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Pensamentos Nómadas

Nomadic Thoughts - Pensées Nomades - Кочевые Мысли - الأفكار البدوية - 游牧理念

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La Guardia Civil

21.08.15 | Luís Garcia
 

 CASOS DE POLÍCIA – EPISÓDIO 1

 

Hitchhiking in Guarda - MISSION IMPOSSIBLE

 

 

bw VIAGENS Luís Garcia


LA GUARDIA CIVIL (Portugal e Espanha, 2007)
A viagem à boleia do trio maravilha era para ter começado no Fundão, terra natal do meu colega Ivo e onde se encontra a casa dos seus pais. Aí passámos, eu, o Ivo e o seu amigo Diogo, a noite zero da aventura Sudeleste 2007. De manhã metemos as malas às costas e viemos para a rua de cartaz na mão e polegar esticado, esperançosos de encontrar quem nos levasse até Vilar Formoso, onde procuraríamos camiões (e camionistas) para nos facilitar a travessia da Península Ibérica. Mas não, já lá vão, infelizmente, os tempos em que andar à boleia era algo de comum e quotidiano no nosso Portugal. Hoje cada um tem o seu carro e quem quiser viajar que compre o seu também! Daí que, passadas umas 3 horas, desistimos da empresa e fomos, humilhados, comprar 3 bilhetes para Vilar Formoso.

 


 
Chegados à terra santa do viajante de boleia português, tivemos ainda de atravessar a vila a pé, de malas às costas demasiado pesadas e sob um intenso e sufocante calor de Agosto. Mas o sentimento geral foi de ter valido a pena quando, chegados à entrada do enorme parque de estacionamento, deparámos com uma imensidão de potenciais meios de transporte à espera para nos levarem!
 
Saído do meio do nada apareceu-nos um rapaz na casa dos 20, sotaque local, meio desdentado e com uma série de cortes e pontos espalhados pelas sobrancelhas, lábios e rosto, sinais de quem não deveria andar lá muito bem com vida ou então não se dar assim tão bem com os seus semelhantes. Seria de esperar que ficássemos de pé atrás com ele e não lhe déssemos demasiada confiança, mas não, com a adrenalinaaparvalhante de quem tem à sua frente um mês à boleia com Roménia como destino final, nenhum de nós os três se lembrou (ou então não partilhou o pensamento) de nos afastarmos do rapaz, e lá nos pusemos na treta, trocando ideias acerca da arte de retórica de convencer um camionista a deixar entrar um bando de desconhecidos dentro do seu camião.
 
Entre timidez e falta de coragem, o trio foi pouco produtivo na busca de boleia, ao contrário do nosso trunfo, o rapaz da cara picotada, o qual em pouco mais de meia hora tinha já encontrado um camionista disponível a dar boleia até Irún (perto da fronteira Espanha-França) e que arrancaria daí a uma hora. Grande senão: só levaria dois viajantes. A solução foi voltar aos tempos de criança, pegar em quatro pauzinhos pequenos e tirá-los à sorte. O Ivo tirou o menor e o nosso trunfo tirou o segundo menor. Resultado: partíamos eu e o Diogo, com a promessa de esperar o tempo que fosse preciso pelo Ivo, visto que Irún é paragem obrigatória para metade dos camionistas que fazem o trajecto Espanha-França. Como estávamos de férias, com muito tempo disponível e antecipadamente preparados para os inevitáveis tempos de espera entre boleias, decidimos aceitar a generosa oferta e lá partimos uma hora depois.
 
O leitor já se deve ter interrogado do porquê de termos tirado pauzinhos à sorte entre os quatro e não apenas entre os três amigos dos quais um ganharia o direito de partir primeiro na companhia do rapaz que encontrara a boleia e que, portanto, deveria já ter o seu lugar garantido no camião. Mas não, ele nunca poderia ter partido em primeiro, não que o não tivesse merecido, mas porque continha secretamente em si a chave para o apocalíptico fim desta estória…
 
À hora que eu e o Diogo deveríamos partir já todos os outros camiões tinham sido inspeccionados e, como não obtiveram mais nenhuma resposta positiva, Ivo e o rapaz desconhecido deslocaram-se até à linha de fronteira para pedirem boleia aos carros em andamento. Aí os vimos, minutos depois, de punhos cerrados e polegares apontados aos céus, ansiando pela boleia que nunca chegou a vir. Ou melhor, veio, mas de um género até então inimaginável, e com o mais insólito dos destinos.
 
Após uma hora na estrada, eu e o Diogo decidimos fazer um telefonema ao nosso colega de viagem Ivo, curiosos de descobrir se ele já teria conseguido boleia e, caso contrário, dar-lhe umas palavrinhas de motivação e encorajamento. Mas não, não era possível uma vez que o seu telemóvel se encontrava desligado e assim permaneceu por um período de várias horas durante as quais a inquietação e a expectativa foram crescendo entre nós os dois. Que raio andará a fazer o Ivo? – perguntávamos nós um ao outro, desconcertados. Já depois de termos perdido a paciência para lhe ligar e meio anestesiados pelo rolar meticulosamente monótono de um camião nas estradas espanholas infinitamente rectas, recebemos um telefonema de Ivo, exaltado e confuso. Com o gaguejar e hesitação com que relatava os acontecimentos das últimas horas foi-nos ao início muito difícil de perceber o que contava ele, e duvidámos momentaneamente se não estaria mesmo a fazer troça de nós, mas não, pelos vistos a coisa era séria e ele encontrava-se já de regresso ao lar paterno no Fundão, onde horas antes partíramos os três à aventura.
 
