Narcisismo artístico na Sociedade do Espectáculo
Olharização do 500px
Vou vos contar a saga inacreditável de um novo utilizador do 500px, um site onde é suposto os utilizadores partilharem as suas (melhores) fotos, e onde se podem avaliar as fotos dos restantes utilizadores através de "likes" que dão pontos e através de comentários (em princípio críticos, no saudável sentido do termo).
No momento em que se inscreveu, há um mês e meio atrás, admito que o 500px já tinha se desviado muito da lógica racional, da sua utilidade enquanto meio de aprendizagem de fotografia pela comparação com o que há de bom e mau, melhor ou pior, tecnicamente desafiante, etc. O 500px tem mudado, e contínua a mudar, para pior na minha sincera opinião, sofrendo uma progressiva e lamentável olharização. Inventei o termo partindo do nome do site português Olhares, dentro do mesmo conceito, site onde ninguém se interessa por aprender fotografia, nem tampouco criticar objectivamente o trabalho dos outros, mas sim comentar fotografias do género "excelente! aproveito para o convidar para visitar a minha galeria", entre outras dezenas de variações igualmente narcisistas e fúteis que tornam impossível que uma boa foto, a melhor do mundo quiçá, se destaque por votação, e permitindo ao mesmo tempo que os maiores vómitos fotográficos da humanidade cheguem ao topo da classificação graças ao spam que me referi acima. A malta vota às manadas na javardice fotográfica uns dos outros, empurrando para o esquecimento e sem piedade uma foto de um Cartier-Bresson ou um Sebastião Salgado que não desça ao nível vil de votar em merda para ser retribuído com votos.
Voltando ao nosso artista fotógrafo, para meu grande espanto, conseguiu me convencer, pelo seu comportamento neste mês e meio, que os spamers narcisistas do Olhares são mesmo uns meninos, gente fraquinha mazé! Querem saber porquê?
Manipulação de zeros e uns
Antes de mais explico que só me dei conta do fenómeno porque conheço-o pessoalmente e com natural interesse decidi seguir a sua conta nos primeiros dias, visto que também sou utilizador do 500px. Só quando me apercebi do enorme fenómeno de manipulação realizado por este é que passei a monotorizar a sua conta diariamente durante as últimas semanas! Vamos lá:
Desde o início de 2016, que corresponde à criação da sua conta 500px, o artista tornou-se muito activo publicando às dezenas fotos de cada vez, fotos que pareciam melhor encaixar num álbum de férias do que numa selecção de melhores fotos de alguém, mas enfim, nos dias de hoje "tudo é arte"... Mais, criou algumas categorias para organizar as suas súbitas centenas de fotos. Até aqui tudo bem.
O problema começa poucas semanas depois, quando o artista se apercebe que assim não iria a lado nenhum e, como leva a crer, se incluirá na categoria de artistas incompreendidos, em vez de evoluir a técnica de fotografia, em vez de estudar fotografia, em vez de comprar um melhor aparelho fotográfico, em vez, sem lá, de simplesmente passar mais tempo a tirar mais fotos, não, decidiu fazer tudo ao contrário.
De uma assentada apagou todas as suas fotos a cores, apagou quase todas as suas fotos a preto-e-branco, eliminou as categorias de fotos e adicionou um título incompreensível de artista incompreendido ao seu perfil:
Through the lens of my camera, I can see the world in black and white. Without the distraction of color, I focus exclusively on the soul.
Em simultâneo começou a sua campanha de manipulação de números. De forma a obter à força os tão ansiados e ausentes seguidores da sua conta, o artista decidiu passar a gastar quantidades colossais de tempo likando fotos e seguindo perfis de centenas de outros utilizadores, de forma a que esses se sintam (uma parte deles, pelo menos) obrigados a retribuir de igual forma. De acordo com as minhas estatísticas, no início, por cada 100 novos perfis seguidos pelo Artista, 10 de esses passaram a segui-lo também (ultimamente a média tem estado inclusive melhor), o que, embora prove lamentavelmente que no 500px existe pelo menos uns 10% com a mentalidade de toma lá dá cá, prova também, felizmente, que não são 99% como no Olhares.
