Como os media mainstream branqueiam a al-Qaeda e os White Helmets na Síria (2/4), por Eva Bartlett
Parte 2/4
Resposta ao The Guardian
Em Outubro, uma jornalista de tecnologia (e por vezes de moda) do The Guardian estabelecida em San Francisco de seu nome Olivia Solon (que constatadamente não compreende de todo a geopolítica do Médio-Oriente), enviou-me a mim e a Beeley dois emails praticamente idênticos repletos de assumpções para uma "estória" do The Guardian da qual nós haveríamos de ser o foco principal de atenção. Aqui fica a correspondência entre mim e a jornalista Olivia Solon do The Guardian:
E agora a minha breve análise aos emails de Solon, incluindo algumas das suas questões mais controversas desses emails:
- Quem são os "nós" que Solon menciona? A sua referência a "nós" é indicativo de que esta estória não é uma ideia originalmente sua, nem tampouco pesquisada e escrita de forma independente. Partes do artigo, incluindo o título e alguns elementos que destacarei mais tarde no meu artigo, parecem ser reciclagens de partes de outros artigos anteriores, mas enfim, isto que fazes é jornalismo de copiar-colar.
- Não é que apenas eu acredite que a narrativa dos media mainstream sobre os White Helmets esteja errada; esta narrativa tem sido desacreditada de forma redundante nos últimos anos. Em Setembro de 2014, Cory Morningstar, um jornalista independente canadiano, investigou as forças obscuras por detrás das pomposas Relações Públicas que entornam os White Helmets. Em Abril de 2015, Rick Sterling, um jornalista independente norte-americano revelou que os White Helmets têm sido financiados por potências ocidentais e geridos por um ex-militar britânico, e salientou o papel destes "socorristas" nos pedidos de intervenção ocidental para a criação de uma zona de exclusão aérea na Síria (mais artigos sobre este abaixo). Tudo isto foi dito meses antes dos media russos terem começado a escrever sobre os White Helmets.
Desde então, Vanessa Beeley produziu uma imensa pesquisa muito bem detalhada, realizando investigações no terreno (na Síria), inclusive recolhendo testemunhos de civis sírios que sofreram experiências (frequentemente horríveis) com os White Helmets; pôs em evidência que a Defesa Civil Síria existe e têm existido desde 1953, mas que não têm nada a ver com os White Helmets (os quais se apropriaram indevidamente daquele nome); estabeleceu que o órgão [socorrista] internacional, a organização International Civil Defence sedeada em Genebra, não reconhece os White Helmets como sendo a Defesa Civil Síria; provou que homens agora membros dos White Helmets roubaram veículos e equipamento da Defesa Civil Síria de Aleppo, assim como bens pertencentes a civis; e concluiu que os White Helmets partilharam com a al-Qaeda um edifício em Bab al-Bairab (Aleppo oriental) no qual presenciaram, entre outras situações, a tortura de civis.
Custa a acreditar que no espaço de tempo de dois meses que passaram entre ter contactado Beeley e ter me contactado, Solon, no decurso das suar certamente exaustivas investigações, não tenha visto este vídeo, no qual é claramente visível membros dos White Helmets fardados na companhia de apoiantes do terrorista saudita Abdullah Muhaysini. Socorristas não tão "neutros" assim. Mas, no entanto, talvez o tenha feito. Olivia Solon estava disposta a escrever sobre a presença de membros dos White Helmets em locais de execuções, sobre o facto de pousarem com os pés por cima de corpos de soldados sírios, e empunhando armas, numa daqueles típicas divagações de excepções à regra.
- Quanto ao interesse do The Guardian em relação à minha relação com o governo sírio: Não, não recebi pagamento nenhum, nem presentes nem o que quer que seja de governo nenhum. Pelo contrário, gastei do meu próprio dinheiro para poder visitar a Síria (e organizei recolha de fundos, e tenho recebido com frequência doações via Paypal e de apoiantes no Patreon que apreciam o meu trabalho). Veja o meu artigo sobre este assunto.
Quanto à questão sobre como é que as minhas visitas à Síria e à Coreia do Norte tiveram lugar, esta mais não é que uma nova e óbvia tentativa de subentender que eu faço parte da folha de pagamento (ou que recebo algum outro tipo de recompensa) de um ou mais dos governos em questão.
