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Pensamentos Nómadas

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Carta ao presidente François Hollande sobre o conflito sírio - parte 1, por Pierre Le Corf

24.01.17 | Luís Garcia
 
 

 

Carta ao presidente François Hollande

 

Pierre Le Corf  SOCIEDADE POLÍTICA 

 

NOTA: Artigo publicado com a autorização de Pierre Le Corf. O primeiro de muitos, esperamos!

 

Pierre Le Corf  Trabalhador humanitário francês  residente em Alepo, Síria.

Associação We are superheroes

 

Carta também entregue pessoalmente ao presidente.

Sr. Presidente da República francesa François Hollande

Cópia para os candidatos à eleição presidencial.

 

Sr. Presidente,

 

Hoje ponho em questão os valores com os quais eu cresci, os valores de um país que eu amo, o meu país, a França. Dirijo-me a si enquanto cidadão francês que chegou à cerca de um ano em território sírio, sem ideias preconcebidas,  na qualidade de humanitário politicamente neutro, vivendo em Alepo Ocidental, agora de novo chamada Alepo. Não é algo fácil de realizar, não só porque eu sou o único francês habitando aqui, o que me coloca na linha de fogo com o meu testemunho em contra-corrente, como também pela dificuldade em testemunhar o que aqui vivemos, horrores por vezes impossíveis de descrever. Sou testemunha de um massacre e de uma situação humanitária catastrófica cujos actores e patrocinadores, por apoiar o terrorismo, somos nós próprios. Dedico esta mensagem a vós e a todas as pessoas susceptíveis de tomar decisões que façam da paz e dos civis as suas prioridades.

 

Todos os dias tive de confrontar-me com a morte, como todos nesta cidade,  e, a missão de que me encarreguei a mim próprio, levou-me a visitar famílias que viviam lado a lado com aqueles que descrevemos como "oposição" desde o início do conflito. Pessoalmente, em todas as linhas da frente, mais não vi que bandeiras negras, com os símbolos identificativos dos grupos que combatemos há anos em França, e tenho fotografias para o comprovar.

 

Hoje em dia a população está unida, não para lutar contra o governo, mas sim para combater os grupos terroristas, independentemente dos títulos que pudermos lhes atribuir para "moderar" as suas acções e a sua razão de existir. Estes grupos terroristas autodenominam-se por al-Jaich al-Hour (Exército de Libertação Sírio ou ELS), Jabhat al-Nusra (também chamado Fatah al-Sham, um ramo da al-Qaeda), Jaich al-Islam, Harakat Nour al-Din al-Zenki, Brigada Sultan Mourad, etc. É verdade que existe oposição anti-governamental como é o caso para qualquer outro governo, uma oposição mais ou menos pacífica, mas esta é deveras minoritária. Desde o início até hoje, a quase totalidade das forças envolvidas, e que continuam combatendo em Alepo, são os combatentes armados pertencentes a grupos terroristas dispostos a fazer de tudo.

 

Eu utilizo o termo “terrorista” porque não existem rebeldes em Alepo nem nada  que permita os considerar enquanto tal. É irresponsável continuar a jogar comas palavras e a optar por os denominar de “rebeldes” na Síria, enquanto que em França catalogamo-los na lista de organizações terroristas. Os combatentes foram evacuados na posse das suas armas pessoais, por acordo com o governo, e partiram “todos” rumo a Idlib, a qual é quase exclusivamente controlada por vários grupos armados e suas famílias. Lamentavelmente, muitos deles voltaram aos arredores de Alepo e reiniciaram os ataques suicidas e os bombardeamentos sobre civis, tal como fazem no resto da Síria.

 

Tudo aquilo que afirmo, estou em condições de o provar. Todos os dias me ocupo, desde há meses, e em função do que a guerra me permite, a recolher testemunhos filmados ou escritos de civis, independentemente da sua religião ou opinião política, e sem a presença de militares ou membros do governo. São testemunhos que publico, e que por vezes envio a uma comissão de investigação da ONU encarregada de analisar os crimes da “oposição”, num esforço de tentar metê-la em contacto com as testemunhas.

 

Houve uma focalização da opinião pública sobre os bombardeamentos de zonas minoritariamente oponentes e maioritariamente terroristas, nas quais todos os dias morriam civis, sem nunca se informar que a maioria dos civies de Alepo Leste não podiam sair por culpa dos combatentes. Foi por tentarem sair pelos corredores humanitários recentemente organizados pelos russos e pelos sírios (corredores esses indicados com 1 a 2 dias de avanço, com as horas de abertura, através do envio de SMS a todos os proprietários de telemóveis com uma conta nas redes  sírias MTN ou SYRIATEL, como é o meu caso) que inúmeros civis foram abatidos, numa tentativa de fuga interdita pelos grupos armados. Felizmente, milhares de civis conseguiram escapar usando caminhos alternativos, parte deste em zonas minadas.

 

Raros foram os media que informaram que os civis eram usados como escudos humanos, facto este confirmado pelos testemunhos. Optaram quase sempre por descrevê-los como vítimas do fogo cruzado entre combatentes revolucionários e governo, governo este que defendia o seu povo contra os terroristas cuja maioria são mercenários estrangeiros que entraram na Síria fortemente armados, fanáticos para os quais a vida humana pouco ou nada vale. Tomando por exemplo Alepo, estes vieram invadir a cidade e as suas zonas periféricas, bombardeando diariamente a população da zona oeste, e outorgando a si próprios o direito de assassinar civis da zona leste pela mais ínfima razão.

