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Europa de leste: da URSS aos EUA, a vassalo-dependência contínua, por Luís Garcia

30.07.16 | Luís Garcia
 

 

Europa de leste, da URSS aos EUA, a vassalo-depend

 

Luís Garcia POLITICA

 

Artigo de um blog antigo, escrito em 2012, que ressuscito aqui e agora visto que trata de um tema muito actual:

 

Hoje em dia, para "fugirem" ao improvável e propagandisticamente elaborado "Perigo Russo", os países da Europa Central e de Leste entregaram de mão beijada a sua dependência militar aos EUA que ocupam estes países com bases militares da NATO, com sistemas de vigilância e sistemas de resposta rápida, em clara demonstração de poder face à Rússia. E mais, as economias e governações dos países do ex-bloco soviético encontram-se já muito seriamente comprometidas pelas vontades e decisões de Washington e dos poderosos lobbies económicos norte-americanos e do seu fiel vassalo Alemanha. Como se não bastasse, estes países do antigo bloco comunista entregaram ainda "livre e democraticamente" a sua dependência económica e política aos senhores que mandam em Bruxelas. Poderá soar a infantil cegueira dos seus povos, e é-o certamente, mas não só, pois esta cegueira não explica totalmente este vertiginoso processo que levou a Europa de Leste e Central a passar das garras em riste da URSS para as garras escondidas por luvas de veludo dos EUA e da UE. Neste processo de anexação da "outra Europa" houve muita propaganda feroz, muita chantagem política e obscuros jogos de bastidores, tráficos de dinheiro e influências, muita mentira descarada pelas bocas de políticos pró-ocidentais facilmente vendíveis...

 

  • "Prevenir a colusão e manter a dependência em matéria de segurança entre vassalos, manter os súbditos dóceis e protegidos, e impedir os bárbaros de se reagruparem [são] os três imperativos da geoestratégia imperial" (de Zbigniew Brzezinski, judeu-americano, teórico e ideólogo da política externa imperialista dos EUA; vassalos serão estados artificialmente mantidos pelos EUA como a Arábia Saudita, o Iraque, o Iémene, o Bahrein ou o Egipto de Mubarak; súbditos serão certamente os membros da EU e da NATO mais Austrália, Nova Zelândia e Japão; os bárbaros são a Rússia e a China)

 

PROPAGANDA

Bom exemplo da dita propaganda foi a fortuna (roubada aos contribuintes) gasta pelos governo húngaro em anúncios publicitários pró-NATO, assim como a ignominiosa mensagem passada aos cidadãos do país: "a não darem o seu voto, estariam a faltar a um dever patriótico".1 Cúmulo dos cúmulos, "o governo de Budapeste deu-se mesmo ao trabalho de subsidiar alterações numa popular novela, para meter pelo meio um personagem que vai apimentando o enredo com umas dicas sobre os efeitos benfazejos da atlântica agremiação... até na paz dos lares".2

 

Este tipo de propaganda descarada reinou durante algum tempo nos países candidatos à NATO, principalmente nos 3 prioritários: Polónia, República Checa e Hungria, e colheu temporariamente os seus frutos mas, com o tempo passando sem que chegasse a prometida adesão, os povos destes países aumentaram as suas dúvidas e as suas inquietações, pois afinal, para que raio serviria a NATO num mundo sem o perigo soviético? Veja-se sondagens da altura: na R. Checa, entre 1994 e 1997 o apoio popular à adesão à NATO baixou dos 43% para os 27%; Na Polónia (de 1996 para 1997) passou de 92% para 65%; Na Hungria (de 1996 para 1997) passou de 51% para 32%; Na Eslováquia (de 1996 para 1997) passou de 63% para 27%. Ainda assim, num leste já com uma maioria da população contra a adesão e sem perceber a necessidade de tal, essa acabou por acontecer pelas mãos dos seus vendidos governantes.