Uma das questões do The Guardian tinha como tema a quantidade de seguidores que tenho: "Que você atrai uma vasta audiência online, amplificada por personalidades de direita de grande relevo e por aparições na televisão estatal russa." (destacado a negrito por mim)
O nível de seguidores que tenho teve início à precisamente um ano atrás, quando pedi para discursar perante uma comissão das Nações Unidas, algo que o US Peace Council também fez em Agosto de 2016. Foi graças a uma breve interecção (que se tornou viral) entre mim e um jornalista norueguês, que a minha audiência online disparou. Lamento que o que se tornou viral não tenha sido o conteúdo da exposição de mais de vinte minutos feita por mim e outros três convidados sobre a situação em Aleppo, cidade que na altura ainda era alvo diário de bombardeamentos e tiros de snipers por parte daqueles que o Ocidente considera de "moderados".
Ainda assim, e dado que tantas pessoas reagiram de forma positiva à referida interacção com o jornalista norueguês (cujo tema foram as mentiras dos media corporativos e a sua falta de fontes), parece que o público vai começando a perceber que algo não bate certo com a forma com que os media corporativos retratam a questão síria.
A primeira pessoa a editar e partilhar o vídeo em questão (no dia 10 de Dezembro, o dia a seguir à apresentação na comissão) foi o dono da conta Twitter @Walid970721. Viste que entretanto já tive a oportunidade de me encontrar pessoalmente com ele, posso confirmar que esta pessoa não é nem russa nem financiada pelo Kremlin ou qualquer outro governo, e que partilhou o vídeo em questão por achá-lo interessante. De qualquer modo, no dia 10 de Dezembro, e antes de qualquer outro grande media russo o fazer, a HispanTV havia já partilhado as minhas palavras. Mais, a partilha que obteve o maior número de visualizações foi a do media online indiano Scoop Whoop, a 15 de Dezembro. Que depois os media russos tenham partilhado o vídeo e noticiado o acontecimento, isso não é da minha responsabilidade. E obrigado media russos por fazerem aquilo que os media corporativos ocidentais nunca fazem.
- Quanto à questão de Solon no The Guardian sobre se eu julgo "que Assad tem sido demonizado pelos EUA de forma a provocar uma mudança de regime". Claro que julgo que sim, assim como fazem todos os analistas e jornalistas que não tenham sido cegados ou obrigados a sê-lo pela narrativa da NATO. Como escreveu Rick Sterling em Setembro de 2016:
“A desinformação e a propaganda sobre a Síria assumem 3 formas distintas. A primeira é a demonização da liderança síria. A segunda é a romantização da oposição. A terceira forma emplica atacar todos aqueles que ousem questionar as caracterizações anteriores."
Stephen Kinzer, autor e correspondente galardoado e contribuidor do Boston Globe, escreveu em Fevereiro de 2016:
"Correspondentes surpreendentemente corajosos presentes na zona de guerra, incluindo norte-americanos, tentam contrariar a versão dirigida por Washington. Com grande risco para a sua própria segurança, esses repórteres tentam trazer à superfície a verdade sobre a guerra síria. As suas reportagens, com frequência, trazem nova luz que contraria a escuridão do reinante pensamento de manada. Ainda assim, para muitos consumidores de notícias, as suas vozes perdem-se por entre a cacofonia. Quem noticia a partir do terreno é normalmente ofuscado pelo consenso de Washington".
No esforço de contrariar as campanhas de demonização dos media corporativos, muitas vezes escrevi (incluindo as palavras de sírios vivendo na Síria, pormenor de suma importância) sobre o vasto apoio que o presidente sírio tem dentro e fora da Síria.
No meu artigo de 7 de Março de 2016, fiz menção a um encontro que tive com membros internos e desarmados da oposição, incluindo o representante curdo Berwine Brahim, que declarou:
"Queremos que você transmita [ao mundo] que conspirações, terrorismo e a interferência de países ocidentais uniram apoiantes do governo e opositores no apoio ao presidente Bashar al-Assad".