Segundo nos relatou, poucos minutos depois de termos passado por eles, um jipe da Guardia Civil espanhola parou no local e sem muitas explicações pegaram no Ivo e no outro viajante, prenderam-nos na parte de trás do jipe e levaram-nos para a esquadra espanhola mais perto. Aí começaram por interrogar o rapaz das cicatrizes, ordenando ao nosso colega Ivo que se mantivesse entretanto quieto e em silêncio num compartimento ao lado. Não obedecendo às ordens Ivo pegou no seu telemóvel e tentou ligar aos pais. Resultado, uma valente bofetada de um guarda espanhol e um telemóvel despedaçado no chão. Após interrogatórios e algumas horas passadas sobre intenso stress, Ivo chegara à conclusão que o outro português era cliente habitual das esquadras espanholas da região, autor de inúmeros assaltos, e que se encontrava na altura em fuga devido ao seu mais recente delito. Azar foi o Ivo se encontrar na hora errada e no local errado de braço esticado a 2 metros de distância do fugitivo. Mas mau, muito mau mesmo, foi o comportamento da guarda civil espanhola que atravessa a fronteira, pega aleatoriamente um português em território português e prende-o sem se preocupar minimamente em averiguar a relação (caso houvesse) entre este e um outro que era por eles procurado. Afinal, é crime estar à boleia numa estrada e ter a 2 metros de distância um outro homem igualmente à boleia e do qual não sabemos rigorosamente nada?
 
A verdade é que a experiência foi suficientemente traumatizante para que Ivo, assim que a ordem voltara a ser reposta, tenha telefonado aos pais para virem o mais depressa do Fundão e resgatarem o seu filho das garras da “incompetente e perigosa guarda civil espanhola”. E foi já na segurança e conforto do lar que Ivo fez-nos o primeiro telefonema no qual ficámos finalmente a par dos eventos. Ambos insistimos imenso para que mudasse de ideias, que recomeçasse, que partisse à boleia ou de autocarro enquanto nós, solenemente, esperaríamos por eles os dias que fossem necessários em Irún ou noutro lugar por ele escolhido. Argumentámos que este acontecimento teria sido um grande teste de resistência psicológica ao futuro viajante e que quem superasse tal teste estaria sem dúvida pronto a enfrentar qualquer outro desafio de viagem… lembro-me até de lhe ter dito ao telemóvel que “depois da tempestade vem a bonança”! Mas não, Ivo era peremptório, a sua decisão era de definitivamente ficar para trás. Após apenas meio-dia, a expedição tinha já perdido 1 dos seus 3 membros…
 
Perdemos em quantidade, mas sei hoje que ganhámos em coesão e muito mais. Na hora que se seguiu à desistência de Ivo mantive-me sossegado no meu canto, olhando fora da janela os traços descontínuos arrastando-se cansados, hipnotizantes, fundindo-se uns com os outros sob o resto de luz do entardecer. Ia a pensar sozinho, divagando, perguntando-me do que viria a ser desta aventura imaginada meses atrás: na altura, por termos amigos Erasmus em comum, na Universidade do Minho, eu e o Ivo passávamos muito tempo juntos. Por entre inúmeras conversas passei da explicação do meu plano de viagem à obtenção de um colega de equipa. Só mais tarde se juntou Diogo, amigo de Ivo e que eu vagamente conhecia de encontros esporádicos entre estudantes Erasmus e outros portugueses na residência universitária. De lá até ao primeiro dia da viagem as circunstâncias não tinham mudado muito, excepto que o elo de ligação entre mim e o Diogo tinha ficado para trás e desistido da viagem. Como viria a ser agora a relação entre dois quase desconhecidos, com se desenrolaria o trabalho de equipa entre duas pessoas que não sabiam se tinham ou não as mesmas ideias, se partilhavam o mesmo tipo de ambições, se procuravam ou não as mesmas aventuras. Se, tendo todo estes pontos em comum não se chateariam pela mais fútil das razões ou se, pelo contrário, tendo quase nada em comum não pudessem seguir muito mais tempo juntos numa viajem que estava planeada para durar 30 dias, atravessando milhares de quilómetros, 8 países, quase sempre à boleia?

 

A viagem tinha tudo para correr mal e acabar antes do prazo previsto, mas o pensamento que me veio à cabeça na altura foi o de que estaria perante um imenso e interessantíssimo desafio pessoal: seria eu capaz de superar uma prova bigbrotheriana na companhia de um quase desconhecido durante o período de um mês? Não sei se o leitor está a pensar nas implicações práticas, mas quando se viaja por um período largo de tempo com outra pessoa, passamos a ser quase uma sombra dela: sabemos quando adormece, quando acorda, quando tem fome, quando tem diarreia, quase sabemos o que pensa! Além do mais as condições estabelecidas eram duras dado o orçamento muito limitado e a imensa vontade de ir longe, muito longe, tornando certo o facto de que iríamos passar por várias situações de desânimo, stress ou frustração. Qual o impacto de emoções de um no outro, como reagiríamos aos momentos mais negativos um do outro? Quase a adormecer lembro-me de ter feito esta conclusão: se os nossos orgulhos e personalidades distintas viessem a chocar-se constantemente sem lugar a cedências, a viagem acabaria daí a uma semana. Se ultrapassássemos dificuldades em conjunto, se nos complementássemos, se déssemos o braço a torcer nos momentos chave durante as primeiras 2 semanas, teria ali um amigo para a vida. A segunda opção acabou por imperar, felizmente…
 
Quanto ao incidente do Ivo, serve para provar que o medo típico de destinos longínquos e nebulosos é completamente infundado, e que se algo tiver que correr mal, pode ocorrer logo ali ao virar da esquina, nos primeiros passos fora da nossa querida e amada terra…

 

Site super-infantil que fizemos para a dita viagem:

O álbum de fotos do primeiro dia de viagem: 

Luís Garcia, 21.08.2015, Lampang, Tailândia

 

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