Da Sérvia à Sérvia (Kosovo), por Luís Garcia
DOS BALCÃS AO CÁUCASO – EPISÓDIO 6
Estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde eu não vou, porque eu só estou bem... aonde não estou. (Estou Além, António Variações)
12.06.2014
Oitavo dia de viagem, acordámos felizes e repousados na casa desta gente tão boa, a família de Nikola que no dia anterior nos trouxera à boleia de Niš para Prokuplje. Para começar bem o dia tomámos café com leite na companhia de Nikola e a sua mãe, tão querida! Com a ajuda do google translator do tablet de Nikola e do instinto comunicativo de sua mãe, a manhã passou rápida enquanto conversávamos sobre política, sobre a má e errada imagem que o ocidente tem da Sérvia, sobre o futuro incerto deste belo país e desta gente tão interessante e acolhedora. Ao contrário de quase toda a gente que conheço ou com quem me cruzo na Europa Ocidental, aqui toda a gente (mais culta, menos culta) parece estar ciente que as “rebeliões” na Líbia e na Síria não passam de guerras de proxy realizadas pelos EUA. E também não têm dúvidas nenhumas que o golpe de estado feito por Nazis ucranianos, CIA e membros do FMI na Ucrânia é uma clara violação da ordem e da justiça, que o acordo económico Rússia-Ucrânia era legal e benéfico para a Ucrânia, ao contrário de uma farsa de golpe de estado com agentes da CIA, do UÇK kosovar e das guerrilhas tchechenas, sob ordens dos EUA, que levam agora o país definitivamente de volta ao terceiro mundo do qual tentava desesperadamente sair. Mas bom, são outras estórias… Antes de partirmos, recebemos de presente da mãe de Nikola 3 pares de meias novas, finas, de verão, mesmo como precisávamos, pois as que temos são um pouco quentes para a época. Instinto de mãe em acção!
Por volta das 10 horas fomos no carro de Nikola até ao local onde se encontrava estacionado o camião de seu pai. Entrámos no maquinão velhinho e seguimos rumo ao Kosovo… a viagem até à fronteira poderia levar menos de 1 hora, mas levou mais de duas, graças ao estado da estrada, péssimo, completamente destruído diria. Não há dinheiro, é normal, com os bombardeamentos “humanitários” da NATO, a Sérvia recuou mais de 20 anos economicamente, e não sou eu quem o diz, é o insuspeito Henry Kissinger, mestre e estratega de barbáries maiores. Eu diria mais, pois já passaram 15 anos desde o terrorismo humanitário da NATO em forma de bombas que destruiram quase todas as fábricas, linhas de comboio, centrais eléctricas, pontes, refinarias (para falar só de recursos estratégicos) e o país mal consegue funcionar. Para voltar ao dinamismo económico e industrial da grande Jugoslávia ainda hão de passar umas décadas, se entretanto não caírem nas malhas da EU. Enfim, e por falar em bombardeamentos, sim, as provas viam-se da janela do camião, enquanto vagarosamente nos aproximávamos da região autónoma do Kosovo.
Junto à fronteira fomos encontrar uma fila infinita de camiões. Saímos com Dragan (pai de Nikola) e dirigimos-nos ao Posto de Controlo de Merdera. Pelo caminho Dragan cumprimentou um montão de amigos também camionistas a quem delegou a tarefa de tomar conta do camião e avançá-lo sempre que necessário. No controlo de passaporte, pois claro, obtemos os carimbos sem problemas, mas não sem antes aturar dois polícias trogloditas que de forma grotesca, ridícula e bruta perguntavam por que é que eu tinha tantas bandeiras na mochila e não do Kosovo!?! Respondi o óbvio, ahhh, que gente deficiente, porque “nunca fui ao Kosovo”! E para mim próprio respondi “porque o Kosovo não existe, é uma colónia militar dos EUA”! E é daí mesmo que veio a arrogância nacionalista daquele troglodita, perante um país que não existe, um albanês da província sérvia do Kosovo quer a todo custo ver bandeiras que confirmem o que não faz sentido, caso contrário não perguntava por bandeiras ou, se perguntasse, não seria com aquela expressão corporal de quem diz “de que raio estás à espera para colcar na tua mochila de viagem A BANDEIRA do nosso PAÍS que EXISTE MESMO, hein?”! Ahhhhh, haja paciência.