Nesse mesmo artigo escrevi também:
"Por todo o lado onde andei na Síria (assim como durante os muito meses que passei em várias partes do Líbano, onde me encontrei com sírios vindo de toda a Síria) encontrei imensas provas do extenso apoio que dão ao presidente al-Assad. O orgulho que eu vi que a maioria dos sírios sente pelo presidente é bem evidente nos cartazes pendurados em casas e lojas, nas canções patrióticas e nas bandeiras sírias durante celebrações, e foi também evidente nas conversas que tive com sírios comuns de todas as fés. A maioria dos sírios pede-me que eu diga exatamente aquilo que vi e que transmita a mensagem de que cabe aos sírios decidir o seu futuro, que eles apoiam o seu presidente e o seu exército, e que a única maneira de parar o derramamento de sangue é fazer com que as nações ocidentais e do Golfo parem de enviar terroristas para a Síria, com que a Turquia pare de atacar a Síria e com que o Ocidente pare com as suas conversas sem sentido sobre "liberdade" e "democracia" e deixe os sírios decidir o seu próprio futuro ".
No meu artigo de Maio escrito no Líbano, depois de ter observado de forma independente o primeiro dos dois dias durante os quais sírios faziam fila à porta da embaixada para votar nas eleições presidenciais, citei alguns dos muitos sírios com quem conversei (em árabe)
"'Nós adoramo-lo. Eu sou sunita e não alauita' disse Walid, originário de Raqqa. 'Eles têm medo que as nossas vozes sejam ouvidas', acrescentou... 'Eu venho de Der-ez-Zor,' disse um votante. 'ISIS (Estado Islâmico do Iraque e da Síria) está presente na nossa zona. Nós queremos Bashar al-Assad. Ele é uma pessoa honesta,' continuou, enquanto fazia um gesto com a sua mão."
E já agora, ninguém me escoltou até à embaixada num veículo do governo sírio. Não, eu apanhei um autocarro e depois caminhei os restantes quilómetros (a estrada estava tão entupida com veículos indo para a embaixada) com sírios que iam a caminho de votar.
Em Junho de 2014, uma semana depois das eleições na Síria, viajei de autocarro até Homs (outrora apelidada de "capital da revolução"), onde encontrei sírios celebrando os resultados eleitorais uma semana depois do evento ter ocorrido, e conversei com sírios que começavam entretanto a limpar e reconstruir casas danificadas pela ocupação terrorista do seu bairro.
Quando regressei a Homs, em Dezembro de 2015, lojas e restaurantes haviam reaberto onde há um ano e meio atrás só havia destruição. As pessoas preparavam-se para celebrar o Natal, algo que não puderem fazer sob o domínio de terroristas. Em Damasco, enquanto assistia a um concerto coral, ouvi por acaso pessoas se perguntando com entusiasmo se "ele" estaria ali. No dia anterior, o presidente Assad e a primeira-dama tinham aparecido num ensaio do coro, para surpresa e encanto dos seus membros. E, apesar da igreja se encontrar a uma distância alcançável pelos morteiros dos "moderados" a oeste (e, na verdade, essa área tinha sido repetidamente atingida por morteiros), muitas pessoas arriscaram vir na esperança de poder haver uma nova visita do presidente.
Estes são apenas alguns dos muitos exemplos de apoio que o presidente da Síria vê, e as tentativas de vilipendear a ele e a outros membros da liderança síria. Até a Fox News reconheceu seu apoio, referindo-se às eleições de 2014:
"... ressaltou o apoio considerável que o presidente Bashar al-Assad ainda desfruta da população, incluindo muitos da maioritária comunidade muçulmana sunita. ... Sem o apoio sunita, no entanto, há muito que o governo de Assad teria colapsado".
Em relação aos crimes de guerra, a Síria está lutando uma guerra contra o terrorismo, mas os media corporativos continuam a fabricar falsas alegações e a repetir essas mesmas inventadas e infundadas acusações. Por exemplo, a repetida acusação de que o governo sírio mete civis a morrer de fome. Durante as minhas investigações no terreno, eu revelei a verdade por trás da fome (e dos hospitais destruídos e dos "últimos médicos") em Aleppo, em Madaya, em al-Waer, no centro histórico de Homs (2014). De qualquer maneira, a fome e a falta de assistência médica eram da exclusiva responsabilidade de grupos terroristas (incluindo a al-Qaeda) que armazenavam a comida (e os suprimentos médicos). Vanessa Beeley, em maior profundidade, expôs bem essas mentiras sobre Aleppo oriental.
