O deus imperfeito – Introdução 2/3
Voltando ao não olvidado pela hierarquia eclesiástica, o imperfeito deus, é fácil de compreender por que terá sido este o deus eleito para de cobaia servir nas inúmeras reconstruções da cristã definição de deus que formularam a visão tida de deus nos primeiros séculos da nossa também cristã era, visão que se manteve sem grandes alterações até aos tempos modernos.
A razão não é de todo transcendente, pelo contrário, digo eu ironicamente. Para começar, por terem sido tal como nós terrenos, efémeros, imperfeitos, aqueles que nos tempos das antigas escrituras se encarregaram de compilar lendas, mitos e tradições religiosas e culturais de forma a criarem textos sagrados para os seus povos, também inevitavelmente imperfeito seria qualquer deus que desses textos tivesse resultado, conclusão esta que me parece não poder chocar nenhuma cristã alma, mesmo a mais sensível de entre elas. Mas continuemos, saltando de novo para os primeiros séculos da nossa era. Os homens de deus que neste tempo se encontraram a si próprios no lugar de definir a visão cristã romana desse transcendente ser seriam também, obviamente, imperfeitos. E todos nós sabemos que imperfeições há muitas e variadas, para todos os gostos e manias, mas não tendo eu vivido em nenhum desses primeiros séculos da era cristã, apenas nestes dois últimos da mesma em que cada vez mais se debatem e questionam os acontecimentos dos primeiros, encontro-me tentado a jogar a lotaria e também o joker, deixando aqui duas apostas das possíveis imperfeições características daqueles que nesse período criaram e definiram o nosso deus ocidental cristão.
A LOTARIA
A acreditar que continuariam tão longe da perfeição como aqueles que primeiro criaram os textos do antigo testamento, e se ainda se encontravam num não muito elevado nível de desenvolvimento intelectual, bem, poderia então dizer que os compreenderia aos pobres coitados se os mesmos erros do passado tivessem cometido pois que mais poderiam essas boas almas fazer afinal quando a priori já seria sabido que não conseguiriam de forma perfeita criar a imagem de uma perfeito adorado, primeiro porque não estavam nem nunca teriam estado à altura de o fazer (pois perfeitos não seriam certamente) e depois, sinceramente, como poderíamos nós esperar que pudessem estes imperfeitos homens ter descrito perfeitamente, ou não, aquele que nem sequer existiria? Não poderiam, simplesmente.
O JOKER
Mas tenho mais fé no meu joker. E o meu joker diz-me que não só pela falta de melhores capacidades para a caracterização do deus perfeito mas também por manifesta vontade de definir um imperfeito soberano, estes pioneiros da moderna visão cristã de deus sofreriam por certo de males bem comuns entre os humanos, ânsia de poder, poder de controlo sobre os seus demais, claro está, e perversidade em larga medida, sem a qual não teriam as condições necessárias à implementação das suas ambições de poder referidas. E assim terão definido, a julgar pelas provas que sobreviveram até aos nossos dias (refiro-me às diferenças de conteúdo e consequentes diferentes ilações das várias versões dos textos incluídos nas várias “bíblias” da época, assim como às escolhas ponderadas dos textos proféticos a incluir ou não na compilação que haveria mais tarde de vir a chamar-se bíblia), aquilo que teria sido mais fácil e conveniente de definir.
Definiram habilmente o deus imperfeito, o qual, com o tempo, lhes daria espaço de manobra moral para bem protegerem os seus interesses e regalias (e dos monarcas ou imperadores aos quais eram fiéis) sobre a populaça desfavorecida, essa sim a destinatária e vítima por excelência dos incoerentes e injustos caprichos do deus por esses criado. Não esquecer ainda o ambiente social em que estes eventos terão ocorrido, pois não existiriam muitos letrados entre a plebe do início da nossa era, uma vez mais também por manifesta má vontade das mesmas elites aqui criticadas que só teriam a ganhar, pois claro, com a ignorância e falta de independência intelectual dos seus súbditos.
Dito isto espero deixar claro que alguma vez me tivesse passado pela cabeça defender que seria estúpida e/ou idiota a plebe de então. A ignorância geral seria por certo decidida e imposta de cima para baixo, pois mesmo tendo como quase inteiramente analfabeta a sua população de súbditos, e para não correr riscos desnecessários, a elite não terá sequer se esquecido de proibir a leitura da colectânea bíblica por si mesma criada! Não fosse um chico esperto aparecer por entre a multidão tentando apontar o dedo às imperfeições que hoje felizmente me encontro livre de nomear. E terá sido precisamente por tão metódico controlo de pensamento e de conhecimento popular que o status quo social favorável aos senhores da igreja e do poder terá conseguido sobreviver até aos nossos dias, embora hoje a colectânea esteja traduzida em todas as línguas do mundo (não é exagero) e já não é, graças a deus, de leitura interdita!
Proíbida não é, mas a leitura da bíblia pelos crentes da religião que representa contínua ainda por se efectuar, por desleixo voluntário, talvez, ou por ser a fé cega condição única e suficiente para se seguir as vontades e os caprichos do imperfeito deus. Mas tendo as massas dos nossos dias o total acesso à educação, alfabetização e informação sobre as mais variadas formas, não será imprudente, agora sim, nos questionarmos sobre o nível da estupidez humana actual, pois estando segura do acesso a todos estes direitos que em tempos idos teriam sido chamados de preciosas regalias, a verdade é que com mais ou menos imperfeições, com muita ou pouca barbaridade, o discurso do deus cristão contínua sendo ouvido e aceite a cada santo domingo nas igrejas das nossas paróquias, e quem as assiste não dá jamais pela troca de personagens, pois de boa vontade e espírito sereno paga missas e manda rezar terços e, se ainda hoje assim se passa, não é difícil de imaginar porque assim terá acontecido durante os últimos dois mil anos.
PARA QUEM PERDEU O PRIMEIRO EPISÓDIO:
Luís Garcia, 31.08.2015, Lampang, Tailândia
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