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Pensamentos Nómadas

Nomadic Thoughts - Pensées Nomades - Кочевые Мысли - الأفكار البدوية - 游牧理念

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Na pequena cidade canadiana de Regina a resistência vai se formando, por André Vltchek

03.05.19 | Luís Garcia

 

Andre Vltchek Política Sociedade  

 

Ed Lehman é um comunista canadiano e um camarada meu. Não digo este género de coisas com frequência ou de forma leviana, sobretudo quando se trata de ocidentais. Mas Ed Lehman tornou-se meu camarada e lutámos lado a lado, durante cinco dias. Não no deserto sul-americano, não no Afeganistão ou na Síria, mas em Regina, uma pequena cidade canadiana, a capital da província de Saskatchewan.

 

Admito que antes de ser convidado para ir lá, não sabia quase nada sobre Regina. Nem sabia pronunciar correctamente o seu nome. Mas, um dia, recebi um email e fui convidado para ser orador principal na Conferência de Paz de Regina. Espontaneamente, aceitei o desafio.

 

A conferência de paz foi apelidada de "Sim à paz e ao progresso - Não à NATO e à guerra!”.

 

Normalmente não discurso em conferências de paz. Sempre acreditei que os países oprimidos e colonizados têm de lutar pela sua independência e liberdade, e que a paz, tal como é propagada no Ocidente, é algo que, na realidade, apenas defende o status quo. Tal como afirmei no Canadá, a paz ocorre "quando as bombas não estão caindo sobre Paris ou Toronto". Ocorre enquanto os miseráveis da terra morrem silenciosa e obedientemente, longe das câmaras de filmar, nos seus países e continentes saqueados .

 

Na verdade, muitos movimentos de paz no Ocidente irritam-me até mais não. A sua falta de sensibilidade, assim como a ignorância, são de enlouquecer uma pessoa. O desejo, por parte dos seus membros, de "fazer o bem" e de "sentir-se bem" é, muitas vezes, egoísta e não tem absolutamente nada a ver com a luta pela justiça em dezenas de estados "vassalos" colonizados e pilhados.

 

Mas havia algo de muito diferente naquilo que me apercebi ao ler o convite de Regina. Os organizadores estavam realmente falando sobre justiça, não apenas sobre parar conflitos. Defendiam a Venezuela com toda a convicção. E o seu principal objectivo era desmantelar a NATO, ou "pelo menos" convencer os canadianos de que o seu país não deveria participar nas sangrentas "aventuras" que vão arruinando a vida de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo. Senti que estava a ser abordado por uma esquerda real e sólida. E por isso, sem muita hesitação, aceitei o convite.

*

O programa era meio louco. Em duas cidades canadianas, Regina e Winnipeg, eu tive literalmente de falar dia e noite, discursando numa conferência de paz, num comício (chamado "Não à NATO! Não à "Política de Mudanças de Regime!" no centro de Regina, no Parque Victoria, junto ao cenotáfio aos soldados caídos na primeira e segunda guerra mundiais e nas guerras da Coreia e do Afeganistão), bem como para estudantes e professores em três universidades e uma escola secundária. Simultaneamente, tive de dar entrevistas tanto a meios de comunicação impressos como a estações de rádio. Pediram-me para mostrar ao público dois dos meus documentários, um sobre a Coreia do Norte e um outro sobre a devastadora pobreza e a epidemia da SIDA na região dos Grandes Lagos Africanos.

 

Por que estou eu escrevendo tudo isto e fornecendo esta detalhada lista de eventos? Por uma razão simples: pareceu-me que o Canadá é realmente muito diferente dos Estados Unidos, apesar da sua proximidade geográfica e apesar do facto de ter eleito o seu governo vergonhosamente de direita.

 

Em primeiro lugar, os canadianos ouvem. Podem nem sempre concordar com pensadores comunistas e revolucionários como eu, mas sentam-se e ouvem-nos. Querem saber, querem compreender. Tudo isto já é deveras impressionante num mundo constantemente lavado do cérebro pela propaganda ocidental.

 

Mas há mais, notei mais enquanto lá estive: ao contrário de lugares como a Califórnia, ninguém aqui me diz: "Obrigado por vir, mas por favor não nos mostre muito sangue nem muito sofrimento. Nós não seriamos capazes de digerir tais coisas" (precisamente os comentários que uma vez recebi, nos EUA, quando me prestava a mostrar alguns excertos do meu filme "Rwanda Gambit").