Quanto às alegações sobre armas químicas, estas já foram há muito desmontadas pelas investigações de Seymour Hersh (sobre Guta 2013; sobre Khan Sheikhoun 2017) e pela própria Carla Del Ponte (das Nações Unidas) que afirmou que:
"... há suspeitas fortes e concretas mas não ainda provas incontestáveis do uso do gás sarin, tendo em conta a forma como as vítimas foram tratadas. Estas foram usadas por parte da oposição, os rebeldes, e não pelas autoridades governamentais".
Em relação aos comboios supostamente bombardeados, veja este meu artigo sobre uma alegação do género.
Sobre se os White Helmets fizeram ou não algum positivo trabalho de resgate de civis: eles apenas trabalham em áreas ocupadas pela al-Qaeda e outros terroristas a eles associados, de forma que ninguém pode provar se de facto realizaram algum resgate de civis. Contudo, temos inúmeros testemunhos no sentido contrário recolhidos no local, testemunhos sobre os White Helmets recusando cuidados médicos a civis não afiliados a grupos terroristas.
Em Setembro de 2017, Murad Gazdiev (muito útil com as suas honestas reportagens a partir de Aleppo durante quase todo 2016) apresentou provas de que o quartel-general dos White Helmets em Bustan al-Qasr (Aleppo) estava repleto de Canhões do Inferno (usados para disparar bombas-botija-de-gás contra os civis e a infra-estrutura de Aleppo) e de restos de uma fábrica de bombas. O quartel-general estava localizado numa escola.
Os relatos de Gadiev foram precedidos pelos de Pierre le Corf, um cidadão francês vivendo há mais de um ano em Aleppo, que em Março de 2017 havia visitado essa sede dos White Helmets (e de novo em Abril), e que publicou a descoberta de bandeiras, logótipos e toda uma parafernália de objectos do ISIS e da al-Qaeda dentro da sede dos White Helmets instalada mesmo ao lado da sede da al-Qaeda (Jabhat al-Nusra). Le Corf escreveu também sobre os seus encontros com civis de Aleppo oriental e sobre a opinião destes em relação aos White Helmets:
"... as duas últimas famílias com quem me encontrei disseram me que eles ajudavam primeiro os terroristas feridos e às vezes deixaram os civis nos escombros. Quando as câmeras estavam a filmar, todos ficavam agitados, assim que as câmera eram desligadas, as vidas das pessoas sob o entulho perdiam importância... Todos os vídeos que você viu nos media vêm de um ou do outro. Os civis não podiam pagar para ter câmeras ou ligações 3G quando já era difícil comprar pão, apenas grupos armados e seus apoiantes o podiam fazer ".
Em Dezembro de 2016, quando a cidade de Aleppo foi libertada, Vanessa Beeley recolheu testemunhos de civis da zona leste até então ocupada pela al-Qaeda. Mais tarde escreveu:
“Quando lhes perguntei se tinham conhecimento da "defesa civil", responderam-me furiosos: "sim, sim, a defesa civil da frente al-Nusra". A maior parte deles quis aprofundar a questão e explicou-me que a defesa civil da frente al-Nusra nunca ajudam civis, e que apenas trabalham para grupos armados."
Beeley escreveu também sobre a cumplicidade dos White Helmets no massacre de civis (incluindo 116 crianças) em Foua e Kafraya em Abril de 2017.
CONTINUA
Eva Bartlett, 06.01.2018
Leia a 1ª parte aqui: Como os media mainstream branqueiam a al-Qaeda e os White Helmets na Síria (1/4)
Leia a 3ª parte aqui: Como os media mainstream branqueiam a al-Qaeda e os White Helmets na Síria (3/4)
Leia a 4ª parte aqui: Como os media mainstream branqueiam a al-Qaeda e os White Helmets na Síria (4/4)
traduzido para o português por Luís Garcia
versão original em inglês: How the Mainstream Media Whitewashed Al-Qaeda and the White Helmets in Syria