De vagão em vagão
HOLLYWOODICES - EPISÓDIO 3
Eu tenho visto tanta coisa nesse meu caminho, Nessa nossa trilha que eu não ando sozinho, Tenho visto tanta coisa tanta cena, Mais impactante do que qualquer filme de cinema. (Tás a ver?, Gabriel O Pensador)
DE VAGÃO EM VAGÃO (Turquia, Bulgária, Roménia, 2008) – Poucos minutos depois de termos entrado no comboio em andamento e graças ao romeno que nos ajudou a encontrar o revisor e a fazer a tradução de romeno para turco, conseguimos comprar um bilhete para cada um. Mas não para a Roménia! Não, o revisor recusou-se veemente a fazê-lo. Só nos vendeu bilhetes até Kapikulle (fronteira turco-búlgara) e, com modos brutos e antipáticos, exigiu-nos uma conversão de euros para liras turcas a fazer lembrar um assalto à mão armada. Enfim, bem que podíamos nos dar por felizes, afinal, ao contrário de todas as expectativas, estávamos a caminho de Bucareste! Quanto ao próximo bilhete, o romeno, enquanto nos encaminhava até uma cabine livre, garantiu-nos que no ponto fronteiriço sairia connosco e ajudar-nos-ia a comprar o bilhete até à capital do seu país. Excelente! Diria até ser boa demais para ser verdade a sua vontade de nos ajudar.
Contra todas as expectativas, a cabine que o romeno nos apresentou tinha (apenas) duas camas e não assentos, um mini-chuveiro, espelho e tomadas onde ligámos os nossos gadjets todos com bateria quase a zero. Mais surpreendente ainda era a decoração e os acabamentos, de madeira envernizada de cores vivas, muito bela, e com os candeeiros, maçanetas e caixilhos de metal impecavelmente pintados a dourado. A ideia era certamente de, além de oferecer conforto e qualidade aos clientes, oferecer-lhes a sensação de viajar no tempo de volta aos inícios do século XX. Daí que, quando parámos para reflectir, apercebemo-nos que estávamos numa luxuosa e requintada cabine que nos fazia parecer reviver os tempos áureos do mítico Expresso do Oriente, a uma época em que quando sonhar com tal viagem era sinónimo de atravessar aquelas latitudes usufruindo precisamente dos luxos que acidentalmente nos tinham vindo parado às mãos... Se nos tinha soado caro os 33 euros que o romeno tinha-nos dito que custava a viagem até Bucareste, depois de descobrir tão luxuosa cabine, o preço do bilhete parecia então muito barato. Demasiado barato para ser verdade! Tomados os banhos de todo inesperados, pese embora já tardios, deitámo-nos por entre os imaculados lençóis de linho e adormecemos, esgotados pelas extenuantes últimas 48 horas de viagens programadas e outras tantas inesperadas.
2h30m da madrugada de 24 de Agosto: O romeno acordou-nos e nós viemos para a rua. Estávamos às portas da Bulgária e era possível senti-lo, o ar respirava-se morno e pesado. Longe ia a extrema secura dos desertos da Síria e os planaltos agrestes da Turquia. Para começar bem o dia o guarda de serviço no controlo de passaportes embirrou com a barba do Diogo não ter equivalente na fotografia do documento. Nada que não estivessemos à espera, o homem dava-lhe para embirrar com toda a gente – negou-se inclusive a carimbar um passaporte de uma norte-americana devido à “sujidade extrema”, e quando chegou a nossa vez a única incerteza que tínhamos era o motivo que aquele invocaria para nos fazer perder tempo e paciência. Livres do mal disposto, fomos bater ao guiché de outro mais simpático que nos vendeu bilhetes para a Roménia por 28 euros! Ah, careiro! E ainda por cima não aceitava pagamentos com cartão de débito! Com a brincadeira ficámos apenas com 4 euros e 5 libras turcas em cash. Sem dinheiro vivo para desembolsar em possíveis contratempos ou necessidades inesperadas.