 

Se você disser a uma audiência canadiana: "Veja, vocês estão participando de vários massacres cometidos pela NATO e eu vou vos mostrar o que as pessoas nesses países têm de suportar", muitos canadenses não dirão "não"; eles sentar-se-ão a ouvi-lo e, se necessário, assistirão ao que você propuser compartilhar com eles.

 

Estou-lhes grato por isso, e também impressionado. É muito mais do que o que eu encontrei em muitas partes do Ocidente.

 

Outro facto impressionante é que o Winnipeg não é uma grande cidade, e Regina apenas tem cerca de 200.000 habitantes. No entanto, ambas as cidades têm uma vida intelectual verdadeiramente vibrante. Contam com indivíduos altamente instruídos e bem informados que claramente se opõem ao regime ocidental e aos ditames globais. Têm pessoas que de facto lutam contra o regime.

 

Outro aspecto que também notei foi que a nossa conferência, organizada pelo Conselho de Paz de Regina (do qual Ed Lehman é presidente), foi seguida pelos média locais "mainstream", pelo Regina Leader Post, por exemplo, que escreveu um simpático relato no seu artigo “Group of Reginans protest Canada’s involvement in NATO”. O jornal também não teve problema nenhum em divulgar as minhas ideias. O mesmo se aplica à estação de rádio da comunidade local. E mais, Erin Weir, um membro independente do parlamento que representa o eleitorado de Regina-Lewvan, deu pessoalmente à conferência as suas sinceras saudações.

 

Eu discurso com frequência em universidades do mundo inteiro. Mas em Regina fui convidado a dirigir-me a uma turma de alunos do ensino secundário, e os alunos foram capazes de formular e fazer perguntas bem pertinentes.

 

Não estou a querer dizer que "participei em eventos mainstream" no Canadá, mas tanto em Regina quanto no Winnipeg, foi-me "permitido" interagir com, e influenciar, vários professores e estudantes. Foi-me "permitido"  fazê-lo até através de meios de comunicação e até mesmo para o público local.

*

Activistas anti-guerra aqui têm a sua publicação de notícias sobre a paz, o Saskatchewan Peace News, que celebra agora o seu 26º ano de existência. Além de noticiar eventos sobre paz, expõe também ideias que visam paralisar o movimento de paz, ideias como a doutrina da "Responsabilidade de Proteger" e o "intervencionismo humanitário" que, nas palavras de Dave Gehl, são "uma versão do séc XXI do «Fardo Do Homem Branco»" e são usados para organizar eventos paz.

 

Para Ed Lehman, "paz" não é apenas uma palavra bonita ou um slogan, e ele não é o único em Regina que pensa assim. Ele acredita que:

Os progressistas de hoje precisam de unir a luta pela paz com a luta pelo avanço social e económico, e com a luta contra a crise climatérica, e com a batalha contra o racismo. É necessária uma profunda transformação do sistema económico e social na América do Norte para que a justiça prevaleça; vimos nos anos trinta, quarenta, cinquenta e sessenta que, mesmo no ventre da besta, vitórias podem ser alcançadas.”

 

Justiça e racismo ... infelizmente, racismo não é apenas uma palavra feia aqui em Saskatchewan e no Canadá em geral. É uma realidade, uma vergonha. Muitas das pessoas da Primeira Nação, ou melhor, os habitantes originais do Canadá, continuam a viver numa terrível miséria, sofrendo de discriminação, como me foi dito por Julie Peebles, uma jovem mulher com uma grande preocupação pela condições de vida da população nativa do Canadá e que reparou nas semelhanças entre o problema da SIDA tal como este é retratado no meu filme sobre o Quénia, e a situação em Saskatchewan. Aqui, os povos indígenas enfrentam condições sociais semelhantes às dos países mais pobres da terra.

 

Primeiro sugeri, meio a brincar, que eu deveria regressar a Regina no final deste ano, a fim de fazer um breve documentário descrevendo a situação da Primeira Nação: "não seria embaraçoso ter um russo viajando por aqui, fazendo exactamente aquilo que deveria ser a obrigação de qualquer cineasta canadiano com um mínimo de decência"? Não leveram a brincar a minha proposta: o povo de Regina, do fundo do coração, acolheu de verdade a minha proposta, oferecendo ajuda e apoio, quer moral quer prático (como hospedar-me, levar-me de carro, mostrar-me locais de relevo para o meu filme). E, agora, estou seriamente determinado em voltar e oferecer a minha ajuda.

