naquela noite e nós não nos queixámos. Contratempos acontecem e até podem acabar por ser divertidos. Mau seria ter-nos deixar apanhar pelo dilúvio e ficarmos não só com a roupa do corpo molhada mas sim com toda a restante guardada dentro das mochilas incapaz de ser vestida. E mais, ficar também com os sacos-cama molhados. Ficaríamos sem nada seco para vestir nem abrigo onde dormir. Portanto, na nossa perspectiva, tivemos uma sorte enorme naquele dia, sorte que não acabava ali. Depois de recuperar o fôlego realizámos uma missão de reconhecimento durante a qual encontrámos uma cozinha aberta com água canalizada e esquentador. Mas não pense que dormimos aí! Não, deu-nos jeito para nos lavarmos e encher as nossas garrafas com água, agora servir de abrigo estava fora de questão pois só tinha paredes de dois lados e o lado com balcões levava com a chuva torrencial empurrada pelo vento vindo desse lado. Para dormir encontrámos bem melhor, a bancada VIP em construção por cima das bancadas normais. Aí sim fomos descobrir um verdadeiro abrigo capaz de nos proteger do dilúvio incessante, lugar isolado e sossegado, perfeito para observar tranquilo a natureza em toda a sua pujança. Passámos o resto do serão dentro da bancada em obras, entretidos a conversar e petiscar ao som da chuva que soava tão bela como música dado não alcançar molhar-nos...
Não fosse o Diogo acordar no dia seguinte com o braço inchado por picadas de insectos e o adjectivo “perfeito” poderia ser usado para descrever as condições do nosso abrigo improvisado. Durante o verão em país verdejantes e húmidos como a Eslovénia é natural encontrar imensos mosquitos, sobretudo se se estiver na floresta! Eu, para me proteger dos mosquitos, fechei-me por completo dentro do saco-cama, apenas com o nariz de fora para respirar qual bicho dentro do seu casulo! O Diogo, no entanto, não pôde fazer o mesmo. O saco cama que tinha era destinado a temperaturas muito baixas, diria até preparado para se sobreviver a invernos glaciares. Não podendo adormecer descansado como eu, teve de escolher entre o menor dos males, sufocar de calor no saco-cama fechado, ou dormir com ele semi-aberto e arriscar-se a acordar todo picado! E afinal pernoitar por ali não foi assim tão perfeito para o meu amigo e companheiro de viagem! Enfim, viajar à aventura tem destas coisas!
Mas tem doutras também! Não há nada que pague o prazer de acordar de madrugada para assistir a um magnífico nascer-do-sol rodeado de floresta e embriagado pelo sublime odor a orvalho e terra molhada!
Luís Garcia, 23.03.2016, Lampang, Tailândia