 

Os grupos terroristas presentes no terreno nunca mostraram a sua suposta “moderação” face à população. Constatei como os meus próprios olhos que os terroristas possuem armas e munições de vários países, muitas destas de fabrico francês, norte-americano,  inglês, saudita, etc., armas, estas utilizadas diariamente contra aspopulações civis da cidade, quer por grupos reconhecidamente terroristas, que por grupos agrupados sob a bandeira do suposto Exército de Libertação Sírio, na sua maioria constituídos por terroristas que nós tentamos fazer passar por combatentes pela liberdade.

 

Estes atiravam sobre a zona oeste a partir de  zonas mais densamente povoadas de leste, por vezes até de hospitais, de forma a limitar os tiros de resposta. Tal não impediu contudo que houvessem combates entre os grupos armados e as Forças Armadas Sírias. Eu tenho testemunhos que recolhi de civis de leste que sobreviveram a estes combates, dos quais eu me ocupo, assim como outras organizações internacionais aqui presentes o fazem. Alepo Leste contava com 120.000 pessoas encurraladas entre os combates (das quais 15.000 a 20.000 eram combatentes), incluindo em grande parte inúmeras famílias que haviam recusado abandonar as suas casas por medo que estas fossem ocupadas, destruídas ou pilhadas. Na Síria poucos são os que vivem em casas arrendadas. Leva muito tempo a uma pessoa tornar-se dona da sua casa, mas é uma questão cultural, visto que a casa é o símbolo da família. O ponto essencial é que ocultámos uma realidade, a realidade de 1.300.000 de sírios de todas as confissões vivendo na parte ocidental e que tentavam, apesar da morte omnipresente, de manter em funcionamento as suas instituições e enviar os seus filhos à escola e à universidade. Nós, por razões políticas, apagámos a sua existência, devido ao facto destes viverem numa zona controlada pelo governo sírio. Ao fazê-lo, ocultámos um número de pessoas 10 vezes maior que o de Alepo Leste, e, nos 2 casos, fizemo-lo em nome de uma minoria que luta apenas pelos seus próprios interesses.

 

Não houve um único dia em que não tenhamos sido vítimas de tiros de snipers ou de ataques com morteiros, balas explosivas, roquetes de verdade, botijas de gás ou aquecedores de água transformados em roquetes, etc., sobre ruas, casas, hospitais e escolas. Não houve um único dia em que não tenham morrido dezenas de pessoas, ou que feridos não fossem evacuados em estado crítico para hospitais sobrepovoados devido aos contínuos ataques, isto numa cidade onde não estavam presentes militares, com a excepção de alguns checkpoints; o exército e as milícias as linhas de frente. Todos os dias, adultos, crianças, famílias foram mutiladas por todo o tipo de projécteis. Se me exprimo enquanto sírio, é por ter sido quotidianamente confrontado com esta guerra. Tenho a sorte de ainda estar vivo pois Alepo era um verdadeiro campo de batalha, os roquetes chegam sem avisar. Sendo assistente de primeiros socorros, tentei salvar vidas, por vezes sem sucesso, as vítimas apareciam com pernas, braços e outras parte do corpo arrancadas, queimadas ou até derretidas... Não tenham palavras para descrever o que estas pessoas sofreram aqui, é demasiado difícil de partilhá-lo, vi demasiada gente morrer, e a cada dia perguntávamo-nos se iríamos nós mesmos sobreviver.

 

Encontrei-me inúmeras vezes com civis realojados pelo interior do país. Os seus testemunhos são unânimes. Em Alepo Leste reinava a lei da xaria reinava através dos “tribunais islâmicos” sumários constituídos por combatentes e Xeiques que, pelo decreto de fátuas (decretos religiosos), aplicavam a prisão, a tortura, o casamento de crianças e a execução de quem bem entendessem. Depois da libertação de Alepo Leste descobriu-se tambémque os terroristas dispunham de uma enorme quantidade de comida armazenada. Eu vi montes de kits de ajuda humanitária suficientes para resistira um ano de cerco. As famílias testemunham sobre a impossibilidade de usufruírem destes bens e sobre a fome vivida devido também ao cerco imposto pelo exército, mas sobretudo devido ao monopólio dos preços ou trocas proibitivas praticados pelos grupos armadas e que iam até 50 vezes o preço normal. Aqueles que aceitavam lutar junto aos grupos armados eram beneficiados. No entanto, tal como me contaram recentemente alguns dos seus simpatizantes que ficaram em Alepo Leste: “Nós não gostamos deste governo mas, se alguém critica os combatentes do ELS ou de outros grupos, eles matam-nos. Onde está a liberdade?”.

 

Infra-estruturas, hospitais, escolas eram parcialmente utilizadas por estes grupos como quartéis generais que serviam também de prisões e de armazéns de armas. Numa dessas escolas pude constatar que fabricavam armas químicas usando produtos importados de diferentes países. E, neste último mês, na sequência dos combates mais violentos, assisti à chegada de feridos cuja pele ardia, literalmente, devido ao cloro. A Leste, os hospitais tratavam sobretudo os combatentes e suas famílias, ou aqueles que pudessem pagar. Também aí, depois da libertação, vi com os meus próprios olhos toneladas de medicamentos e hospitais que permaneciam ainda assim em funções, apesar da destruição parcial, os mesmos hospitais que por diversas vezes haviam sido anunciados “completamente destruídos”.

 

Os Capacetes Brancos (White Helmets), financiados pelo governo francês e outros governos, e que nós recebemos no Eliseu, em grande parte, prestam ajuda humanitária de dia, e de noite são terroristas, e vice-versa. Estes estão intimamente ligados à Jabhat al-Nusra (al-Qaeda), como provam os documentos encontrados após a sua partida e como testemunham os habitantes.

 

 CONTINUA

Pierre Le Corf

(Traduzido por Luís Garcia)

(versão original em francês aqui)

 
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