De Istambul a Doğubeyazıt em 3 dias - I, por Luís Garcia
DOS BALCÃS AO CÁUCASO – EPISÓDIO 16
Estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem... aonde não estou. (Estou Além, António Variações)
23.06.2014
Era suposto arrancarmos de manhã bem cedo, rumo ao extremo oriental da Turquia, mas o cansaço e a má-disposição de Claire fez com que adiássemos por umas horas a partida. Saímos por fim às 13h, fizemos uma breve paragem para comer kebab e ayran num restaurante sírio, e fomos em busca de transportes públicos que nos levassem para fora de Istambul. Sim, transportes públicos, pois é quase impossível começar a boleia numa determinada direcção dentro de uma megalópole de 17 milhões de habitantes. Começámos por apanhar um autocarro do nosso bairro até junto ao porto de Karakoy. Aí apanhámos um ferry para Iminönü, e de Iminönü um outro para Kadikoy (no lado asiático de Istambul). Tempo de mudar de meio de locomoção e atravessar a megalópole debaixo de terra, no metropolitano que nos levou até à cidade Kartal. Em Kartal acaba a linha do metro, mas não a mega-zona urbana, de modo que tivemos de apanhar um último meio de transporte, um dolmuş (mini-autocarro) de Kartal até Gebze, onde poderíamos finalmente começar a pedir boleia. Eram 17h30m quando pusemos os pés em Gebze; a maior parte das horas de luz tinham já passado e nós ainda só tínhamos alcançado o limite da zona urbana. Prometia ser longa a viagem até Doğubeyazıt, cidade do Curdistão turco a 1500 km de Istambul (se se seguir a rota mais directa)!

Felizmente encontravamo-nos na Turquia, que é para mim o país mais fácil de fazer boleia (por entre todos os países que já visitei). De forma que não é de espantar que pouco tempo depois um jovem muito simpático, estudante de química que se deslocava para a universidade, tenha parado para nos levar não até ao seu destino, mas sim muitos quilómetros à frente, à cidade de Izmit. Em Izmit apanhámos uma mini-boleia muito prática que nos tirou do centro da cidade e nos deixou numa bomba de combustível na saída este da cidade. Com as garrafas de água vazias, fomos primeiro às casas de banho enche-las. Ao sair, demos com uma velha carinha estacionada na qual seguiam de viagem um velhinho muito simpático (condutor) e um alucinado dono de restaurante (à boleia). Ao contrário do costume, tirámos primeiro fotos juntos, e só depois entrámos na carrinha que nos levou até à cidade de Sakaria.
Agora começa o grande filme do dia… nessa mesma cidade de Sakaria parou minutos depois um camião para nos levar, conduzido por um jovem muito religioso e de aparência muito simpática. Apenas falava turco, o que não é entrave para as típicas conversas triviais de quando se anda à boleia em países estrangeiros. O problema era perceber onde e quando iria parar, pois tínhamos percebido que se deslocava até Düzce e que tinha ainda uma descarga a fazer, mas não entendíamos a relação entre os 2 factos. “Tudo bem”, confiámos nele e até o ajudámos a encontrar o local da descarga, que para nosso descontentamento se encontrava muito fora da nossa rota. Afinal ele era natural de Düzce (dentro da nossa rota e onde passámos às 20h30) e tinha uma descarga nos arredores dessa cidade. O problema era que ele não sabia a morada da descarga, e nós já não percebíamos pelo seu discurso paranóico se voltaria a Düzce ou não. Voltou, mas eram quase 22 horas!
Queríamos sair em Düzce, comer algo rápido e montar a tenda, mas não, ele quis nos pagar o jantar. Se até então tinha mostrado apenas alguns pormenores de ditador, como não deixar a Claire sair do camião para assistir à descarga), agora deixava sair todo o seu autoritarismo-absurdo: escolheu os lugares de cada um ao redor da mesa, obrigou a ir lavar as mãos, mandou despachar a comer mas mandou acalmar a beber o chá, mandou comer o pão com a refeição… e por aí fora! Se não tivéssemos as malas dentro do camião dele tínhamos largado a comida e ido embora! Enfim, estávamos zombies (literalmente) de sono e só queríamos montar a tenda o mais breve possível, antes que fosse tarde demais e acabássemos por não a montar dormindo no chão. Mas ainda não, depois do jantar e de imensidão de chás “à força” dentro do restaurante, ainda tivemos de beber uns outros mais na esplanada, ordem do “chefe”, pese embora ele próprio se queixasse de uma imensa dor de cabeça e da necessidade de ir dormir!!! Imagine-se! Fomos aos camião buscar as malas mas não, o ditador “convidou-nos” a seguir com ele pois “tinha lugar onde dormir” para nós, e insistiu imenso.
