Carta ao presidente François Hollande sobre o conflito sírio - parte 2, por Pierre Le Corf
De acordo com os testemunhos, a maioria das suas equipas prestavam socorro, para começar, aos combatentes e depois, eventualmente, aos civis. Tendo cada equipa como particularidade o facto de ter um cameraman, e de prestarem auxílio a estes últimos enquanto a câmara filmava. Muitos civis me disseram que numerosas pessoas foram abandonadas sob os escombros sem qualquer ajuda, uma vez que eles se recusavam a dá-la. Outros afirmaram que eles encenavam ataques, falsos bombardeamentos com falsos feridos e falsas intervenções. O nosso governo financia igualmente associações como “Syria Charity”, ostentando uma bandeira com 3 estrelas, a qual se chamava inicialmente “liga por uma Síria livre”, designação que figura, hoje em dia, nos relatórios. Ainda que prestando ajuda humanitária, uma associação que ultrapassou a linha vermelha ao participar numa guerra de opinião para justificar a inversão do governo na ocultação da realidade no terreno, a sua proximidade de grupos armados (a sua presença, também, cuidadosamente apagada de todos os vídeos) e prestando auxílio médico constante aos jihadistas.
Numerosas associações e organizações humanitárias francesas e internacionais em zonas “rebeldes” fizeram mais mal do que bem, ao instrumentalizar o sofrimento da população para manipular a opinião em nome de uma causa e de doações falsas. Elas também mantiveram a população civil refém, permitindo que esta guerra continuasse, legitimando-a de maneira desonesta, permitindo que os combatentes perdurassem, e que a morte ocupasse o quotidiano.
Nos dispusemos, de resto, a bandeira síria de três estrelas no Eliseu, ao tempo de receber o (falso) prefeito de Alepo com honrarias, um homem que nunca foi eleito pelo povo sírio, que não vem de Alepo, mas reconhecido e eleito pelos líderes dos grupos jihadistas, assim como por alguns membros de partidos e estrangeiros. Esta bandeira não mais simboliza a liberdade na Síria, aqui é um símbolo de morte quotidiana, doravante associada à ASL, um conglomerado de grupos terroristas próximo da al-Qaeda que apenas advoga a democracia para os media e que nos apoiam. Não devemos, sobretudo, confundir com o movimento civil de 2011 e aqueles que dele se serviram, aqui e por todo o mundo, para criar esta guerra.
Sim, muita gente morreu. Nenhuma guerra é justa, eu não tenho o papel de negar ou defender a violência extrema dos bombardeamentos do este de Alepo, que no lugar de permitirem a sua queda, permitem a sua libertação. É uma realidade.
Uma outra realidade é que, colocando de parte as crianças feridas, as bombas e os gritos, nós eliminámos a presença de grupos armados mas, sobretudo, eliminámos os civis, a vida. Privámo-los de voz, deixando as pessoas compreender a situação a partir das suas próprias emoções, face a uma situação continuamente ilustrada de maneira catastrófica, utilizando frequentemente as crianças. Como recolocar em questão o que se passa aqui, quaisquer que sejam os argumentos e provas propostas quando vos apresentamos uma situação na qual vos fazemos acreditar que toda a Síria está a ferro e fogo, de maneira unilateral por culpa do seu governo? Que tudo o que se passa aqui e que não corresponde a esta imagem da propaganda? Que a prioridade é de impor zonas “no-fly”; as quais, graças a Deus, nunca se concretizaram. Sim, elas teriam alimentado o conflito, aumentado o número de mortos, e teriam permitido aos grupos armados tomar Alepo, ao invés de a libertarem da guerra e da morte. As pessoas que escaparam do este experimentaram o inferno mas a maioria viveu a chegada aqui como uma libertação, não uma deportação, dado que a maior parte retornou agora à sua casa. Ninguém assinalou que 85% dos civis vieram refugiar-se livremente do lado oeste de Alepo, lado governamental, visto que os autocarros foram tomados pelo Idlib, transportando combatentes e civis voluntários.
A “legitimidade” atribuída a estes grupos e à sua causa pelos media e o auxílio externo permitiram-lhes avanços críticos ao redor da cidade, forçando centenas de milhares de pessoas ao abandono das suas casas. Lembro-me que, ao longo de semanas, dormimos vestidos, as mochilas preparadas ao lado da cama, os terroristas e os combates eram de tal forma próximos que, por vezes, as balas atravessavam as ruas e que, quanto mais eles avançavam as suas posições, mais eu os conseguia ouvir berrar “Allah Akbar” antes e depois do disparo de cada morteiro sobre a cidade.
Quaisquer que sejam os países onde foram utilizados os vídeos e os conteúdos pelos combatentes e partidaristas, por vezes completamente orquestrados, eles foram difundidos em horário nobre através dos media, instrumentalizando a mote e o sofrimento das pessoas que viviam no meio dos combates, o amor e a compaixão daqueles que observavam as imagens. Como estes grupos armados fanáticos, nós vendemos um tal medo que ninguém se apercebeu que estes conteúdos tinham todos uma finalidade e tinham sido criados em consequência disso, sem alguma vez dar voz às preocupações dos civis, senão à dos partidaristas ou terroristas (eu preciso que os civis não podiam facilmente entregar-se à dor, então uma câmara e sobretudo uma conexão 3G à internet eram inatingíveis, custando o equivalente a 5 quilos de carne). A fim de ter o número de combatentes para destruir o governo, completámos o nosso impacto sobre o conflito, ao jogar com os sentimentos para influenciar a opinião pública e o seu consentimento tácito neste conflito.