 

  • "Ao fim e ao cabo, o que preocupa as pessoas que governam em Praga não é se a nação pereceria ou não numa guerra, mas apenas se morreriam do lado certo da barricada." (em NATO, what for?, de Oskar Krejici)

 

CUSTOS DA ADESÃO

Uma questão nunca falada e no entanto central é a do custo de adesão à NATO por parte destes países em processo de reconversão económica e portanto com poucos recurso para fazer face às necessidades básicas internas e das suas populações, quanto mais para gastar em equipamento militar aparentemente inútil. Caso flagrante, o da Polónia, "obrigada a duplicar o seu orçamento militar nos próximos cinco anos, para se adaptar aos standards da NATO",3 cortando ao mesmo tempo nas despesas com os programas de assistência social. Ou o da Hungria, obrigada a fazer crescer o seu orçamento militar em 35%. Ou o da República Checa, não capaz de "garantir a assistência social à população, mas vai gastar 30 milhões de coroas por ano na ficção de uma segurança militar". 4

 

  • "É que os novos aderentes não estão em condições de arcar com a factura do alargamento, e os actuais membros não parecem decididos a pagar. A União Soviética desapareceu, e toda a gente espera dividendos da paz - e não mais despesas com a expansão da NATO." (em Economic Aspects of the Expansion of NATO, de Ljubisa Adamovic)

 

O que os dirigentes destes países insistem em não perceber (ou então calam-se a troco de interessantes contrapartidas) é que não só os seus países não têm dinheiro para esta aventura da NATO, como evidentemente não precisam dela. Quem de facto está interessado é Washington que, com os acordos de adesão à NATO no leste, mata 4 coelhos de uma cajadada só: aumenta o seu espaço de influência político-económico-militar diminuindo ao mesmo tempo o da Rússia no seu histórico quintal, progride imensamente no cerco territorial à Rússia (ver teoria geopolítica do Anel e da Maçã), garante astronómicas encomendas para as indústrias de armamento norte-americanas e, acima de tudo, consegue pôr os seus estados vassalos a pagar as despesas da sua hegemonia militar a nível planetário, uma vez que, integrados na NATO, passam a ter de disponibilizar homens, armamento e equipamento militar para as aventuras bélicas do império (Afeganistão, Iraque, Líbia). Este último ponto mostra uma clara evolução na política militar externa norte-americana. Se antes forneciam equipamento militar aos seus estados vassalos (democracias ou ditaduras, indiferentemente) através de "ajudas económicas", hoje em dia o contrário é real, hoje fazem-os pagar pelas armas que hão-de usar ao serviço submisso do império.

 

  • "A Partir dos anos 50 o auxílio externo dos EUA passou a investir, sobretudo, no apoio aos países que combatiam o comunismo. Em dez anos, dos 50 mil milhões distribuídos pelos EUA a 90 países, apenas 5 mil milhões eram destinados ao auxílio económico não militar." 5

 

Quando hão custos, para alguém há-de haver ganhos. Pois bem, esse alguém é o complexo-industrial-militar privado norte-americano. É que os EUA, através da NATO, não só obrigam os seus estados vassalos a comprar equipamento militar e modernizar as suas respectivas forças armadas, como também não têm qualquer pudor em eliminar empresas de armamento estrangeiras concorrentes das norte-americanas nesses processos de militarização (pela chantagem, normalmente recorrendo à básica e repetida retórica: "ou fazem como queremos, ou desinteressamos-nos da Europa de Leste"). Ao fim ao cabo o complexo militar norte-americano (como a McDonell Douglas fabricante do f-16 ou a Lockheed Martin fabricante do f-18) merece esta protecção de Washington, depois de todo o dinheiro investido pelos primeiros:

 

