Na Síria, a nação inteira foi mobilizada e ganhou, por André Vltchek
Homs - destruição total
Sim, há montes de escombros, inclusive total destruição nalguns bairros de Homs, de Aleppo, nos subúrbios de Damasco e um pouco por todo o lado.
Sim, há terroristas e "forças estrangeiras" em Idlib e vários pequenas bolsas nalgumas partes do país.
Sim, centenas de milhares de pessoas perderam as suas vidas e milhões estão no exílio ou são refugiados internos.
Mas a nação síria está firmemente de pé. Não desmoronou como a Líbia ou o Iraque. Nunca se rendeu. Nunca colocou a hipótese de se render. Passou por uma enorme agonia, sofreu fogo e inimaginável dor, mas no fim ganhou. Quase ganhou. E a vitória, muito provavelmente, finalizar-se-á em 2019.
Apesar do seu relativamente pequeno tamanho, não ganhou como uma "pequena nação", lutando uma guerra de guerrilha. Está vencendo como se de um grande e forte estado se tratasse: lutou com orgulho, frontalmente, abertamente, contra todas as probabilidades. Confrontou os invasores com tremenda coragem e resistência, em nome da justiça e da liberdade.
A Síria está ganhando, pois a única alternativa seria a escravatura e a subserviência, e estas não fazem parte do léxico das gentes daqui. Os sírios ganharam porque tinham de ganhar ou, caso contrário, enfrentar a inevitável morte do seu país e o colapso do seu sonho de uma pátria Pan-árabe.
A Síria está a ganhar e, se tudo correr bem, nada aqui no Médio Oriente voltará a ser o mesmo. As longas décadas de humilhação árabe acabaram. Agora, toda "a vizinhança" está a assistir [ao que se passa na Síria]. Agora toda a gente sabe: o Ocidente e seus aliados podem ser combatidos e detidos; eles não são invencíveis. São tremendamente agressivos e implacáveis, sim, mas não invencíveis. As mais vis infiltrações de fundamentalistas religiosos também podem ser esmagadas. Já o disse antes e volto a repeti-lo aqui: Aleppo tem sido a Estalinegrado do Médio Oriente. Aleppo, e Homs, e outras grandes e corajosas cidades sírias. Aqui, o fascismo foi confrontado, combatido com todo a força e com grande sacrifício, e foi por fim detido.
*
Estou sentado no gabinete do general sírio Akhtan Ahmad. Falamos russo. Pergunto-lhe sobre a situação da segurança em Damasco, embora já saiba a resposta. Há várias tardes e noites que tenho vindo a caminhar pelas estradas estreitas e sinuosas da Cidade Velha, um dos berços da humanidade. Mulheres e até jovens raparigas também por lá caminhavam. A cidade é segura.
É segura", sorri o General Akhtan Ahmad, com orgulho. “Sabe que é segura, não sabe?”
Aceno com a cabeça. Ele é um dos principais comandantes dos serviços de informações sírios. Deveria ter perguntado mais, muito mais. Detalhes e mais detalhes. Mas eu não quero saber de detalhes; não agora. Quero ouvir uma e outra vez que Damasco é segura, para ele, para os meus amigos, para os que passam.
A situação é agora muito boa. Saia à noite…”
Digo-lhe que o faço. Digo-lhe que o tenho feito desde que cheguei.
Já ninguém tem medo”, continua ele. “Mesmo em lugares onde grupos terroristas costumavam operar, a vida está a voltar ao normal… O governo sírio está agora fornecendo água e electricidade. As pessoas estão a regressar às regiões libertadas. O leste de Guta foi libertado há apenas 5 meses e agora você pode ver lojas abrindo lá, umas atrás das outras.”
Obtenho várias licenças assinadas. Tiro uma foto com o General. Fui fotografado com ele. Ele não tem nada a esconder. Ele não tem medo.
Digo-lhe que no final de Janeiro de 2019, ou em Fevereiro, o mais tardar, quero viajar a Idlib, ou pelo menos aos subúrbios daquela cidade. Tudo bem, só tenho que avisá-los com alguns dias de antecedência. Palmira, tudo bem. Aleppo, não há problema.