Para nosso espanto, voltou à estrada principal e começou a voltar para trás, donde tínhamos vindo antes, atravessando vários quilómetros. Pensámos que só poderia estar a levar-nos para sua casa, e que o seu autoritarismo viesse da dor-de-cabeça e da falta de língua em comum. Assim se explicaria por que motivo não nos quis deixar sair horas antes em Düzce, antes da descarga, e porque perdera tanto tempo em chás e tretas, apesar de constantemente dizer-nos que “estava na hora de montar a tenda”! Ahhh, porque ia nos dar casa! Mas não, andámos 10km para trás para nada! Para parar numa estação de combustível muito suja e mais pequena que aquela onde jantáramos! Que absurdo? Perguntei-lhe onde dormiríamos. “Na cama do camião se quiserem”! Ah, por favor, 3 numa mini cama!?! Pegámos nas malas e despedimo-nos já bem fulos. O “ditador” ainda insistiu, queria então que montássemos a tenda por detrás da loja da estação, num solo de cimento imensamente imundo e a cheirar a podre, e até foi avisar 2 gajos de muito mau aspecto ali presentes que nós iríamos dormir ali! Para a merda com as boas maneiras, virámos as costas e fomo-nos embora, deixando-o a falar sozinho. Montar a tenda naquela situação seria sinónimo de não pregar olho a noite inteira!
Estávamos agora perdidos numa aldeia do interior turco, passavam das 23h e morríamos de sono. Atravessámos a estrada principal, de forma a desaparecermos dos olhares dos camionistas e dos 2 homens de mau aspecto, para irmos encontrar um grupo ainda pior de gente rude e estúpida fazendo troça de nós! Seguimos com indiferença pelas ruelas sombrias da aldeia, em busca de bons campos onde montar a tenda. Campos e erva macia não faltavam, o problema era haver tanta gente na rua, o que não permitia parar e montar a tenda sem dar nas vistas. Que pesadelo! Já não conseguíamos mais andar de tanto sono.
Por fim arranjámos um lugar aparentemente bom, tapado por um enorme monte de palha. Já tínhamos as malas no chão quando apareceram vários homens, um deles com uma carrinha grande cujos faróis apontavam para onde estávamos. O condutor veio falar connosco mas eu, de forma muito rude, virei as costas, peguei na Claire pela mão e partimos deixando os homens sozinhos. O dono do carro insistiu em falar connosco (e não parecia hostil), mas o extremo cansaço (que me torna agressivo e bruto) que sentia apenas me dizia para fugir dali e encontrar outro lugar urgentemente, para simplesmente montar a tenda e... raios, dormir!!! O coitado do homem persegui-nos a pé, depois de carro, até que na estrada passámos para o lado contrário e teve de correr atrás de nós, deixando o carro abandonado. Pelo caminho chamei-lhe um monte de nomes e muito agressivo mandei-o ir embora não sei quantas vezes. Por fim veio a razão, com a ajuda de Claire, dei a mão ao senhor e depois um abraço, pedi-lhe desculpa comovido e entrámos no seu carro. Era óbvio que nos queria ajudar! Levou-nos até à sua mansão onde a sua mulher nos ofereceu chás e cafés, mas não queríamos, queríamos dormir. Não sei quantas vezes pedi-lhe desculpas, arrependido por não ter tido calma e por ter descarregado sobre este bom homem o stress acumulado com as paranóias do camionista e com a rudeza da gente estúpida por quem passáramos 15 minutos antes. Mustafa Göztok (presidente da freguesia, ficámos depois a saber) não quis saber das desculpas e não dizia não estar minimamente chateado com a rudeza com que eu o tratara. Deu-nos um quarto maravilhoso, água e copos e desejou-nos um boa-noite. Eu só queria dormir, para esquecer a vergonha que sentia de estar a ser tão bem acolhido por alguém que minutos antes eu tratara tão mal… ah, que vergonha… mea culpa!
Álbuns de fotografia
Luís Garcia, 11.03.2017, Chengdu, China
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