Manifesto contra o amor romântico e contra a deturpação da sexualidade e do corpo humanos, por Ricardo Lopes
Na era da ciência, ainda carregamos nas nossas cabeças os parasitas culturais que nos são transmitidos pelas mais diversas formas de expressão e condicionamento cultural. Tudo aquilo de que nos convencemos e não corresponde a nada de real, apenas contribuirá para o nosso mal-estar e sofrimento desnecessário, pelo menos a longo prazo. Como exemplo, basta ver o quão contribui para a insanidade das pessoas injetarem-lhe culturalmente no cérebro a noção de “propósito” ou de “sentido” para a vida. A vida não tem propósito nem sentido, e nunca terá por mais forçosa que seja a projeção que se tente fazer disso na realidade. A realidade nunca se conforma a ideologias. Reconhecer que a vida não tem “propósito” nem “sentido” pode ser uma grande forma de libertação, porque permite às pessoas desenvencilharem-se do ónus que lhes é colocado aos ombros pela sociedade de cumprirem determinados papéis, como ser mãe, ser pai, ser mulher ou marido, ter filhos, ter uma carreira de sucesso.
O problema do amor romântico é exatamente o mesmo. Não existe aquilo a que as pessoas chamam de amor, como sendo uma forma incondicional e perene de gostar de alguém. Ninguém corresponde exatamente àquilo que nós procuramos noutra pessoa. E ainda bem que não. Se isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde perceberíamos que tínhamos encontrado uma réplica nossa e interagir connosco mesmos tornar-se-ia pestilento e altamente aborrecido. As pessoas são interessantes por serem diferentes de nós, e são interessantes por não corresponderem às suposições que as nossas primeiras impressões levam a fazer delas. Toda a gente tem aspetos de que gostamos e outros de que não gostamos. Toda a gente faz coisas de que gostamos e outras de que não gostamos. Toda a gente gosta de coisas em comum connosco e de outras de que nós não gostamos ou até odiamos. Toda a gente tem hábitos de que gostamos e outros de que não gostamos. Toda a gente em algum momento faz ou diz coisas que nos magoam, que nos ferem a sensibilidade, que vão contra aquilo em que acreditamos, que nos ofendem circunstancialmente. Tudo isso é normal.
Gostar de alguém é aceitar relacionar-se com alguém com quem se está disposto a assumir o compromisso de aceitar os seus defeitos, de tolerar as suas falhas, de suportar tudo aquilo que fazem de que nós não gostamos. Porque, sim, haverá sempre coisas dos outros de que não gostamos.
E, mais do que isso, é também normal que uma relação mude, que passe a ser algo de diferente do que era ao início. É até normal que mude muitas vezes. As pessoas mudam, e com elas muda a relação. E, mesmo quando as pessoas em si não mudam significativamente, é normal, em termos fisiológicos, que as pessoas já não se sintam tão bem ao pé de alguém com quem já se relacionam há muito tempo. O cérebro e o corpo deixam de produzir aqueles fantásticos neurotransmissores e hormonas, respetivamente, que nos permitem estabelecer laços fortes com outras pessoas. Aquela carga de oxitocina, dopamina, entre outras coisas, que nos deixam inebriados.
Mas, atenção, porque é que nos deixam inebriados? Qual é o estímulo que provoca a sua libertação? É o contacto com alguém que tem semelhanças, que reconhecemos de uma forma mais ou menos consciente, com outras pessoas a quem associámos, na nossa vida pregressa, sentimentos positivos. Alguém que corresponde mais ou menos aos homens ou às mulheres que a cultura nos condicionou para considerarmos bonitos ou sensuais.
E, qual é o problema disso? As pessoas não saberem disto, não perceberem como é que opera o condicionamento cultural, em que medida o seu comportamento e o seu pensamento são o resultado dos fatores externos e das mais variadas influências que recebem do meio, e não perceberem como funciona o seu próprio cérebro, é que lhes faz mal.
Não é ser fútil ou superficial gostar de alguém apenas pela sua aparência física ou por características superficiais do seu comportamento, da sua postura, da sua expressividade. Isso é ser humano.
E, mais, não só é normal que as relações deteriorem pela monotonia e pela modificação da fisiologia cerebral, como também é normal que as pessoas tenham interesse em relacionar-se com várias, da mesma maneira ou de formas diferentes. O que está errado nisso não é o comportamento em si, que não tem nada de promíscuo nem de debochado, a não ser na cabeça de moralistas cuja humanidade já está destruída sem retorno. O que está errado nisso é a maneira como a sociedade lida com algo que é normal, mas que não é norma social. O que está errado é as pessoas serem condicionadas no modelo de relação exclusiva e no de amor romântico e as pessoas sentirem-se coagidas a não comunicar abertamente com o outro quando acontece começarem a gostar de outra pessoa e manifestarem a sua vontade de terem uma relação com ela, seja de que tipo for. O que está errado é a promoção cultural da mentira e da deturpação dos relacionamentos e da complexidade sentimental do ser humano.
O que está errado é contaminar a cabeça das pessoas com ideias que podem conduzir a comportamento desesperados. Com ideias como a de que existem almas gémeas, pessoas insubstituíveis, pessoas únicas, e se perdermos a relação que temos com elas ficaremos eternamente remetidos à solidão. Ideias como a de que somos promíscuos, debochados, sujos, porcos, desleais, se nos permitirmos gostar de outras pessoas de uma forma não exclusiva.