Apertamos as mãos. Eles confiam em mim. Eu confio neles. É o único caminho a seguir, isto ainda é uma guerra. Uma guerra terrível e brutal. Apesar do facto de Damasco estar agora livre e segura.
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Depois de sair do escritório do General, vamos a Jobar, nos arredores de Damasco. E depois a Ein-Tarma.
É uma loucura total.
Jobar costumava ser uma área predominantemente industrial e Ein-Tarma um bairro residencial. Ambos foram reduzidos quase inteiramente a escombros. Em Jobar, é-me permitido filmar dentro dos túneis que costumavam ser usados pelos terroristas; pelas Brigadas Rahman e por outros grupos com ligações directas à Frente al-Nusra.
O cenário é assustador. Antigamente estas fábricas ofereciam dezenas de milhares de empregos para a população da capital. Nada funciona aqui. Silêncio mortal, só pó e destroços.
O tenente Ali acompanha-me, enquanto eu caminho sobre os escombros. Perguntei-lhe o que aconteceu aqui. Ele responde, através do meu intérprete:
Este lugar só foi libertado em Abril de 2018. Foi um dos últimos lugares a ser recuperado das mãos dos terroristas. Durante 6 anos, uma parte foi controlada pelos "rebeldes" e a outra pelo exército. Os inimigos cavaram túneis e foi muito difícil derrotá-los. Eles usaram todas as infraestruturas que puderam, incluindo escolas. A maioria dos civis conseguiu escapar a partir deste lugar.”
Eu questionei-o sobre a destruição, embora soubesse a resposta, visto que sírios amigos meus costumavam viver nesta área e contaram-me as suas histórias em detalhe. O tenente Ali confirmou:
O Ocidente alimentava o mundo com propaganda, dizendo que esta destruição era causada pelo exército. De facto, o exército sírio entrava em confronto com os rebeldes apenas quando estes atacavam Damasco. Por fim, os rebeldes retiraram-se daqui, depois das conversações com o governo mediadas pela Rússia.”
*
Alguns quilómetros mais a leste, em Ein-Tarma, as coisas são bem diferentes. Antes da guerra, este era um bairro residencial. As pessoas costumavam viver aqui, na sua maior parte em edifícios de vários andares. Aqui os terroristas atacaram os civis com força. Durante meses e anos, famílias inteiras tiveram de viver com medo e sofrendo terríveis privações.
Parámos numa humilde loja onde se vendiam vegetais. Aí, aproximei-me de uma senhora idosa e, depois de ela concordar, comecei a filmar.
Ela falou, e depois gritou, directamente para a câmara, abanando as suas mãos:
Vivíamos aqui como se fossemos gado. Os terroristas trataram-nos como animais. Estávamos assustados, famintos, humilhados. Mulheres: os terroristas pegavam em 4 ou 5 esposas, forçando as meninas e as mulheres para o que eles chamavam de casamentos. Não tínhamos nada, não sobrou nada!”
"E agora?" perguntei eu.
Agora? Veja! Agora vivemos de novo. Temos um futuro. Obrigado, obrigado Bashar!"
Ela chama o seu presidente pelo nome próprio. Coloca as palmas das mãos contra o seu coração e, depois de as beijar, voltar a acenar com as suas mãos.
De facto, não há nada a perguntar. Apenas filmo. Em dois minutos, esta senhora disse tudo.
À medida que nos afastávamos, apercebo-me que provavelmente ela não é velha, mesmo nada velha. Mas o que aqui aconteceu despedaçou-a. Ela agora vive; agora vive e de novo têm esperanças.
Peço ao meu motorista que dirija devagar e começo a filmar a estrada, destruída e empoeirada, mas cheia de trânsito: pessoas caminhando, bicicletas e carros passando, evitando os buracos. Nas ruas adjacentes, as pessoas trabalham duro, reconstroem, limpam escombros, cortam vigas caídas. A electricidade está a ser restaurada. Vidros são montados nos caixilhos de madeira danificados. Vida. Vitória. Tudo isto é agridoce, pois tantas pessoas morreram; pois tanto foi destruído. Mas é vida, apesar de tudo; é de novo vida. E esperança, tanta esperança.