Tratada a burocracia, Dragan conduziu-nos a um restaurante do lado kosovar, mesmo junto ao quartel militar português da NATO, onde nos ofereceu uns cafés e onde esperámos mais de 2 horas para ver o camião atravessar também a fronteira. Durante a espera, voltei a por a bandeira da Albânia no saco, que retirei por respeito à Sérvia, e que agora serviria para agradar os descontentes albaneses pela não presença da bandeira kosovar. Maquiavélico eu? Um pouco, ahahah!
De volta à estrada, uma sensação de déjà vu: resmas de casas espalhadas aleatoriamente, pela paisagem, 99% delas por rebocar. Onde é que já vi isto? Ah, Albânia, há 9 anos atrás. Tá explicado. Eheheh. Nos 40 km que separam a fronteira da capital Pristina, vimos muitas centenas de bandeiras da Albânia, algumas dezenas de bandeiras do Kosovo, EUA, NATO, OTAN e EU! Em telhados de casas e edifícios privados, sim, que não fique a dúvida!
Como nos deslocávamos de camião, não pudemos entrar na cidade com a nossa boleia. Ficámos pelos arredores e apanhámos um autocarro urbano para o centro. O primeiro objectivo era encontrar as estações de autocarros e comboios de Pristina, que aparecem nos mapas do google, mas que afinal não existem, como viemos a descobrir de malas às costas de um lado para o outro. O bom-senso fez-nos desistir de procurar as estações virtuais e ir para o centro, belo, novíssimo, bem organizado, com bares e restaurantes “super cool”, hotéis de luxo em cada esquina. O problema é que um centro destes num país em que a economia não funciona (não há indústria, não se produz nada) e numa cidade em que por detrás do centro se está numa favela, não faz sentido nenhum, é completamente artificial. Dada a presença de muitos estrangeiros que trabalham pela ONU, EU, KFOR, NATO, OCDE, entre outros, na construção deste estado, percebe-se a presença dos tais hotéis e bares de luxo, Mas quero ver o que acontecerá a tudo isto quando todos os estrangeiros partirem…
Detalhes interessantes da cidade de Pristina:
- packs de bandeiras de: Albânia, Kosovo, NATO, UE e EUA;
- Avenida George Bush;
- Avenida Bill Clinton;
- Hotel Victory com uma estátua da liberdade gigante;
- souvenirs da organização terrorista do UÇK à venda;
- estátua de Skanderberg no centro de Pristina, cópia da estátua do herói nacional albanês que se encontra em Tirana.
Outro detalhe interessante, presente não só em Pristina mas por todo o estado autónomo do Kosovo é o nome “Ilíria”, antigo reino do tempo do Império Romano e Grécia Clássica. Até hoje ninguém provou de forma conclusiva que exista alguma ligação histórica entre o extinto reino ilírio e o povo albanês, mas estes últimos juram de pés juntos que são descendentes dos ilírios, pois claro, assim podem reclamar como sua terra ancestral toda a Jugoslávia e parte da Itália, Grécia e Bulgária, e criar a Grande Albânia, a utopia nacionalista de um povo que não consegue sequer tomar conta do estado falhado da Albânia. E assim temos restaurantes Ilíria, bombas de combustíveis Ilíria, lojas Ilíria, garagem Ilíria, loja de electrodomésticos Ilíria, etc… Uma lista infinita. Mas sim, já percebemos, bandeira da Albânia por todo lado e o nome Ilíria, sim, percebemos, vocês existem e são albaneses e hipoteticamente ilírios, ah que claustrofóbica paranóia.
Como a cidade não é muito grande, atravessámo-la a pé até à saída sul onde à beira de uma estrada em construção, muito entulho e terra se encontrava uma multidão de gente à espera com malas nas mãos. Supusemos que aquele aglomerado de gente e entulho seria a estação de autocarros de Pristina e acertámos. Não levou muito tempo até aparecer um autocarro para Uroševac (Ferizajt em albanês). Meia hora depois estávamos já no centro da cidade de Uroševac.