Em curtos espaços de horas, o Artista sobe às centenas o número de outros perfis que decide seguir. Na minha opinião é impossível tomar-se deveras atenção ao que outros criam de interessante quando se clica seguir 100 perfis numa hora. A esta escala industrial e robotizada não só não há tempo nem cabeça para uma escolha honesta (racional e/ou emocional), como o resultado é uma tal montanha de perfis seguidos que da próxima vez que quiser ver uma dada foto magnífica ou um excepcional perfil, andará à procura de agulhas em palheiros. Comportamento que julgo ser, numa perspectiva didáctica, absolutamente nulo.
Mas vamos aos números: subitamente passou a seguir 900 outras contas, para subitamente deixar de as seguir pouco tempo depois, descendo esse número para 300. De novo subiu para 1000 contas seguidas, para dias depois descer para 100 seguidas. E voltou a seguir contas até subir a 400, caindo de novo a 100, e uma vez mais até 400 e de novo 100. Neste momento (hoje) já vai outra vez em 500 perfis seguidos. Graças a estes 3200 perfis temporariamente adicionados, o Artista que começara (como é lógico) com 0 seguidores, já vai agora quase em 500. Ah, grande artista! E não, isto não se passou num espaço de tempo de 4 ou 5 anos, mas sim de 4 semanas!
Muitas das fotos a preto-e-branco apagadas, voltaram a ser publicadas sem edição de melhoramento ou outro motivo lógico. Apenas para que agora possam ser mais vistas e possam receber mais likes. E também para algo mais que considero profundamente desonesto: quando se apaga uma foto o número total de votos da conta não desce, mas quando essa foto é republicada, como é óbvio, o número total de votos da conta cresce. Daí ser comprensível que um utilizador honesto apenas em situações excepcionais apague e faça reupload de uma foto na qual encontre um flagrante defeito. Daí que eu chame desonesto ao nosso Artista, uma vez que o faz ao inverso, fá-lo de forma sistemática e grosseira, a uma escala industrial!
Voltando aos seguimentos súbitos, já imaginaram o tempo perdido a seguir milhares de outras contas, dar-lhes muitos likes em suas fotos para que eles nos sigam e nos dêem likes de volta, tempo que poderia ter sido gasto a ler um livro de fotografia, a fazer fotos de aprendizagem, a ver com olhos de ver algumas poucas mas boas fotos de outras contas aprendendo nessa observação?
E que dizer dessas milhares de contas que o Artista seguiu durante umas horas ou dias, tempo estritamente necessário para receber de volta seguidores e com eles muitos likes? Podia simplesmente ir adicionando ao longo do tempo milhares de contas, de forma a que os donos dessas contas o seguissem também (como de facto fazem), mas não, num completo desprezo por aqueles que votam nas suas fotos medíocres e as tornam em sucessos de votação, este utilizador acumula seguidores mas apaga-os aos packs logo depois, como se fossem mercadoria fora de prazo, como se fosse uma linha de produção optimizada de eliminação de contas seguidas! .Não há empatia sequer, nem respeito nenhum por essas pessoas que, dando like por like, dando following por following, o transformam em Fotógrafo com F grande no mundo do faz de conta dos Zeros e Uns!
Insisto, porquê apagá-las? Porquê não deixar acumular? Uma vez mais, uma questão de manipulação de números no Reino dos Zeros e Uns. Neste momento o Artista seguiria já 3200 contra os 500 que o seguem. Esta proporção, a seu ver, especulo eu, passa a ideia de que é um fotografo fraquinho que precisa de seguir muitos para ter alguns seguidores (o que é grotescamente verdade). Solução? Seguir milhares, sempre aos packs e durante curtos espaços de tempo e depois cair de novo para 100. Desta forma, enquanto 500 pessoas (sempre a crescer) o seguem, ele, O Artista, apenas segue aparentemente 100. Portanto, o Artista é um artista... graças à manipulação de números, ahahah!