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Sento-me com os meus amigos, Yamen e Fida, num clássico café de Damasco, chamado Havana. É uma verdadeira instituição; um lugar onde os membros do Partido Baath se encontravam durante os velhos e turbulentos dias. Há fotografias do Presidente Bashar al-Assad exibidas em destaque.
Yamen, professor, recorda como ele teve que se mudar de um apartamento para outro, por várias ocasiões, durante os últimos anos:
A minha família vivia mesmo ao lado de Jobar. Tudo à volta estava sendo destruído. Tivemos de nos mudar. Então, num novo local, andava eu caminhando com o meu filho quando um morteiro aterrou perto de nós. Uma vez vi um edifício em chamas. O meu filho chorava horrorizado. Uma mulher ao nosso lado gemia, tentando lançar-se ela própria nas chamas: «O meu filho está lá dentro, preciso do meu filho, dêem-me o meu filho!» Naquela altura, não conseguíamos prever de onde e quando o perigo chegaria. Perdi vários parentes, familiares. Todos nós perdemos.”
Fida, colega de Yamen, está tomando conta da sua mãe idosa, todos os dias, depois de voltar do trabalho. A vida ainda é dura, mas os meus amigos são verdadeiros patriotas e isso os ajuda a lidar com os desafios diários.
Enquanto tomamos uma chávena de um forte café árabe, Fida explica:
[Você] vê-nos rindo e brincando mas, no fundo, quase todos sofremos de um profundo trauma psicológico. O que aqui aconteceu foi duríssimo; todos vimos coisas terríveis e perdemos nossos entes queridos. Tudo isto permanecerá connosco por muitos anos. A Síria não tem suficientes psicólogos e psiquiatras profissionais para lidar com a situação. Tantas vidas foram danificadas. Ainda sinto medo. Todos os dias. Muitas pessoas foram terrivelmente abaladas.
Tenho pena dos filhos do meu irmão. Nasceram no meios deste caos. O meu sobrinho mais pequeno... uma vez estávamos sob um ataque com morteiros. Ele estava tão assustado. As crianças são terrivelmente afectadas! Pessoalmente, não tenho medo de ser morta. Tenho medo de perder um braço, ou uma perna, ou de não poder levar a minha mãe ao hospital se ela se sentir mal. Pelo menos a minha cidade ancestral, Safita, sempre esteve segura, mesmo nos piores dias do conflito.”
“A minha Salamiyah não,” lamenta Yamen:
Salamiyah costumava ser pura e simplesmente horrível. Muitas aldeias tiveram de ser evacuadas... muitas pessoas morreram lá. Para o leste da cidade onde estavam posicionada al-Nusra, enquanto a parte ocidental estava ocupada pelo ISIS".
Sim, centenas de milhares de sírios foram mortos. Milhões de pessoas forçadas a abandonar o país, escapando tanto dos terroristas como do conflito, bem como à pobreza que vem a seguir aos combates. Milhões foram internamente deslocados; toda uma nação em movimento.
No dia anterior, depois de deixar Ein-Tarma, andámos de carro perto de Zamalka e Harasta. A totalidade de enormes bairros foram arrasados ou, pelo menos, terrivelmente danificados.
Quando você vê os subúrbios orientais de Damasco, quando você vê os edifícios fantasmas sem paredes nem janelas, com buracos de balas pontilhando os pilares, você pensa que você já viu tudo. A destruição é tão grande. Parece que a totalidade de uma enorme cidade foi desfeita em pedaços. Dizem que esta paisagem sinistra não muda durante pelo menos 15 quilómetros. O pesadelo continua, sem interrupção.
Então sim, você tende a pensar que já viu tudo, mas na verdade não, não viu tudo. E isto porque ainda não visitou Aleppo ou Homs.
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Durante anos, tenho lutado pela Síria. Fui fazendo-o a partir da periferia.
Consegui entrar nos Montes Golã ocupados por Israel e acumular provas sobre a brutalidade e o cinismo dos ocupantes.