De volta à luxuosa cabine, tivemos a imediata visita do romeno que queria saber se tínhamos conseguido comprar os bilhetes e pedir-nos 33 euros adicionais pela cabine de luxo! Ele já antes tinha nos falado desse número, mas críamos que esse valor seria a totalidade a pagar pelo serviço. Afinal os 28 euros para atravessar apenas a Bulgária e um pouco da Roménia voltavam a ser absurdamente elevados. Com esse bilhete (caro) tínhamos apenas direito a viajar nos vagões sem camas, dos quais desconhecíamos a existência até àquele momento uma vez que tínhamos apanhado o comboio em andamento em Istambul e feito a viagem toda a dormir. Depois, mesmo que quiséssemos pagar aquele serviço não podíamos, ao fim de quase 2 meses de viagem tinham-se acabado as notas nos nossos bolsos! A reacção do romeno foi de quem não estava a acreditar numa única palavra do nosso discurso. Diria que o rapaz julgava que aquilo era choradeira nossa para regatear o preço da cabine. Só mais tarde, explicando vagarosamente para que o pasmado romeno entende-se o nosso aldrabado romeno, é que ele compreendeu que ali não havia dinheiro para a sua carteira! Ah, fulo, propôs-nos que lhe entregássemos os passaportes e que ele os retesse até ao fim da viagem como garantia nossa de lhe pagarmos o valor em dívida à chegada a Bucareste. Recusei veemente. Passaporte meu fora do meu alcance visual está sempre fora de questão, não importa em que país nem em que circunstância de viagem. Aí então ficou furioso, blasfemando (com razão) que tínhamos usado os lençóis e toalhas que agora teriam de voltar a ser lavadas para seu prejuízo. Respondemos-lhe (também com razão) que era culpa sua por não ter-nos explicado que havia outros vagões e outras condições no comboio. Fizemos-lhe compreender que se nos dessem a escolher nunca teríamos optado pela vagão mais caro e que ele, ao querer à força dois clientes de luxo tinha traído o seu suposto altruísmo de salvar-nos à porta de um comboio em andamento. Tinha, se quiserem, apostado em dois cavalos de corrida que para seu azar caíram por terra antes do fim da prova! “É a vida!”, acrescentámos nós. O romeno desistiu da batalha e mandou-nos sair da luxuosa cabine. Ah, música para os nossos ouvidos, tínhamos tomado uma banho quente, tínhamos dormido confortavelmente e críamos estar assim preparados para todas as possíveis intempéries de viagem. Quanto ao romeno, que não se calava com o trabalho extra e não pago, só lavaria com urgência os lençóis e as toalhas de banho se fosse um maníaco perfeccionista. É que além de nós os 3, naquele vagão, viajavam apenas 3 pessoas mais, a loiraça sua namorada e um par de velhos mafiosos romenos como aqueles que vêm nos filmes que vocês estão a imaginar.
Seguindo as indicações do romeno, deslocámo-nos até ao fim do comboio em busca dos vagões de assentos. Pequena vingança do homem, fez-nos andar para nada, do vagão em que dormiramos até ao último eram todos de camas. No fim do comboio um passageiro informou-nos (em inglês) que os vagões de 1º e 2º classe de assentos se encontravam “como de costume na parte da frente”. Ok chefe! Voltámos atrás cansados e aborrecidos de termos de atravessar de novo aqueles apertados corredores com as nossas malas de viagem. Passámos pelo vagão do romeno mas nem sinal dele. Devia estar na sua cabine esfregando as mãos de vingativo contentamento com a facada que nos espetara. Ahahah, exagero.
Chegados aos vagões da frente somos informados que temos à escolha lugares de primeira classe caros e outras de segunda classe com preços razoáveis, apenas “10 euros”! Que filme que começávamos a entrever! Há umas semanas atrás, aquando da nossa vinda desde Belgrado até Istambul - e possuidores de um pack promocional de 5 bilhetes para os Balcâs e Turquia-, fôramos obrigados a pagar mais 10 euros na troca de vagões junto à fronteira turco-búlgara. Agora, na mesma fronteira, voltavam-nos a pedir dinheiro de forma a podermos viajar dentro de um dos vagões disponíveis, pese embora tivéssemos já comprado e pago bem os bilhetes para o efeito. Uma fronteira ferroviária e uns comboios deveras peculiares!
