Dar uma chapada de vez em quando, por Ricardo Lopes
Considero verdadeiramente asquerosa a curta entrevista da Ana Leal à TVI no telejornal da hora do almoço, relativamente à reportagem que fez acerca de mulheres portuguesas a quem os filhos são retirados pelos serviços sociais britânicos, e que será transmitida brevemente pelo mesmo canal.
Eu ainda não vi a reportagem, obviamente porque ainda não foi transmitida, apenas uns breves minutos da mesma, para fazer o típico apelo ao sensacionalismo pela via do sentimento manipulado. Mas, já não a poderei ver com bons olhos, depois de ter ouvido a sua autora.
Afirmações suas fizeram-me parecer que, além de todos os restantes e quase infindáveis defeitos que Portugal tem, ainda é composto por gente com valores que, por minutos, me fizeram crer que estava num país da África, do sudeste asiático ou da América do Sul, na porra da Idade Média, do baixo Neolítico ou mesmo do Paleolítico.
Mas que merda de mentalidade é preciso ter para apresentar como um exemplo de como os serviços sociais no Reino Unido funcionam mal e de uma forma desumana (como a jornalista quis dar a entender ao longo de toda a entrevista, e fez questão de reforçar ao máximo) o facto de poder acontecer uma criança ser retirada aos pais por na escola se queixar aos professores de a mãe ou o pai lhe terem dado uma estalada e que isto, pelas próprias palavras da senhora, "não é o mesmo que espancar"?
Mas que porra de merda vem a ser esta? Então, a criança queixa-se de agressão física, independentemente da gravidade e da frequência, e uns serviços sociais que funcionam bem vão determinar o quê? Que a criança volte à casa onde a trataram de tal forma, ou removê-la imediatamente de tal situação, que não é uma afronta aos pais, nem a nenhum familiar, tal como a senhora jornalista insistiu irritantemente, mas sim via mais direta e simples de proteger a criança? Vamos supor que as crianças mentem? Vamos arriscar deixar alguém que é dependente de terceiros à mercê dessas mesmas pessoas, depois da mesma, por iniciativa própria, se ter manifestado quanto ao perigo a que está sujeita?
Não! Não é a porra de uma afronta aos pais nem aos cuidadores da criança! É uma medida preventiva! E a investigação que demore o tempo que demorar! Em todo o caso, certamente que uma criança para ser levada ao ponto de se manifestar negativamente perante pessoas que não fazem parte da família em relação às pessoas com quem partilha o local de habitação, com certeza que bem não deverá ser tratada. A violência não se pratica nem manifesta apenas a nível físico. Também existe a violência emocional, psicológica, verbal, etc. E todas estas são bem mais subtis e menos marcantes do que uma "mera bofetada", no bom entender da senhora Ana Leal, mas não têm menos importância num quadro de disfuncionalidade, negligência e incompetência para educar e criar uma criança (ou várias, se for o caso).
Tem de se ultrapassar o conceito criado ancestralmente e absolutamente arcaico de família e de organização social em estratos que ainda permeia essencialmente todas as sociedades humanas. As crianças não são propriedade dos pais, as crianças não estão necessariamente melhor entregues aos pais do que a quaisquer outras pessoas, os pais não tratam necessariamente melhor as crianças do que quaisquer outras pessoas, as pessoas de família não se dão nem se tratam necessariamente melhor entre si do que outras que não tenham "laços de sangue" (outro conceito primitivo) e, acima de tudo, as crianças não são o saco de pancada físico e psicológico dos pais, não têm de levar com as merdas deles e não têm de ser nada daquilo que os pais determinaram para elas, sem elas sequer poderem ter tido a oportunidade de se manifestar em relação a tal e terem tido uma palavra nessa decisão.
E se os pais provêm de um sistema cultural em que é aceitável, porque as pessoas são permissivas para com tal, “dar uma chapada de vez em quando” para educar, então, não, as crianças não merecem estar com os pais, os pais não merecem mantê-las, e as crianças têm direito, sim, a que lhes seja providenciada uma alternativa em termos de cuidadores/educadores.
Ricardo Lopes