Resultado de toda esta manipulação de zeros e uns: vai se afogar em autostima com as centenas de votos que ele melhor que ninguém sabe serem artificiais, ficando sem saber o que é uma boa ou uma má foto sua, auto-impossibilitando-se de evoluir. Não vai olhar nunca com olhos de ver trabalhos fotográficos de outras contas, daí que não evoluirá tampouco pela comparação com outros (melhores ou piores). Aqui está a essência do narcisismo espectacular!
Ontem, enquanto começava a esboçar este artigo, o Artista voltou a apagar fotos e a republicá-las, para algumas é inclusive a TERCEIRA vez que são publicadas neste curto espaço de tempo, uma vez mais multiplicando a contagem total de likes (que não desce quando uma foto é apagada) e aumentando o seu potencial falso-artistico pois é óbvio que agora tem mais seguidores que das 2 vezes anteriores! Enfim! Como diria o outro: "um artista, é um bom artista!".
Sociedade do Espectáculo
Numa sociedade mentalmente sã, seria normal encontrar pessoas que achariam interressante analisar de forma objectiva os votos e comentários recebidos, aprendendo nesse processo sobre si próprio e sobre as suas próprias fotos. Sobre uma foto sua com pouca reacção gerada, perguntar-se-ia "que há de errado com esta foto?". Noutra, com uma inesperada grande reacção diria a si próprio "é assim tão boa a minha foto"? Pela reacção dos outros ao nosso trabalho aprendemos muito sobre esse trabalho O contrário também é válido, ver fotos do mesmo género de outros autores melhores e piores tecnicamente, ler as especificações técnicas das suas fotos, quiçá encontrar uma explicação ao lado da foto de como esta foi obtida, permite aprender pouco a pouco pela comparação com o nosso trabaho. Eu aprendi algumas técnicas de fotografia assim: vendo fotos que me espantavam e que eu não fazia a mínima ideia como se faziam antes de tirar fotos; agora, analisando a diferença com as minhas tentativas falhadas, posso tentar perceber o que fazem que eu não faço, e vou fotografar de novo até conseguir obter o mesmo tipo de efeito. A partir daí tenho mais uma ferramenta que poderei utilizar na próxima vez que me apetecer ir tirar fotos E assim, ao seguir o trabalho dos outros aprende-se a fotografar.
Ao comparar o nosso com o dos outros percebe-se onde estão as nossas fraquezas; temos um incentivo e um guia para a evolução e melhoramento; Hoje em dia, com a "olharização" do 500px, temos merdas cagadas com centenas de votos de compadrio, e fotos magnificas que, por entre o oceano diário de milhões de novas fotos, passam despercebidas. Assim, como é que um novo utilizador pode aprender algo sobre as suas fotografias e as dos outros? Já não pode, pois já se perdeu a integridade e a objectividade na avaliação do conteúdo fotográfico do site. E depois, quanto ao novato, talvez nem sequer queira aprender nada. Talvez apenas queira ser vedeta instantânea. Apenas queira o rótulo imediato de artista e respectiva consagração virtual, pouco se cagando para a Fotografia em sim...