Do lado oeste, documentar em tempos real a situação nunca foi tarefa para qualquer um, uma vez que era demasiado perigoso, e para além disso as informações não saíam da Síria. Fazer um “live Facebook” ou publicar uma reportagem mostrando os lugares dos ataques permitia-lhes precisar, reajustar os disparos e de visar as zonas densas. Num duplo discurso e na sua própria cadeia de televisão, aqui na Síria, “Free Syrian Army ***”, por um lado falavam de uma suposta libertação da população, e, por outro lado, apresentavam os ataques como punições, e a nós como “infiéis vivendo do lado de Bashar Al-Assad”. Este canal de televisão é acessível a qualquer pessoa aqui. Do lado da libertação, as reportagens dos russos e os testemunhos dos sírios sob ocupação terrorista foram imediatamente classificadas como propaganda, de maneira a descredibilizar tudo o que poderia emergir da própria Síria, daqueles que nela viviam ou que estavam no terreno.
Este ano que passou foi verdadeiramente o da desinformação.
Um combate pela “liberdade” do povo sírio. Nós utilizamos esta palavra para tudo sem jamais a ter argumentado ou justificado. Que liberdade? Que povo sírio? Destruir o governo, sufocar o país com sanções para lá levar o quê? O nosso bom savoir-faire democrático? Colocaram os franceses a questão de saber qual seria o programa do “após”? Não! A liberdade, ponto. Fácil. O programa político e social destes grupos terroristas está em oposição com a liberdade, a democracia, os nossos valores ou aqueles da maioria dos países do mundo. É em nome dos nossos interesses, não em nome da liberdade, que instrumentalizamos estes grupos que apelam à criação de um Estado Islâmico na Síria. Não se perguntem, então, o que eles contam oferecer ao povo sírio, perguntem-se antes o que eles lhe pretendem roubar e impor. Todos os civis com os quais me deparo no meu quotidiano recusam imaginar esta opinião por um só instante, aqueles que dela fugiram tentam esquecê-la.
Senhor Presidente, nós temos, como outros numerosos países, uma grande responsabilidade nesta guerra que tentámos conduzir ao seu termo, termo subentendido como a capitulação do governo sírio a todo o custo. Estes últimos anos, ao lado de muitos outros países, participámos na destruição da Síria, um país em grande parte francófono e no qual o povo adora a França, numerosos são aqueles que falam francês. Ainda que o seu governo seja imperfeito e quaisquer que sejam os seus erros, e os nossos ao cabo dos tempos, nós suportamos atualmente a instauração de uma ditadura, uma verdadeira ditadura num país onde uma verdadeira oposição existe, ao passo que grupos armados são apenas motivados pelo sectarismo, a frustração, o rancor e o ódio. Servirmo-nos de tais grupos para concretizar os objetivos geopolíticos ou económicos não tem nada de democrático, pelo contrário condenamos os sírios. Tendo percorrido o país, pude constatar que, não obstante certas críticas e o que quer que seja que dizem de tal, a vasta maioria dos sírios suporta honestamente e sinceramente o seu governo e suporta aquele que chama de presidente, e não de ditador, Bashar al-Assad.
Eu concebo esta mensagem como um dever. Eu sou um humanitarista e criei a minha própria organização não-governamental, não religiosa, que se autofinanciou até agora. Eu vivo numa zona de guerra, pago o preço de tal e passo pelos riscos necessários para ajudar modestamente os civis. Transmitir a realidade aqui mereceu-me ataques dos media mainstream e dos seus partidaristas que me tentam fazer ocultar, indo ao ponto de me designar como alvo. Eu estou ainda sob mais risco ao assumir a responsabilidade de escrever esta carta, cujo peso e responsabilidade eu medi para denunciar uma situação que observei todos os dias ao levar ainda mais longe a minha investigação. Não tenho nada a ganhar nem nenhum interesse pessoal, eu assumo os riscos desde há vários meses para combater o terrorismo através da transmissão da verdade, da realidade do que se vive entre os sírios daqui, do que eles testemunham, ao denunciar os grupos jihadistas e a manipulação mediática arrancando todos os dias vida das pessoas.
Exigimos ao povo sírio que, ao invés de desejar para o seu país que se fale em seu nome, de lhe roubar a voz, as liberdades, o seu presente, o seu futuro. É o povo sírio que deve decidir o seu futuro e não nós que devemos decidir por eles. É uma forma de ditadura ainda mais terrível que a nossa ilegítima ingerência até lá. A democracia começa por si própria, além da nossa responsabilidade no que diz respeito aos sírios, sendo tempo de consultar o povo francês acerca da sua vontade de implicação neste conflito, visto o perigo que tal representa para a segurança presente e futura.
Convoco a minha França, o país que eu amo e no qual cresci, a deixa de condenar a população e de encorajar grupos terroristas que já atingem as nossas famílias, as nossas crianças, os nossos cidadãos, quaisquer que sejam os interesses económicos e geopolíticos em jogo. Não podemos tomar partido, nem suportar, grupos armados que conduzem uma revolução para retornar à idade do obscurantismo.
Senhor Presidente, a quem de direito ou de coração, lanço um apelo à França, da qual partem os valores com que cresci e que me incitam a perseverar na minha ação quotidiana aqui, para levantar as sanções contra a Síria que penalizam antes toda a população e não o governo, para encontrar soluções diplomáticas alternativas a esta guerra em favor da paz, tanto pelo povo sírio como pelo povo francês que arrisca sofrer as consequências dos nossos envolvimentos em favor de grupos que semeiam o terror e cujas ambições são claramente internacionais.
Em vos desejando muita coragem, Senhor Presidente, assim como ao que lhe sucederá, vos peço que aceite a expressão dos meus melhores sentimentos.
CONTINUA
Pierre Le Corf
(Traduzido por Ricardo Lopes)
(versão original em francês aqui)