Na altura da viagem Belgrado-Istambul não tivemos outro remédio senão pagar os 10 euros cada. Agora, não tínhamos de todo dinheiro para pagar. Tentámos o impossível, obter 2 assentos dando uso à nossa arte retórica. Argumentámos que se haviam suplementos para cada vagão, esses valores deveriam ser pedidos no momento da compra dos bilhetes e que, acima de tudo, para quem quisesse viajar, em segunda classe no vagão de assentos, nada mais além dos bilhetes já comprados deveria ser exigido. Qual quê! Fomos gentilmente convidados pelo revisor daqueles vagões a “saltar fora do comboio, seus vagabundos, se não têm dinheiro para pagar bilhetes”! Escandalizados e estupefactos, fizemo-nos de desentendidos e não arredámos pé do corredor daquele vagão. O revisor continuava a falar, nervoso, embrulhando-se em movimentos de braços atrapalhados. Nós mantivemo-nos firmes, não pestanejámos sequer. Esperámos até o revisor partir para o vagão seguinte, seguindo o seu trabalho, mandando ofensas para o ar enquanto desaparecia pela porta do vagão seguinte. Só aí nos voltámos a deslocar. E o destino foi voltar atrás à parte detrás daquele mesmo vagão onde minutos antes tínhamos reparado num senhor sentado no chão, entre a porta do vagão e a porta da casa de banho...
Embora sujo, de roupas gastas e barba muito comprida, o senhor com aspecto de vagabundo sentado naquele imundo chão falava inglês melhor que todos os revisores do comboio juntos. Sentámo-nos a seu lado e começámos uma desnecessária conversa explicativa do caso. O senhor ali sentado, búlgaro de nacionalidade, garantiu-nos já ter assistido inúmeras vezes a situações idênticas e insistia que “o revisor era louco”. Estava portanto em sintonia com a nossa crítica aos pagamentos extra naquele comboio. Convidou-nos a fazer-lhe companhia e a seguir viagem ali mesmo sentados, ignorando as reprimendas temporárias de revisores de passagem. Já mais sossegados e descontraídos, tirámos comida das malas, partilhámo-la com o nosso novo companheiro de viagem e continuámos à conversa. Meia-hora depois voltou o revisor, mais tímido dado o ânimo e a descontracção com que conversávamos com o búlgaro. Insistiu na sua lengalenga 100% em turco, mas com pouca convicção. Se antes apontara para a porta da rua, agora já só apontava para a porta da casa de banho. E resmungava imcompreencíveis lamechices enquanto apontava para o chão onde nos encontrámos sentados. Provavelmente estaria a queixar-se que perturbávamos o movimento dos clientes (mais pagantes que nós) deslocando-se entre vagões. Nós íamos respondendo com um “Tamam, tamam” ("sim, sim" em turco) de tempos a tempos e com ares de indiferença. Vendo que continuámos a rir e conversar, e que ignorávamos completamente calou-se, aborrecido, e partiu para o vagão seguinte. Voltou a passar por nós várias vezes mais durante o trajecto, por obrigação das suas funções de revisor, mas não mais nos chateou a cabeça com histórias de pagamentos extra.
Com o senhor sentado no chão falámos de Cristiano Ronaldo, Figo, Kostadinov e Balakov, do incrível terceiro lugar da Bulgária no mundial com o mágico Stoichkov. Falámos das nossas aventuras na Turquia e Síria. Os olhos iam pesando cada vez mais, pese embora o interesse daquela improvável conversa e, por fim, enroscados precariamente sobre as nossas malas, acabámos por adormecer, eu e o Diogo.
Quando voltámos a acordar, o nosso amigo búlgaro desaparecera, era quase dia e o revisor turco, transfigurado, indicou-nos com simpatia e sorrisos que dali a 30 minutos chegaríamos a uma estação onde se juntariam vagões “normais” ao comboio. E assim foi, não acreditámos naquele momento que estivesse a dizer a verdade, mas assim que vimos um conjunto de vagões aproximando-se lentamente ao nosso comboio parado numa estação, saltámos fora e caminhámos apressadamente para esses novos vagões. Sendo os primeiros a entrar, escolhemos uma cabine só para nós, fechámos as cortinas, trancámos a porta e tentámos dormir o melhor possível. Só abríamos a cabine de tempo a tempos para controlos de passaportes e de bilhetes e para surreais rusgas anti-tráfico. Ainda assim não pudemos evitar a visita à nossa cabine de um rapaz meio aluado que se dizia funcionário da companhia de comboios. Garantia-nos que aqueles novos vagões de assentos destinavam-se à Rússia (!) e que se queríamos continuar a viagem rumo à Roménia teríamos de segui-lo até aos vagões de camas e trazer “money, money” para desembolsar. Pois sim, um comboio na Bulgária, rumando a este na direcção de Bucareste e com a sigla da CFR (Caminhos de Ferro da Roménia) ia a caminho da longínqua Federação Russa sem passar pela Roménia. Dissemos lhe que “sim, com certeza, vamos já” para o calar e fazê-lo partir, voltámos a trancar a porta, fechámos as cortinas e retomámos o sono tão desejado e preciso.