Ou, em particular, que aprende o nosso Artista ao apagar uma (muitas) fotos com 10 votos, esperar umas semanas até ter artificialmente conquistado 500 seguidores, para depois uploadá-la de novo e obter 100 ou 200 votos? A foto ficou melhor entretanto? O artista evoluiu entretanto? Não me fodam. Narcisismo infantil ensinado pela nossa sociedade de cariz individualista e superficial, que incentiva o protagonismo rumo ao estrelato, em vez do convívio e aprendizagem com o convívio! Ou a sensibilidade do mundo 500px mudou entretanto e o que era fraco e not fashion, é agora trend? Mas claro que não, o upload e reupload foram feitos, não num intervalo de 5 anos, mas sim de apenas 2, 3, 4 semanas. Nada mudou, excepto o número de followers artificialmente obtidos. Se o nosso Artista não repetisse fotos apagadas, até poderia se colocar a hipótese da subida gradual de likes por foto se dever a uma subida gradual da qualidade do seu trabalho. Como o Artista faz o favor de apagar e por de novo as mesmas fotos, fornece-nos a prova factual, precisa, concreta, de que nada melhorou... pois são as mesmíssimas fotos! Subiu de 10 para 200 likes? Como? Ahhhh, ai está a Sociedade do Espectáculo em todo o seu explendor!
A alma do preto-e-branco
Querem mais uma achega à desonestidade artistica: o artista, depois de ter em poucos dias uploadado centenas de fotos, das quais quase todas eram a cores, apagou-as todas uns meros dias depois, passou a uploadar apenas fotos a preto-e-branco e adicionou esta frase já acima citada "Through the lens of my camera, I can see the world in black and white. Without the distraction of color, I focus exclusively on the soul." (Através da lente da minha câmera, consigo ver o mundo a preto e branco. Sem a distracção da cor, foco-me exclusivamente na alma). Não é preciso dizer mais quanto à desonestidade colorida. Ou sim, lembrar que o artista ver-se-á, quer queira quer não, distraído pelas cores que os seus olhos captam ao olhar pelo buraquinho da sua câmera digital, ahaha... só depois de clicar para obter a foto digital, é que a foto a cores é digitalmente processada e passa a preto e branco de acordo com as opções digitais de preto-e-branco aparentemente seleccionadas. Daí que, insinuar que essa alucinação metafisica a que dá o nome de "alma" seja a sua fonte de inspiração é, em primeiro lugar, digitalmente desonesto, e em segundo lugar, desonesto!
Artista imcompreendido
Uma último detalhe interessante: a produção de títulos à artista incompreendido e à artista inspirado como "humano" a cada vez que fotografa uma pessoa, ou "poluição" quando fotografa uma central eléctrica de cujas chaminés não sai absolutamente fumo nenhum, ou "consequências da crise económica" quando fotografa um edifício abandonado do Portugal em crise económica mas que podia perfeitamente ser a foto de um qualquer outro edifício abandonado de um qualquer próspero país, ou "lendo sobre a crise económica" quando fotografa um português lendo um jornal, sem saber sequer se o homem estará a ler a secção desportiva ou a consultar os classifcados! O facto de estes dramáticos títulos estarem em inglês multiplica o seu efeito aos olhos de quem vê, nestes 2 últimos exemplos, a miséria portuguesa através das obras de arte fotográficas do artista, ahahah! "Sensacionalismo artístico" chamo eu a isto, para ser simpático! "Desonestidade artística", para me poderem chamar de "hater"!
Por tudo isto, caro Artista: força, baseia-te sobretudo em ideias metafisicas de "inspiração" e "alma das coisas" para te auto-enganares e te convenceres que és Um Artista, nestes tempos em que toda a gente anseia ser Artista com A grande, famosos e amado, e tudo isso de forma expontânea! Suor, trabalho e dedicação são paranóias de gente freek, pois claro!
E não, não me venham foder a cabeça chamando-me de "hater", esse anglicismo usado, abusado e violado à força ultimamente pois, quanto à desonestidade (e em especial à de pseudo artistas que se crêem incompreendidos), eu não a odeio, eu apenas a desmonto criticando-a, como fiz nos parágrafos acima. Em vez de me chamarem "hater", leiam este excelente artigo sobre "haters": Qui sont les "haters"?
Honestidade ou morte, venceremos, ahahahah!
Luís Garcia, 19.02.2016, Lampang, Tailândia