*

Depois do evento, e depois da minha partida, muitas figuras públicas elogiaram o trabalho dedicado e a luta do Conselho de Paz de Regina. Uma das cartas dizia:

O Conselho de Paz de Regina demonstrou mais uma vez ao movimento global pela paz todas as possibilidades que existem e tudo o que se pode fazer se houver cuidadosa e bem-pensada organização e mobilização dos esforços públicos pela paz, sobretudo através de convites à nova geração de activistas pela paz e a vozes anti-imperialistas dedicadas à mesma causa.

O evento em Regina coincidiu com outros esforços internacionais em curso e negligenciados pelos média mainstream controlados pelas corporações suas proprietárias.

A NATO, promovida pela corrupta cabala mediática e política da finança capitalista como sendo uma aliança defensiva, está gradualmente sendo exposta pelo que na verdade é, uma polícia imperialista que provoca guerras orquestradas nos EUA, incluindo a sua forma mais terrível, a guerra nuclear. O nosso Canadá não tem futuro e, certamente, não está seguro enquanto continuar a fazer parte da NATO liderada pelos EUA.”

 

O próprio Eh Lehman provou que não é apenas um dedicado lutador, mas também um construtivo optimista. Depois da minha partida, escreveu-me:

A esquerda teve um enorme impacto no Canadá nos últimos cem anos. Sem as lutas da classe operária, dos camponeses militantes, dos intelectuais progressistas, da população indígena, entre outros, o nosso país não teria os programas sociais e os direitos que tantos aqui tomam hoje como garantidos. Agora, a nação enfrenta cada vez mais uma crise de  níveis de vida, resultado dos impactos do neoliberalismo e do neoglobalismo no nosso país. A esquerda, e sobretudo os comunistas, têm, como tarefa, a obrigação de oferecer uma forte liderança nas lutas contra a catástrofe climatérica, por uma política externa canadiana baseada na paz e no desarmamento e por um socialismo como solução para os problemas enfrentados pelos canadianos. Com uma visão socialista, e optimismo, o povo trabalhador do Canadá irá traçar um novo rumo para o nosso país.”

*

No Winnipeg, confrontei publicamente o ex-embaixador canadiano na Venezuela, Ben Rowswell, (assista aqui), um homem que já causou grandes danos a vários países não-ocidentais e que continua com o seu destrutivo trabalho.

 

Proferi também um discurso na Universidade de Winnipeg (pode assistir aqui ao meu discurso "NATO, Canadá e O imperialismo ocidental").

 

Será o Canadá (e os seus movimentos de paz em Regina e no Winnipeg), um proverbial David enfrentando o tal Golias?

 

Não tenho a certeza, mas o que encontrei por lá encheu-me de optimismo e esperança, convencendo-me mesmo de que nem "tudo no Ocidente está perdido ainda".

 

Também me fez pensar: assume-se sempre que os centros de resistência se localizam em metrópoles como Nova Iorque, Los Angeles ou Toronto. Só que, na realidade, a oposição canadiana muitas vezes reúne-se em pequenas cidades e vilas. Veja-se a Radio Pacifica nas profundezas da British Columbia, Christopher Black bem fora de Toronto e Ed Lehman em Regina.

 

O Conselho de Paz de Regina já acolheu canadianos como Michel Chossudovsky, um grande pensador e editor da Global Research, Eva Bartlett, uma das mais corajosas correspondentes de guerra à face da terra e, em breve, Christopher Black, meu amigo, um comunista, advogado, escritor e poeta. Também me acolheu a mim, um escritor revolucionário e, como me chamam na América Latina, um militante internacionalista. E o povo de Regina não se mostrou assustado com o que eu tinha para dizer; trataram-me com bondade e de forma calorosa, algo que eu nunca esquecerei.

 

Senti-me bem mais em casa em Regina do que em Toronto ou Montreal.

*

Durante uma manifestação contra a NATO em Regina, bem no meio da cidade, dois polícias, um homem e uma mulher, observavam-nos à distância. Não tentaram interferir. Até chegaram a sorrir e estavam atentos a ouvir.

 

Quando os manifestantes formaram um círculo, dois agentes da lei foram convidados a participar nele. Sem hesitar, juntaram-se ao círculo. Foi então que pensei: "Não, isto não tem nada a ver com os Estados Unidos. Isto aqui é Canadá".

 

E fiquei com a certeza que, em breve, lá voltarei.

 

André Vltchek

 

Traduzido para o português por Luís Garcia

Versão original em inglês na NEO - New Eastern Outlook.

 

André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula: O Brasil de Bolsonaro - O Novo Tubarão Num Mar Infestado de Tubarões. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.

 

Leia também:

Por Lula: O Brasil de Bolsonaro - O Novo Tubarão Num Mar Infestado de Tubarões

(Traduzido por Luís Garcia)

 

 

 

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