Mais uma bela alma: Contragolpeando o ataque global à dissidência, por Stephen Gowans
Recentemente, chamaram-me à atenção para um artigo de Sonali Kolhatkar no Truth Dig entitulado: “Why Are Some on the Left Falling for Fake News on Syria?”, que o Counterpunch ["Contragolpe" em inglês, nome de um media conhecido por ser do contra, daí o trocadilho do título] considerou ser suficientemente importante para o republicar com o título “The Left, Syria and Fake News”. O artigo de Kolhatkar foi me apresentado como sendo mais uma obra de uma "bela alma".
Haverá certamente razões para acreditar que a colunista do Truth Dig encaixa nessa descrição. Kolhatkar incentiva-nos a equacionar “alternativas não-militares para acabar com a complexa guerra [na síria]”, mas não consegue pensar em nenhuma, tal como Mehdi Hasan no seu delírio contra os defensores da luta do governo sírio contra as agressões do que ele diz serem a voraz política externa dos Estados Unidos, o extremismo saudita e o oportunismo israelita. Nem um nem outro consegue pensar em benignas alternativas que o governo sírio deva empregar para se defender mas, ainda assim, acreditam que Assad deve apresentar algumas.
E, tal como Hasan, Kolhatkar reclama ser neutra em relação à guerra neocolonial dos EUA contra a Síria, insistindo que ela não está nem do lado de Washington nem do lado de Damasco mas sim, tal como Eric Draitser do Counterpunch, do lado do povo sírio. As almas belas escapam-se dos embates entre reais forças sociais, refugiando-se numa amorfa "humanidade".
As belas almas deixam-se consumir por “fantasias filantrópicas e sentimentais frases sobre fraternidade”, comentou certa vez Engels. Defendem o “humanismo edificante” e “indistintos e vagos apelos morais”, mas nunca a “acção política concreta” que desafie “um sistema social específico”.* Fica no ar a dúvida sobre o que será que o Counterpunch [Contragolpe] andará contra-golpeando mas, pelo menos nos casos de Draitser e Kolhatkar, imperialismo norte-americano não será certamente.
As belas almas parecem não se aperceber que a guerra na Síria é uma luta política concreta ligada a um sistema social específico relacionado com o império; é a luta dos EUA para estender a sua ditadura sobre todo o mundo árabe, e a luta dos nacionalistas árabes em Damasco e seus aliados para combater os imperiais desígnios dos EUA. Tudo o que as belas almas conseguem apreender é que pessoas estão sendo mortas, famílias estão sendo destruídas, crianças estão sendo aterrorizadas e que elas, as belas almas, gostariam que tudo isso acabasse. Não são pela justiça, nem pelo fim da opressão e da ditadura norte-americana, nem pela igualdade. São pela ausência de conflito. E não parecem particularmente interessados acerca dos porquês deste conflito.
Para esclarecer a sua posição, consideremos uma analogia com a luta dos proprietários de escravos contra a rebelião de escravos.
Na guerra entre os proprietários de escravos e a rebelião de escravos, Kolhatkar professa neutralidade, protestando que não é por nenhum dos dois lados, mas sim pela humanidade. Se isso não fosse já mau o suficiente, ela enfraquece ainda mais a sua debilitada posição moral demonstrando que sua professada neutralidade é uma farsa e que, na realidade, ela é pelos proprietários de escravos.
Ela aceita como verdades incontestáveis todos os insultos que os proprietários de escravos lançam contra a rebelião de escravos, exigindo, àqueles que desafiam a versão dos proprietários de escravos, que sejam mais sofisticados (isto é, que aceitem que é incontestável) e a equacionar alternativas não violentas à “complexa questão da escravidão” (isto é, o abandono da rebelião). O resultado da sua proposta, a ser bem sucedido, seria a derrota da rebelião e a perpetuação do sistema de opressão.
Apesar da afirmação de neutralidade por parte de Kolhatkar, é bem claro de que lado está ela na questão da guerra dos EUA que impõe escravidão neocolonial à Síria (e, depois da Síria, ao Irão), mas não está claro o porquê. Ela certamente não chegou à posição que chegou por análise racional, visto que nenhuma é sugerida! A sua dissertação é embaraçosamente desajeitada. Kolhatkar parece não ter consciência dos problemas que estão na raiz do conflito. Ela parece não ter a mínima ideia de que os meios de comunicação em massa são jingoístas [chauvinismo face à Rússia]. E é incapaz de reconhecer lapsos gritantes na sua própria retórica. Que raio viu o Counterpunch de interessante neste artigo de Kolhatkar?
Além do mais, nas suas linhas gerais e na sua intenção, o artigo de Kolhatkar é praticamente indistinguível de um recente editorial do Haaretz: “How Assad’s War Crimes Bring Far Left and Right Together – Under Putin’s Benevolent Gaze”, o qual a Media Lens apelidou de "ataque global à dissidência". Que um jornal israelita venha difamar apoiantes da luta da Síria contra a agressão neo-colonial ilegal e predatória liderada pelos EUA e apoiada pelos saudito-israelitas, não é surpresa nenhuma. E Kolhatkar poderia ter abordado a questão com muito mais delicadeza, mas o difícil é perceber como pode ela (ou o Counterpunch) se por a fazer equipa com um jornal como o Haaretz.
Independentemente do contexto, seja qual for a esquerda à qual pertence Kolhatka, não será a esquerda tão profundamente ocupada em desafiar e superar um real sistema de dominação, opressão e exploração. Será uma esquerda cujo objectivo é a ausência de conflito e não a presença de justiça. Uma esquerda de piedosas expressões de benevolência, e não uma comprometida com uma real luta contra a ditadura à escala internacional.
* Domenico Losurdo. Class Struggle: A Political and Philosophical History. Palgrave MacMillan. 2016. P 79-80.
Stephen Gowans, 25 de Abril de 2018
Leia também: Mehdi Hasan, a bela alma, e a sua diatribe contra a esquerda consequente
traduzido para o português por Luís Garcia
versão original em inglês: Another Beautiful Soul: Counterpunching the Global Assault on Dissent