  • "Muitos dos fundos do Comité dos EUA para expandir da NATO foram fornecidos por firmas de armamento que esperavam vender sistemas de armas americanos a novos estados membros." (em Misunderstanding Europe, de William Wallace e Jan Zielonka)
  • "(...) o sector privado armamentista contribuiu com 8 milhões de dólares para a cerimónia do cinquentenário da aliança, e representantes da Boeing, da Daimler-Chrysler, da General Motors, da Honeywell, da Motorola e outras figuravam entre os convidados de honra à cerimónia."6
  • "Só no ano de 1997, as empresas fornecedoras do Pentágono investiram cerca de 33 milhões de dólares nos dois partidos americanos e gastaram dezenas de milhares de dólares em acções de lobbying junto do Congresso e da Casa Branca. A essa pressão junta-se ainda a dos membros do Congresso, eleitos nos círculos uninominais de regiões onde estão sediadas empresas armamentistas." (em U.S. Arms Makers lobby for NATO Expansion, de Jeff Gerth e Tim Weiner)

 

AS RAZÕES DOS EUA

As verdadeiras razões, ou se preferirem, os verdadeiros motivos dos EUA quererem dar continuidade a uma organização que (aparentemente) já não teria razões de existir - sem a URSS e o Pacto de Varsóvia do bloco leste, a NATO deixava consequente e logicamente de ter inimigo a opor - não podem certamente ser os da defesa e protecção da Europa, dos seus vassalos ou dos estados amigos nas suas zonas de influência. Quanto aos europeus (juntamente com os EUA), estes produzem a maior parte do armamento mundial e também o mais sofisticado; Europa e EUA são ainda e de longe os maiores exportadores de armamento. Em tal cenário é difícil de imaginar um real perigo bélico para nós europeus, e se chegar a haver, será culpa nossa... de vender demasiado armamento.

 

Portanto que faz a NATO na Europa em pleno séc. XXI? Os nossos aliados de Washington insistem que aqui estão para nos proteger, mas os factos contradizem cada vez mais as suas cínicas palavras. Por exemplo, em Março de 1992 o New York Times publicou esta fuga de informação proveniente do Pentágono: "Os EUA devem impedir a todo custo a criação de uma estrutura de segurança estritamente europeia que enfraqueceria a NATO". Aí têm a resposta, aos EUA não interessa a defesa da Europa - para isso serviria a hipotética estrutura de segurança europeia - mas sim a manutenção dessa máquina de guerra e de ocupação que é a NATO - a face militar do Império -, e o controlo dos seus vassalos incumbidos de arcar com os respectivos custos. Ou como disse Brzezinski, "o domínio do xadrez eurasiático continuará a ser determinante para a estabilidade e a longevidade do domínio dos EUA". Sim, a Europa faz parte do "xadrez eurasiático".

 

  • "O império nunca esteve em causa - é aliás significativo que hoje a palavra já nem repugna, sequer, os mais pudicos. O problema da América é outro: pressionar os súbditos a pagar os estragos e a arcar com os custos da conquista. É esse o papel que cabe à Europa na nova ordem euroatlântica." 10

 

Mais do que perder o controlo de parte desse xadrez e, como anteriormente referi, perder vários estados vassalos fulcrais na partilha das despesas (e mortes) das aventuras bélicas norte-americanas, Washington, com a possibilidade de uma maioridade militar europeia, receia o nascimento de um potencial inimigo, ou pelo menos mais um concorrente na disputa sobre a supremacia mundial.

 

  • "Dois documentos do departamento da Defesa (...), a Bottom-Up Review, de 1973, e a Quadrienal Defense Review, de 1997, insistiram na mesma linha, invocando, entre ameaças que se colocam à América, o risco do surgimento de um competidor capaz de rivalizar com a América e de lhe disputar a sua até agora incontestada liderança"7

 

Além de recearem um possível nascimento do inimigo geo-estratégico europeu, os EUA dão-se mesmo ao luxo de continuar espezinhando e reprimindo essa Europa, evitando e prevenindo quaisquer possibilidades de relativa autonomia militar:

 

  • "Bastará uma leitura apressada dos textos emitidos em Bruxelas e em Berlim para perceber que o funcionamento das CJFT, tal como foi definido na antiga capital do Reich, confere aos EUA o controlo absoluto - e um real direito de veto sobre qualquer compromisso empreendido pelos Europeus. As forças europeias poderão agir quando for essa a decisão americana. E, mesmo na eventualidade de uma intervenção europeia, a América mantém, através das estruturas de comando da NATO, o controlo político e operacional da operação." 8

