Cuidado com os artistas
A espécie humana é peculiar no reino animal por ser a única capaz de criar um mundo ilusório e tomá-lo por real ao ponto de a própria visão sensível já não ser capaz de enxergar o que os seus conceitos superficializam, o que a sua língua volatiliza, o que o seu pendor idealista e metafísico desmaterializa e o que o seu entendimento ignora da realidade inescrutável pelo intelecto humano, o que o desfasa de todas as restantes formas de vida sensível, por se desarreigar de uma vivência natural plena.
Aberrante, então, é a raça dos artistas.
Se nos dermos à empresa de conhecer a história pessoal da esmagadora maioria dos artistas, principalmente os de relevo histórico-cultural, e munidos de uma certa quantidade de conhecimento na disciplina da psicologia, facilmente traçamos perfis de desequilíbrio psíquico.
E, tal, não é tão abstruso como possa parecer ao apreciador médio de arte. Basta compreender o seu modus operandi, que passa, grosso modo, por, perante a rejeição social a que são sujeitos, muitos deles até tendo passado por graves problemas no que diz respeito ao desenvolvimento emocional e pessoal no seio da própria família, se isolarem num mundo idealizado que vão orquestrando imaginativamente. Mundo esse que é a base para a sua projeção externa da forma como a realidade se deveria apresentar perante eles. Na ignorância científica de que a maioria padece, facilmente o que poderia devir em algo que representasse uma melhoria realista para o mundo humano resvala para uma utopia. E, então, o encerramento dentro de si mesmo consolida-se, ora sob a forma de um embriago de felicidade tola, ora mais comummente sob a forma de um pessimismo que pode ser lido na sua misantropia irremediável, quando decidem que aquilo que veem à sua volta, e que não passa da corporização do um determinado conteúdo cultural, compõe a “natureza humana”.
E é da misantropia que pode derivar uma certa perda de aptidão para a empatia de que muitos padecem, reduzindo-se a sua sentimentalidade às formas frias estilísticas através das quais a exprimem, viciando-se na sua produção artística e negligenciando as relações humanas. Isso foi genialmente explorado por Ingmar Bergman nos seus filmes, como por exemplo “Sonata de Outono”, no qual Ingrid Bergman personifica magistralmente alguém com o perfil psicológico que tracei.
Ensimesmados, arrastam para a perdição humana toda a gente que toma contacto com o seu diletantismo, por submissão a um ideal positivo ou negativo que projetam e com base no qual interpretam toda a operabilidade do universo.
Mais cedo ou mais tarde, as pessoas que assumiram essas ideias acabarão por esbarrar com uma realidade oposta, à qual atribuirão, por uma postura não científica, a qualidade de humanamente insolúvel, perdendo-se, possivelmente para sempre, da possibilidade de fruir o mundo para além do efeito visceral do bolo que resultou do vício de mastigar a realidade com as mandíbulas da ficção e interioriza-lo como se fosse real.
Ricardo Lopes