Durante anos, fiz a cobertura da vida em campos de refugiados e "à sua volta". Alguns campos eram campos de verdade, mas outros eram na realidade fortalezas onde se treinavam terroristas, mais tarde injectados pela NATO em território sírio. Uma vez quase desapareci enquanto filmava Apayadin, uma dessas "instituições", erguida não muito longe da cidade turca de Hattay (Antakya).
"Quase" desapareci, mas outros morreram mesmo. Cobrir o que o Ocidente e os seus aliados têm feito à Síria é tão perigoso como cobrir a guerra dentro da própria Síria.
Trabalhei na Jordânia, escrevendo sobre os refugiados, mas também sobre o cinismo da colaboração jordana com o Ocidente. Trabalhei no Iraque onde, num campo perto de Erbil, os sírios eram forçados tanto pelas ONGs como pelo pessoal da ONU a denunciar o presidente Assad, caso quisessem receber pelo menos alguns serviços básicos. E, é claro, trabalhei no Líbano, onde mais de um milhão de sírios têm vivido, muitas vezes enfrentando condições inimaginavelmente terríveis e também discriminação (muitos estão agora regressando a casa).
E, agora que finalmente eu me encontrava do lado de dentro, tudo me parecia surreal. Mas bem.
A Síria pareceu-me ser o que eu esperava que fosse: heróica, corajosa, determinada e inequivocamente socialista.
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Homs. Antes de lá ir, pensei que já nada me poderia surpreender. Trabalhei por todo o Afeganistão, no Iraque, no Sri Lanka, em Timor Leste. Mas logo me percebi que, antes de visitar Homs, ainda não tinha visto nada.
A destruição de várias partes da cidade é tão grave que se assemelha à face de um outro planeta, ou a um fragmento de um qualquer filme de terror apocalíptico.
Pessoas caminhando sobre ruínas, um casal de idosos visitando o que costumava ser o seu apartamento, um sapato de menina que encontro no meio da estrada, coberto de poeira. Uma cadeira no meio de um cruzamento, a partir do qual todas as quatro estradas conduzem a horríveis ruínas.
Homs foi onde o conflito começou.
O meu amigo Yamen explicou-me, quando conduzíamos em direcção ao centro, que:
Aqui, os meios de comunicação atiçaram o ódio, sobretudo os meios de comunicação ocidentais. Mas havia também os canais do Golfo: a al-Jazeera, bem como as estações de televisão e rádio da Arábia Saudita. O Xeque Adnan Mohammed al-Aroor aparecia duas vezes por semana num programa de televisão, no qual dizia às pessoas para irem para as ruas, para baterem em tachos e panelas, para lutarem contra o governo.”
Homs foi onde a rebelião anti-governo começou, em 2011. A propaganda anti-Assad vinda do exterior logo alcançou um crescendo. A oposição foi ideologicamente apoiada pelo Ocidente e pelos seus aliados. Rapidamente o apoio tornou-se tangível e passou a incluir armas e munições, assim como milhares de combatentes jiadistas.
Uma cidade outrora tolerante e moderna (num país secular), Homs começou a mudar, dividindo-se em grupos religiosos. Com a divisão veio a radicalização.
Um bom amigo meu, um sírio que agora vive na Síria e no Líbano, contou-me a sua história.:
Eu era muito jovem quando a revolta começou. Alguns de nós tinham certas queixas legítimas e começámos a protestar, esperando que as coisas pudessem mudar para melhor. Mas muitos de nós logo perceberam que os nossos protestos estavam literalmente sendo sequestrados a partir do exterior. Queríamos um conjunto de mudanças positivas, enquanto alguns líderes fora da Síria queriam derrubar o nosso governo. Consequentemente, deixei o movimento.”
Depois partilhou comigo o seu mais doloroso segredo:
No passado, Homs era uma cidade extremamente tolerante. Sou um muçulmano moderado e a minha noiva era um cristã moderada. Éramos muito chegados. Mas, depois de 2011, a situação na cidade foi mudando rapidamente. O radicalismo não parava de crescer. Pedi-lhe repetidamente para cobrir o seu cabelo quando passasse por bairros muçulmanos. Fazia-o por preocupação, porque começava a ver com clareza o que estava a acontecer à nossa volta. Ela nunca aceitou fazê-lo. Um dia, foi baleada no meio da rua. Eles mataram-na. A vida nunca mais foi a mesma.”