Com isto, não estou a defender que as pessoas devam aceitar determinados tipos de relações, abertas, exclusivas, poliamorosas, ou o que for. Não, as pessoas têm de aceitar os tipos de relações em que se sentem bem. E, também, aceitar que as pessoas com quem se relacionam podem não ter afinidade para com o mesmo tipo relacional. E também não têm de manter uma relação com essas pessoas se isso lhes causa transtorno psicológico. De qualquer maneira, seja qual for o tipo de relação que interesse a alguém, isso é sempre o resultado do condicionamento a que foram sujeitas, quer por via da cultura, que por via das experiências que tiveram ao longo da vida e das influências que receberam das mais diversas vias.
E, mais uma vez, qual é o problema disso? Qual é que é a ideia de tornar patológico algo que é natural? Qual é a ideia de moralizar, seja de que maneira for, pessoas que, de uma forma consentida, dão prazer uma à outra e se fazem sentir bem mutuamente, seja a conversar, a brincar ou a terem intimidades físicas?
Alguém gosta de outra pessoa. Qual é o problema? Não ficam contentes por alguém de quem gostam gostar também de outras pessoas? Não conseguem enxergar o quanto de proprietário, egoísta e coercivo pode ter exigir da outra pessoa que apenas nutra determinado tipo de sentimentos por nós? Como é que se pode fazer uma exigência dessas, se os estímulos que recebemos que nos levam a achar outra pessoa interessante são processados automaticamente pelo cérebro? É realmente bom fazer as pessoas sentir-se mal por causa disso? É realmente bom tentar exercer poder sobre os sentimentos e o cérebro alheios?
Não, não é bom, e nunca dá bom resultado. O que faz com que tantas relações acabem mal é o conjunto de todos estes preceitos culturais a operar na mente das pessoas. O facto de não saberem lidar de uma forma normal com a sua sexualidade, nem com a sexualidade dos outros, relacionando-se com eles ou não. O facto de existir uma cultura de género que determina que um homem se deve comportar de determinada forma e a mulher de outra determinada forma. O facto de não se perceber que o comportamento dos homens e das mulheres é determinado pela cultura na qual estão inseridos e que prescreve comportamentos e formas de pensar para os homens e as mulheres, e, com base nisso, tratar as pessoas do próprio sexo e do sexo oposto com base na suposição de que esse conjunto de comportamento faz parte da sua “natureza”. O facto de a sociedade prescrever tipos de relações ideais e que não correspondem a nada de real e, quando acontece as pessoas desenvolverem-se de maneira a que esse tipo de relações não lhes sirva e lhes cause mal-estar, deixarem-se atormentar psicologicamente e classificarem-se como “imorais” ou “pecadores” ou “cabrões” ou “putas” ou “debochados” ou “porcos” ou “promíscuos”. O facto de as pessoas não receberem educação sexual o mais cedo possível na vida, também porque os adultos já estão de tal forma condicionados nesta palhaçada cultural que sentem vergonha em falar honestamente sobre estes assuntos com as crianças. O facto de as pessoas não conseguirem lidar normalmente com a nudez.
E o mesmo acontece com a forma como as pessoas lidam com qualquer outro tipo de comportamento humano ou fenómeno social. A violência humana é um problema, mas ter contacto com ela e desenvolver insanidade psicológica é um problema que deriva da escassez de recursos intelectuais para lidar com ela. Deriva do facto de as pessoas não receberem os conhecimentos necessários para perceber porque é que as pessoas cometem atos violentos. O acesso a conhecimentos relevantes acerca do mundo real, validados empiricamente, e não a meras ideologias marinadas na cabeça de pessoas que gostam de passar horas a masturbar-se intelectualmente, é aquilo que determina a forma como as pessoas lidam com os acontecimentos e com o comportamento alheio e que determina a probabilidade de manterem a sanidade mental ou caírem ruinosamente na insanidade, muitas vezes irremediavelmente.
Portanto, aquilo que é realmente mais importante e que nos permite ter, o melhor possível, a cabeça livre de entulho para estabelecermos relações saudáveis com outros seres humanos, seria livrar as pessoas, principalmente as crianças, do parasitismo dos moralistas, dos religiosos, do parasitismo dos ideais de amor artísticos e filosóficos, e de lhes permitir o acesso a ume educação relevante acerca do cérebro humano, da sexualidade humana, dos relacionamentos e da etiologia do comportamento humano.
O que destrói as relações íntimas entre as pessoas são as mentiras que este modelo moralista e ideológico de educação para as relações humanas induz e faz propagar. As pessoas não mentem porque são “más” ou porque são “infiéis”, mas sim porque não têm a oportunidade de lidar saudavelmente com fenómenos normais do ponto de vista científico. E o que destrói a apreciação saudável da sexualidade e do corpo humano – da nudez – são as projeções mentalmente degeneradas de quem decide que é melhor, com fins de organização social, macular a sexualidade e o corpo humanos.
Mas, há que nunca esquecer, um corpo é apenas um corpo. Aquilo que alguém vê no corpo, não está nele, mas apenas na sua própria cabeça, completamente fodida pelos conceitos moralistas e os ideais filosóficos de gente que vive e projeta no mundo e nos outros a sua insanidade mental.
Ricardo Lopes