Horas depois, num estação desértica perdida entre densa vegetação e rodeadas por montanhas (apropriado portanto o nome da estação – Gora – que significa montanha em búlgaro) ouvimos os travões do comboio rugir esforçadamente enquanto que à porta da nossa cabine apareceu o nosso amigo revisor turco para avisar-nos de uma pausa de 2 horas e 15 minutos naquele deserto de vegetação e ferro velho. Atrás deste veio um inglês perguntar ao Diogo onde comprara as suas calças “so cool”. Que momento surreal...
Com a garantia de uma boa paragem pela frente, saímos à rua, para esticar as pernas, espreguiçármo-nos e vadiar um pouco para passar o tempo tirando fotos. Não podia pedir melhor cenário para uma sessão fotográfica! Para começar o nosso comboio visto agora com a luz do dia parecia saído de um rocambolesco filme de Kusturica. Depois tínhamos as linhas de comboio desgastadas e tortas como as linhas em que os deuses costumam escrever. Tínhamos vagões de carga espalhados em torno da estação que pareciam ter saído dum amestrador filme sobre Auschwitz-Birkenau. Para completar tínhamos uma jovem ucraniana fazendo umas bem ousadas poses para a câmara do namorado/irmão/primo/qualquer-coisa. A verdade é que a miúda parecia estar mesmo a divertir-se e mais se entusiasmou quando viu a minha câmara virada também para ela, sorrindo descarada e atrevida. O rapaz não gostou da brincadeira e disse-lhe algo em ucraniano que (obviamente) não entendi. A miúda fez uma pausa, respondeu amavelmente ao ucraniano, e voltou a sorrir para a minha câmara. Menos sorridente olhou o rapaz para mim e eu, para evitar filmes, além do mais perdido no interior búlgaro, baixei a câmara e fui ter com o Diogo para lhe contar as novidades e comparar as minhas fotos com as dele.
Ao fim de apenas 1 hora e meia, e para nosso completo espanto, o comboio começou a deslocar-se. Corremos apressados de volta ao comboio e instalámo-nos na nossa cabine, mas por muito pouco muito tempo, pois 500 metros à frente o comboio voltou a parar por mais meia hora, finda a qual recuou 700 metros imediatamente antes da estação. Passados poucos minutos, andou 500 metros para a frente e aí ficou até se completarem 3 horas de uma secante espera numa tarde de calor intenso durante a qual nos tinha acabado a água potável.
Horas depois, junto à fronteira turca, víamos saltar do comboio em andamento dois romenos com grandes sacos de plástico repletos de volumes de tabaco. Eu e o Diogo também saltámos fora, mas um pouco mais frente, depois do comboio ter parado na estação fronteiriça! Íamos em busca de água pois estávamos prestes a desfalecer de sede, literalmente. À nossa busca juntou-se um simpático inglês que se dizia professor de balé e que viajava de Istambul para Bucareste em busca de trabalho e de um velho amigo, queixando-se repetidamente das condições do comboio, sobretudo de não haver um vagão restaurante ou pelo menos algures dentro do comboio onde comprar comeres e beberes. "Olha-me este"!
No meio da confusão fronteiriça lá apareceu um cigano búlgaro com garrafas de água fria. Aceitava quer euros quer liras turcas mas pedia 3 euros por garrafa! Teve de ser, gastámos o resto do dinheiro em água! Felizes por beber dessa pequena coisa que é afinal tão grande, voltou-nos a vontade de tirar fotografias, a qual foi satisfeita pela vontade do francês em dar uns passos de ballet fora do comboio, enquanto esperávamos pelo controlo de passaportes. Inevitavelemente apareceu um polícia búlgaro chatear-nos pelas fotos tiradas. Déjà vu!
Às 21 horas chegávamos a Bucareste para descobrir que o último comboio com destino a Quichinau, capital da Moldávia, partira às 20 horas. Adiada a partida para leste, decidimos ficar 2 dias para dar uma volta a Bucareste que o Diogo ainda não conhecia. Àquela hora da noite e ainda na estação começava outro filme, não de comboios mas de peregrinação de mala às costas pela cidade em busca de uma pousada barata com quartos livres a meio do verão numa capital europeia...
Álbum de fotografias da longa espera na Bulgária:
Luís Garcia, 09.10.2015, Lampang, Tailândia
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