No Ocidente, muitas vezes dizem que o governo sírio foi, pelo menos parcialmente, responsável pela destruição da cidade. Mas a lógica de tais acusações é absolutamente perversa. Imagine Estalinegrado. Imagine uma invasão estrangeira, uma invasão apoiada por várias potências fascistas hostis. A cidade riposta e o governo tenta parar o avanço das tropas inimigas. A luta, horrível, uma épica luta pela sobrevivência da nação, continua. De quem é a culpa? Dos invasores ou das forças governamentais que defendem a sua própria pátria? Poderá alguém criticar as tropas soviéticas por terem lutado nas ruas das suas próprias cidades atacadas pela Alemanha Nazi?
Talvez a propaganda Ocidental seja capaz de realizar tais "análises"; seres humanos racionais não.
A lógica aplicada a Estalinegrado deve também ser aplicada a Homs, a Aleppo e a várias outras cidades sírias. Tendo literalmente feito a cobertura de dezenas de conflitos iniciados pelo Ocidente em todo o mundo (e descrito esses conflitos em detalhe no meu livro de 840 páginas “Exposing Lies Of The Empire”), não tenho dúvidas nenhumas: a total responsabilidade por esta destruição recai sobre os invasores.
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Estou face a face com a senhora Hayat Awad, num restaurante antigo chamado Julia Palace e que costumava ser uma fortaleza terrorista. Terroristas ocupavam este lindo lugar, localizado no coração da Cidade Velha de Homs. Agora, as coisas estão lentamente renascendo aqui, pelo menos em várias partes da cidade. O mercado antigo está em funcionamento e a universidade está aberta, assim como estão vários edifícios governamentais e hotéis. Mas a Senhora Hayat vive simultaneamente no passado e no futuro.
A senhora Hayat perdeu o filho, Mahmood, durante a guerra. O seu retrato está sempre com ela, gravado num pendente que leva sempre ao peito.
Ele tinha apenas 21 anos, estudante ainda, quando decidiu se juntar ao exército sírio. Ele disse-me que a Síria é como uma mãe para ele. Ele ama-a, como me ama a mim. Ele estava lutando contra a frente al-Nusra e a batalha era muito dura. Ao final do dia ligou-me, só para me dizer que a situação não era muito boa. Na sua última chamada, pediu-me que o perdoasse. Ele disse: «Talvez eu não volte. Por favor, perdoa-me. Eu amo-te!».”
Haverá muitas mais mães como ela, aqui em Homs, que perderam os seus filhos?
Sim, conheço muitas mulheres que perderam os seus filhos; e não apenas um filho, por vezes dois ou mesmo três. Conheço uma senhora que perdeu os seus dois únicos filhos. Esta guerra tirou-nos tudo. Não só os nossos filhos. Eu culpo os países que apoiaram essas ideologias extremistas trazidas para a Síria; países como os Estados Unidos e os países europeus.”
Depois de eu parar de filmar, ela agradece à Rússia pelo apoio prestado. Ela agradece a todos os países que estiveram ao lado da Síria durante estes anos difíceis.
Não muito longe de Julia Palace, os trabalhos de reconstrução está em pleno andamento. E, a poucos metros de distância, uma mesquita restaurada está a ser reaberta. As pessoas dançam e celebram. É o aniversário do Profeta Maomé. O governador de Homs marcha rumo às festividades, na companhia de membros do seu governo. Não há quase nenhuma segurança à volta deles.
Se o Ocidente não desencadear mais uma onda de terror contra o seu povo, Homs ficará bem. Não de imediato, talvez não em breve, mas ficará um dia, com a resoluta ajuda de russos, chineses, iranianos e outros camaradas. A própria Síria é forte e determinada. E os seus aliados são poderosos.
Quero acreditar que os anos mais horríveis já passaram. Quero acreditar que a Síria já ganhou.