Uroševac foi uma cidade que sofreu bastante destruição por parte das bombas humanitárias dos EUA e companhia. Passados 15 anos e com ajudas externas a cidade recompôs-se, mas não para os sérvios que foram obrigados a partir para nunca mais aqui regressar. Os albaneses do Kosovo, esses sim, parecem contentes, são donos e senhores da cidade e, nem de propósito, estavam a tratar dos últimos detalhes para o início das comemorações da entrada “vitoriosa” da NATO no Kosovo. Esse fatídico dia no qual, para libertar os albaneses-kosovares das mãos dos sanguinários sérvios que também lá habitavam, e a graças a uma imensa chuva de bombas de alta-precisão, a NATO conseguiu matar quase todos os albaneses-kosovares que propunha salvar! Ahhh, gandas malucos!
E que absurda coincidência termos entrado no Kosovo precisamente neste dia! Enfim… Para Uroševac tínhamos organizado uma noite em casa de um couchsurfer, só não tínhamos era forma de comunicar com ele. Deslocámo-nos até à praça central onde estavam a começar as referidas comemorações e olhámos à volta em busca de uma cara simpática a quem pedir um telemóvel emprestado. Não foi preciso, o organizador das comemorações veio ter connosco dando-nos as boas-vindas num bom inglês, telefonou ele mesmo ao couchsurfer e apresentou-nos aos membros de uma banda kosovar famosa enquanto esperávamos a vinda do nosso anfitrião couchsurfer. Também, enquanto esperávamos, fomos atacados por uma multidão de miúdos curiosos e ansiosos por serem fotografados. O resultado está aqui:
Pormenor interessante de Uroševac: bandeira e símbolos do UÇK por todo o lado, até um café do grupo terrorista do UÇK! Tudo bem, ninguém da OSCE, da KFOR, da ONU ou da UE, que passam constantemente em jipes a patrulhar o Kosovo, para trás e para a frente, parece ligar ou sequer reparar! Tudo bem, viva a podríssima paz podre!
A minha mala tem muitas bandeiras entre elas está uma da Jugoslávia! Ah, caos, horror, barbárie! Enquanto esperávamos o pelo nosso hóspede couchsurfer, um troglodita veio-me chatear a cabeça com “Jugoslávia Kaput”, “Jugoslávia finish”! A sério? Jura, não sabia! E quê, não posso ter uma bandeira antiga na MINHA mala? Nacionalismo ridículo de quem tem um país colónia dos EUA reconhecido por apenas 1/3 dos países com assento na ONU e que, aí está, tendo bandeira (do Kosovo) só usam a da Albânia. Incoerências de gente apanhada do clima…
Com muito atrasado, devido à sua vida muito ocupada, chegou Enis, o couchsurfer kosovar. Levou-nos no seu Mercedes de vidros escuros até à sua casa em Sojeve, uma aldeia a 10 km de Uroševac, onde se encontra a maior base militar dos EUA em território europeu (Bond Steel). O próprio Enis trabalha na base militar gringa, hehe! Enquanto jantámos e bebemos vinho, tudo oferta do nosso anfitrião, conversámos e discutimos imenso sobre os EUA e a sua máquina de guerra, com a base militar em frente à varanda e dezenas de helicópteros a sobrevoar-nos! Que maravilha! Desse jantar ficou-me marcada na memória esta frase interessante de Enis: “Os kosovares são como os judeus, adoram dinheiro, e não olham a meios para obter os seus fins.” Ele é um bom exemplo, ex-mercenário pago pelo Pentágono na Líbia e Afeganistão e tem fotos para convencer os mais cépticos.
Bom, isto é só uma introdução à parte 7 (a seguinte), essa sim com Estórias De Viagem. E mais, com imagens esclusivas da base militar norte-americana de Bond Steel, ahahah!
Álbuns de fotografia
Luís Garcia, 29.12.2016, Chengdu, China
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