 

Felizmente nem toda a gente anda a dormir sobre este vital assunto. São cada vez mais as vozes de descontentamento e ataque ao ignominioso controlo da capacidade militar europeia por parte dos EUA, assim como do perverso usa dessas nas bélicas aventuras de Washington:

 

  • "No fundo, o que o Congresso e a administração realmente exigem é que os europeus paguem pela hegemonia americana" (em Misunderstanding Europe, de William Wallace e Jan Zielonka)
  • "Há [entre os aliados] um claro ressentimento pela tendência americana de vender acções unilaterais debaixo da retórica do multilateralismo" (Stephen Waltz)

 

Os próprios norte-americanos (ou parte deles) não fazem quaisquer cerimónias e são eles próprios a admiti-lo:
 
  • Os EUA "devem manter a capacidade de agir unilateralmente para defender os seus interesses. As acções unilaterais dos EUA não devem ser constrangidas ou depender das decisões políticas tomadas por governos aliados." (em The United States and European Security, de Paul Gebhard)

 

Voltando à Europa Central e de Leste, os senhores de Washington não tiveram nunca qualquer pudor em travar ou fazer adiar a sonhada entrada desses países na União Europeia, sua principal prioridade (e não a entrada na NATO). Através de chantagens económicas (congelamento de ajudas económicas) ou militares (ameaças de congelamento dos processos de adesão à NATO), os EUA foi controlando na década de 90 as agendas das políticas externas de Leste, de forma a garantir que estes países viessem a fazer parte da sua polícia mundial - a NATO - antes de se tornarem membros da União Europeia. Porquê?

 

Para começar, o cepticismo entre as populações desses países face à terrorista organização não era pequeno. Mas o real receio dos EUA era de que, uma vez membros da UE, os governantes (esses sim, pois a opinião das populações, cépticas ou não, para nada conta) de Leste passassem a ter a percepção de já estarem integrados no tão sonhado "Ocidente", forma de oficializar a sua libertação da histórica dependência face à Rússia. Se assim fosse, era plausível que também por entre as classes governantes crescesse desinteresse ou mesmo cepticismo pela integração na muito dispendiosa e inútil NATO. Este receio norte-americano e os reais actos destes nesta matéria, explicam boa parte dos atrasos da adesão do Leste à União Europeia. E não é uma suposição, é um facto.

 

A POSIÇÃO RUSSA

O facto da Rússia sempre se ter mostrado favorável à integração dos países de Leste na UE, e claramente desfavorável à integração desses na NATO diz quase tudo. Por manifesta falta de poder ou simples cansaço, a Rússia aceita a auto-determinação política e militar da Europa como consequência natural e até desejável do fim do mundo bipolar da guerra fria. O que não aceita e receia é ver o mundo pós-guerra fria se transformar num mundo unipolar e hegemónico nas mãos do Império Bélico-Económico Norte-Americano. Partindo do princípio (plausível) de que a Rússia enfraquecida e cansada seja adepta de um século XXI dominado por uma lógica multipolar, esta apresenta-se para nós europeus menos um perigo que os EUA frontal e publicamente concentrados numa hegemonia sem contestação possível, profundamente imbuídos na ideologia dos falcões neoliberais que sonham com o "The New American Century", ideologia na qual, nas melhores das hipóteses, ser-nos-á reservado (a nós europeus) o subalterno papel de carne para canhão e pagadores de dízimas e, nas piores das hipóteses, alvo a abater no futuro a médio prazo.

 

  • "Moscovo emitiu sinais múltiplos de que gostaria de ver a Europa partilhar, de forma mais equilibrada, as suas atenções entre a NATO e a Rússia - apontando a prazo para a perspectiva de a hegemonia americana evoluir para um triângulo." 9

Luís Garcia, 2012 

1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 - Os Novos Muros da Europa, de Carlos Santos Ferreira;

3 - Economic and Financial Aspects of Integration of Poland with NATO Structures, de Elzbieta Firley e Pawel Wieczorek

 

 

 

 
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