Ricardo Lopes
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Black Mirror - Temporada 4
Episódio 2 - Arkangel
Este episódio já foi mais equilibrado, do ponto de vista tecnológico, do que o primeiro.
Por um lado, é preciso parabenizar Charlie Brooker por ter conseguido algo que não aconteceu em praticamente nenhum outro episódio de Black Mirror até à data, que é o facto de ter personalizado os aspetos negativos da tecnologia em questão, ao invés de ter tornado a tecnologia numa espécie de praga digna de pesadelos a cuja influência ninguém consegue escapar.
Desta vez, é mais do que claro que o problema está na mãe (Marie) e não na tecnologia em si. As evidências disso são várias:
1 - É a tecnologia que permite salvar o avô de uma morte precoce.
2 - A conceptualização da tecnologia, assim como a sua finalidade primordial, é positiva.
3 - Pelo facto de, muito provavelmente, as pessoas terem começado a utilizá-la de uma forma abusiva, foi banida progressivamente no mundo inteiro. E, portanto, é colocado um forte ênfase na capacidade das pessoas, enquanto coletivo, terem sido capazes de exercer controlo sobre a tecnologia, e não o oposto, algo que também é muito raro de se verificar no Black Mirror.
4 - Na cena na aula de Filosofia, e apesar de a determinado momento já não se conseguir perceber o que a professora diz, é feita referencia a Édipo, numa alusão clara ao Complexo de Édipo de que Sara é vítima da parte da mãe. Portanto, mais uma vez, personaliza-se o problema, ao invés de generalizar.
5 - Na escola, e desde os anos mais precoces, se perceber que Sara é uma exceção em relação ao colegas, e não aparece mais nenhum, pelo menos que se saiba, que tenha o mesmo tipo de monitorização parental.
Mais uma vez, em termos de exploração da natureza humana, o autor não falha, até porque também não generaliza o tipo de parentalidade que aborda neste episódio, que é característico de determinadas pessoas, principalmente mulheres, mas não da maioria das outras.
E também não me parece que tenha recorrido à provocação barata de medo para criar sensacionalismo, tal como já aconteceu noutros episódios, e por isso digo que a série no geral peca muito por "fearmongering" em redor das consequências negativas da tecnologia.
Teria sido extremamente fácil que o ataque violento de Sara tivesse resultado na morte da mãe, mas não é isso que acontece.
Saliento também, de forma positiva, o facto de o autor não ter aberto qualquer tipo de condescendência em relação ao mais mínimo controlo parental, que é algo que, nos países ocidentais e a partir de cerca dos anos 80, se tem normalizado culturalmente.
A juntar a isso ainda, o facto de ter mostrado como não é o facto de as crianças e adolescentes se colocarem em situações mais arriscadas ou até terem contacto com conteúdos desagradáveis (no caso, vídeos violentos e pornografia) que contribui para uma psicologia disfuncional. Aliás, antes pelo contrário, é precisamente isso que permite a emancipação final de Sara.
Do ponto de vista tecnológico, e colocando de parte o meu ceticismo em relação à possibilidade de produzir imagens com tal acuracidade a partir do processamento de estímulos visuais por parte do cérebro, o episódio contém uma falha grave, que é o facto de apresentar a pílula do dia seguinte como um contracetivo abortivo, que não é.
Em suma, é um episódio muito equilibrado, tanto em termos do tratamento da natureza humana, como, e ainda muito mais importante por ser raro nesta série, no tratamento da tecnologia.
Mais uma vez, sou obrigado a deixar uma observação relativamente à premissa, uma vez que se esta for, de facto, a de mostrar os efeitos negativos que a tecnologia pode ter sobre as pessoas, então, e para manter o que já é costume, o episódio falha. Aliás, se a premissa fosse a de mostrar os efeitos negativos que uma determinada psicologia humana poderia ter sobre o desenvolvimento tecnológico e o aproveitamento da tecnologia ao serviço de determinados fins perversos, então não só este episódio teria sido praticamente perfeito, como toda a restante série estaria muito perto disso.
E, a meu ver, deveria ser exatamente essa a premissa, como é nas distopias mais aclamadas, como 1984 e Admirável Mundo Novo.
Ricardo Lopes