Mas eu sei que ainda há Idlib, e há também bolsas ocupadas por forças turcas e forças ocidentais. Ainda não acabou. Os terroristas não foram totalmente derrotados. O Ocidente disparará mísseis seus. Israel enviará a sua força aérea para agredir o país. E os meios de comunicação do Ocidente e do Golfo continuarão com a sua guerra mediática, agitando e confundindo certos segmentos do povo sírio.
Ainda assim, ao sair de Homs, vejo lojas (até de roupa) sendo abertas no meio dos escombros. Algumas pessoas estão de novo se vestindo elegantemente, como forma de mostrar a sua força, a sua determinação de deixar para trás o passado e de viver, mais uma vez, as suas vidas normais.
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De volta a Damasco, a auto-estrada está em perfeitas condições e a área industrial de Hassia está a ser reconstruida e ampliada. Há uma enorme central eléctrica, apoiada pelos iranianos, segundo me disseram. Apesar da guerra, a Síria continua a fornecer electricidade ao vizinho Líbano.
Yamen dirige a 120 km/h e nós divertimo-nos com a piada: assim que passamos a ter medo de radares de velocidade e não de snipers, podemos afirmar que a situação no país está melhorando drasticamente.
Encontramos um comboio militar russo estacionado numa área de repouso. Os soldados estão bebendo café. Não há receio. Os sírios tratam-nos como se fossem o seu próprio povo.
Sobre o deserto, vejo o mais espectacular dos pores-do-sol.
Depois, uma vez mais, passamos por Harasta, desta vez à noite.
Apetece-me praguejar. Não o faço; praguejar é demasiado fácil. Preciso de pegar no meu computador o mais rápido possível. Tenho de escrever, trabalhar. Trabalhar muito, o melhor que puder.
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É fácil sentir-se em casa na Síria. Talvez porque o russo é a minha língua materna ou talvez porque as pessoas aqui sabem que eu sempre defendi o seu país.
Alguns obstáculos burocráticos foram resolvidos rapidamente.
Encontrei-me com o ministro cessante da Educação, o Dr. Hazwan Al-Waz, também romancista. Falámos sobre a sua escrita, sobre o seu último livro Amor e Guerra. Ele confirmou-me o que eu sempre soube, como romancista revolucionário:
Durante a guerra, tudo é politizado, mesmo o amor."
E depois, algo que eu nunca esquecerei:
O meu Ministério da Educação tem sido, de facto, o Ministério da Defesa."
Ontem à noite, em Damasco, andei por toda a cidade velha até de manhã cedo. A certa altura, aproximei-me da espectacular Mesquita dos Omíadas e, logo atrás dela, o mausoléu do sultão Saladino.
Não pude entrar. A esta hora da noite encontrava-se encerrado. Mas podia facilmente vê-lo através das barras de metal do portão.
Este corajoso comandante e líder lutou contra os enormes exércitos dos invasores ocidentais, os Cruzados. Tendo vencido quase todas as batalhas que participou, encontra a sua paz e o seu lugar de descanso final aqui, em Damasco.
Prestei homenagem a este antigo companheiro internacionalista, e depois pus-me a pensar, enquanto bebia um forte café numa tenda ali perto, a meio da noite: "Terá Saladino participado nesta última épica batalha travada pela nação Síria contra as hordas de bárbaros estrangeiros?”
Talvez o seu espírito tenha. Ou, mais provavelmente, algumas batalhas tenham sido lutadas e ganhas com o seu nome nome por entre os lábios.
"Eu voltarei", disse eu, caminhando de volta para o meu hotel, poucos minutos depois da meia-noite. Dois grandes gatos peludos acompanharam-me, seguindo os meus passos até à primeira esquina. "Voltarei muito em breve".
A Síria mantém-se de pé. E é isso que realmente importa. Nunca se ajoelhou. E nunca o fará. Nós não permitiremos que o faça.
E maldito seja o imperialismo!
André Vltchek, 11 de Dezembro de 2018
Traduzido para o português por Luís Garcia.
Versão original em inglês aqui (também publicado aqui e aqui).
André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.
Todas as fotos do artigo por: André Vltchek.