O deus imperfeito - Introdução 1/3
Antes da criação do universo, deus não fez nada. Não consta. Um dia não se sabe porquê, decidiu criar o universo. Também não se sabe porquê nem para quê. Fez, segundo a bíblia, o universo em seis dias. (…) Descansou ao sétimo. Até hoje. Nunca mais fez nada. Isto tem algo sentido? (José Saramago, 2009)
Era uma vez um imperfeito deus, um deus triste e aborrecido, farto de ser e de nada fazer, esquecido, perdido e vagueante por entre uma negra imensidão de nada e um mais que imenso poder de tirar o negro a essa imensidão. Mais que imenso poder, pois claro, não tivesse este deus cristão os auspiciosos cognomes de omnipotente (o qual nos poderá elucidar quanto ao seu infinito potencial de alterar o seu desesperante aborrecimento) e de omnipresente (título este que nos alerta ainda mais para a sua aflitiva condição de vagueante na dita imensidão negra primordial). Segundo consta, nestas exactas condições de sofrimento existencial terá começado a sua muito badalada jornada pelo mundo substancial por ele criado desde então, não fosse este precisamente o deus dos fracos, dos esquecidos e dos infelizes oprimidos que nesse mundo haveriam por sua obra e graça existir um dia num não longínquo futuro, o deus que haveria daí em diante reinar sob a égide da fraqueza e da miséria físicas e intelectuais dos seus súbditos humanos, não sendo de espantar assim que antes de qualquer outro, fosse ele também vítima dessa mesma desgraça que ainda hoje teima em ser a palavra de ordem nos providenciais discursos daqueles que, nos nossos tempos, tomam por missão de vida a responsabilidade de espalhar os divinos ensinamentos!
De forma mais prosaica mas necessariamente lamechas, poderíamos ainda acrescentar que este era um deus cujo currículo de vida resumia-se ao de um desgraçado pobre coitado que tendo a possibilidade de criar um oceano com todas as lágrimas que derramara desde o início da sua desgostosa eterna existência para aí poder lavar a cara e os trapos que sempre vestira e daí partir para uma nova vida plena de brilhantismo, inovação, grandiosidade, criação, pelo contrário, insistia de forma teimosa e masoquista em perpetuar a sua miserável condição. De forma masoquista? Sim, como todo o desgraçado que se arrasta de mente e joelhos ensanguentados pelo mármore providencialmente espalhado sobre a santa praça portuguesa plantada exactamente no local onde um dia três miúdos não viram nuvens em forma de elefantes, como esses e muitos mais abutres de si próprios, também deus preferia viver na desventura e resignadamente suportar a sua omnipresente solidão pois possivelmente veria (digo eu, sem conhecimento de causa) nesse seu sobre-divino sofrimento o caminho para a santa e cristã felicidade. Cristã? Sim, não se deixem precipitar os mais cépticos e desconfiados destes meus encadeamentos de palavras pois, embora o termo tivesse de esperar pela vinda ao mundo físico dos homens que haveriam de o formular, o dito termo deveria ter desde já assegurada a sua pré-existência na mente de um deus imperfeito mas ainda assim (segundo consta) omnipotente.
Ao escrever sobre um deus católico, de um deus perfeito deveriam estar os leitores à espera de ouvir falar, mas não é o caso. Estranho caso, ou até não, pois não vejo como a nossa humana ideia de perfeição (de nós que somos imperfeitos) possa provar que algo de perfeito exista de facto, nem tão pouco que possa provar que um supremo e perfeito deus exista, por ser este a única evidência da suspeitada existência de Perfeição. No entanto, quando dele se fala, é sempre do ponto de vista da existência de um ser transcendente e perfeito que invariavelmente se parte e, porque ninguém se dá ao trabalho de se lembrar de um deus que assim não seja, acaba o desgraçado imperfeito deus por ser o sempre esquecido de uma muito mal contada história. Ou será que não? Não, defendo eu. Creio ser mentira o que ainda agora escrevi, não foi esquecido esse desventurado e imperfeito deus, mentira, é este mesmo deus contido nas escrituras do livro sagrado que todos os dias é citado nos altares da santa e romana igreja católica. É em nome deste mesmo deus que todos os dias são tomados actos que desviam a espécie humana da ambiciada perfeição. É em seu nome que invariavelmente se lutaram e lutam fictícias guerras civilizacionais com o império do mal de outrora ou com o mediático eixo do mal dos nossos dias. É a igreja, a religião deste mesmíssimo deus que diariamente amealha mais uns quantos católicos adeptos depois de estes generosamente doarem a caridosa esmola ao pobre coitado ajoelhado na entrada da sua igreja paroquial, e que o fazem para assim se encherem da santa alegria de um pouco mais pobres ficarem e por assim julgarem saber que esse será o caminho do prometido paraíso para as nobres almas suas semelhantes. Ora sendo o deus referido fonte e inspiração de tão imperfeitos comportamentos como estes e muitos mais que não têm espaço nestas linhas, como poderá estar esquecido e neglegenciado aquele que eu denomino por deus imperfeito? Não estará por certo. Esquecido estará à muito o prefixo que lhe inverteria o seu aqui contestado atributo. Consequentemente, em esquecimento terá caido então o perfeito deus que tal como o primeiro também não existe, insisto eu, mas isso é outra história e os responsáveis desse olvido serão outros mais nobres entre a hierarquia católica que os doadores de esmolas.
Luís Garcia
Deus é cruel, invejoso e insuportável, por José Saramago
FAÇA DOWNLOAD DESTE ARTIGO EM PDF: