Do Kosovo à Macedónia, por Luís Garcia
DOS BALCÃS AO CÁUCASO – EPISÓDIO 8
Estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem... aonde não estou. (Estou Além, António Variações)
14.06.2014
A manhã começou calma, com compras para a viagem e um bom pequeno-almoço. Já de barriga cheia fomos visitar de novo a loja de souvenirs de um albanês macedónio radical e ultra-nacionalista, mesmo ali ao lado. A loja estava repleta de equipamento militar, facas, estatuetas de heróis kosovares e albaneses, bandeiras da Albânia e dos EUA, retratos de Bush e Clinton, e claro, bandeiras e roupas da organização terrorista do UÇK. Quem está dentro do assunto sabe que o UÇK foi formado e financiado pelos EUA, que esta organização tem laços com os rebeldes tchetchenos e com a al-Qaeda e que apesar de tudo, numa atitude politicamente correcta, os seus patrocinadores (EUA, NATO) incluem o UÇK na sua lista de organizações terroristas internacionais. Interessante é ver uma loja assim, fazendo a apologia de uma organização terrorista de acordo mesmo com os EUA, aberta a 500 metros da maior base militar norte-americana na Europa, e que tem como principais clientes os militares e civis que trabalham na referida base… ah, viva os states! Quanto ao dono da loja, apenas mais um troglodita radical, anti-Sérvia, lamechas e maniqueísta na escolha dos factos, que retrata os sérvios enquanto absolutos monstros e os albaneses como eternas vítimas inocentes do horror jugoslavo. Que diferença quando comparado com o senhor Mikael (ler episódio 7). Mas, bom, entrámos no jogo dele e fizemo-lo falar, para ver até onde iria o fanatismo e a desconstrução histórica ao bom estilo albanês…
Feita a vistoria à lojinha deprimente de horrores, fomos muito discretamente e cheios de stress tirar fotografias à base militar dos EUA ali mesmo ao lado. Ao voltar à casa do couchsurfer, ausente e de visita à sua família, fizemos as malas e partimos à boleia até Uroševac, onde passeámos um pouco (para tirar fotografias “encomendadas” pela mãe de um amigo meu sérvio que nasceu nesta cidade e que nunca mais a visitou desde que foi forçada a partir durante a guerra) e onde almoçámos.
O trajecto do centro da cidade à estrada que segue para a Macedónia foi feita a pé, cerca de 3km, mas para compensar o esforço, uma vez lá, obtivemos boleia em 5 segundos e avançámos metade do percurso. Quando deixámos o carro, começou uma enorme tempestade, de forma que fomos obrigados a procurar abrigo na esplanada de um restaurante ali perto. A chuva parou e recomeçou várias vezes e nós, feitos tolos, andámos também várias vezes para a frente e para trás com as malas, entre o restaurante e o spot de boleia. Numa dessas ocasiões, um grupo de albaneses do Kosovo, pois claro, começaram a gozar com a bandeira da Jugoslávia na minha mala, aparvalhadamente, fazendo escárnio feitos uns trogloditas... isto num país que se auto-proclama “Kosovo” mas onde há mais bandeiras da Albânia e dos EUA do que kosovares, ahahah, que riso…
Felizmente fomos resgatados daquele spot pouco amigável uns minutos depois, num bólide luxuoso de Baki (um empresário macedónio) atrasado para apanhar um avião em Skopje. Para mal dos seus pecados, um grande acidente naquele estreita via em muito mau estado bloqueou completamente a ligação com a Macedónia. O nosso condutor, decidido a não perder o avião, pediu informações a um taxista e pediu-lhe para seguir à nossa frente, guiando-nos por caminhos de cabra e pontes pedonais (o Mercedes passava à conta) de forma a contornar a zona do acidente e voltar à estrada. O carro sofreu imenso, mas poucos minutos depois estávamos na estada principal. Que filme! Dado o enorme atraso do nosso condutor, eu e Claire experimentámos a sensação de participar numa corrida de Fórmula 1 em terreno montanhoso: ultrapassagens de 15 carros de uma vez em curvas apertadas sucessivas, vários quase-acidentes, curvas apertadíssimas feitas a 120km/h, enfim, iam-nos saltando os corações. Quando chegámos à bomba de combustível onde Baki nos largou, transpirava por todo lado e tinha uma pulsação equivalente a uma corrida de sprint! Mas não me queixo, boleia rápida, eficiente, e tivemos a sorte de não morrer!
Pormenores interessantes do trajecto:
- Cemitério do UÇK
- Bandeira gigantíssima da Albânia, na fronteira Kosovo-Macedónia! Está tudo dito.
Na bomba de combustível fizemos amizade com uns adolescentes que queriam ser fotografados e que nos pediram as nossas contas Facebook, enquanto esperávamos pelo colega de trabalho de Baki. Baki, como está muitíssimo atrasado para apanhar o avião, deixou-nos na bomba de combustível lamentando-se, mas não sem antes ter telefonado a esse colega, de nome Zaiko, a quem pediu para nos vir buscar. 10 minutos depois lá apareceu, muito simpático e delicado, e tal como combinado com Baki, deixou-nos no centro do centro de Skopje! Que luxo! Que sorte!
Quando chegámos ao centro de Skopje, uma vez mais, chovia! Imenso! Tivemos de esperar debaixo de uma varanda, de malas às costas, que o tempo melhorasse. Como não tínhamos dinheiro macedónio, precisávamos de trocar algum. O problema é que todas as casas de câmbio no centro estavam já fechadas. Felizmente passámos por um casal muito simpático de artistas macedónios que nos conduziram a outras casas de câmbio. Digo felizmente pelo encontro, não pela ajuda que não serviu de nada, pois nunca encontrámos uma casa aberta (acabámos por retirar dinheiro num multibanco). Felizmente sim, pois falavam bem inglês, eram pessoas interessantes e muito bem informadas sobre as trafulhices políticas que reinam no seu país. Começaram por nos perguntar a nossa opinião sobre todas as obras recém-acabadas e por acabar no centro, principalmente de estátuas gigantes e fontes. Confessámos que estávamos confusos com todo aquele aparato. E sim, os 2 jovens artistas, de pensamento alternativo, tinham-se posicionado claramente contra aquele enorme show-off e despesismo das contas públicas. Já não chamam Skopje a Skopje mas sim Disneylandia Macedónia, e criticam duramente a “paranóia nacionalista de escrever uma história grandiosa da Macedónia que não corresponde com a realidade”, ou que é no mínimo “muito exagerada a dimensão que o governo tenta passar”! Daquilo que vimos, concordamos sem problemas com estas palavras. A Macedónia é um país pequeno, com uma longa história de ocupações e não de imperialismo ou pelo menos independência. Ver todas estas gigantes estátuas, novinhas em folha, de heróis que não foram bem heróis, pagas com o dinheiro que o país não tem, num dos mais pobres países da Europa… é grave, muito grave. E tal como argumentou o casal macedónio, num país quase-terceiro-mundo onde não há dinheiro para as mais básicas condições de saúde, de ensino, de higiene, e onde escasseiam recursos estratégicos, é de facto “um crime pedir dinheiro emprestado a bancos estrangeiros para construir paranóias nacionalistas megalómanas”! Ah, como concordo com eles! E mais, onde é que já vi visto!?! Portugal, Grécia… Dèjà vu, sem dúvida…
Com a cidade encharcada após a tempestade, e sem local onde guardar as malas, Claire e eu optámos por uma forma alternativa de descobrir a cidade. 2 horas para ver a cidade, um de cada vez, enquanto o outro esperava com as malas num café. Funcionou bem.
Já noite escura fomos os dois com as malas até à praça central fazer um banquete de pão, ovos cozidos, sardinhas enlatadas e pepinos. Com a barriga cheia ganhámos coragem e andámos a pé até a zona sul da cidade, em busca de um parque onde acampar. Não encontrámos nenhum com as condições de invisibilidade e sossego que queríamos, mas acabámos por encontrar um enorme complexo de escolas e igreja, muito antigo, semi-abandonado. Passámos discretamente por uma entrada aberta, creio que por esquecimento, demos a volta até à zona mais limpa, abrigada e escondida dos jardins, e lá montámos a nossa tenda!
Álbuns de fotografia
Luís Garcia, 05.01.2017, Chengdu, China
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