Camionistas romenos, padroeiros dos viajantes à boleia I
BOLEIAS – EPISÓDIO 2
Esta insatisfação, não consigo compreender, sempre esta sensação, que estou a perder. Tenho pressa de sair, quero sentir ao chegar, Vontade de partir, p’ra outro lugar. (Estou Além, António Variações)
CAMIONISTAS ROMENOS, PADROEIROS DOS VIAJANTES À BOLEIA (França, Itália, 2007) – Poucos minutos depois de começarmos a procurar por motoristas no parque de estacionamento, encontrámos um natural da Roménia que se encontrava em vias de partir para Espanha passando por Lyon e que, timidamente, aceitou nos dar boleia até ao sul de França.
Durante o percurso, com tempo e paciência, usando eu os meus limitados conhecimentos de romeno (aprendido com amigos Erasmus romenos na universidade) e ele (o condutor) o seu espanhol também bastante limitado, conseguimos perceber que o camionista romeno trabalhava desde há muito para uma companhia espanhola porque, executando rigorosamente a mesma tarefa – conduzir camiões pela Europa fora -, desta forma ganhava um salário bem melhor que o que ganharia trabalhando para uma empresa romena.
Entre muitas outras conversas veio finalmente o “porquê” de nós termos como destino o sul de França. Mal entendido, não era esse o nosso destino final explicámos nós, a razão era antes de reentrar na rota em direcção a leste, rumo à Roménia, ao que ele reage dando-nos uma ideia genial em forma de pergunta: “por que não tomam vocês atenção às matrículas dos camiões passando na estrada e assim que avistarem um camião italiano pedem-lhe boleia em andamento, enquanto eu o ultrapasso?”. Ah, genial, assim fizemos nós! Menos de cinco minutos depois avistámos uma matrícula italiana, apressadamente escrevemos “Milano?” em letras garrafais numa folha em branco e encostámo-la ao vidro da janela no momento da ultrapassagem propositadamente demorada. O condutor do camião de matrícula italiana, muito sorridente, fez um sinal de “ok” seguindo de várias sinaléticas que nós interpretámos (bem) como sendo um convite para parar na próxima estação de serviço. Antes de estacionar na estação de serviço pedimos ao camionista romeno que assegurasse em conversa com o outro camionista que nós éramos “muito bons rapazes”, de forma a garantir-nos a próxima boleia. Entendendo e concordando com o nosso ponto, saiu em primeiro lugar do camião e tomou a iniciativa de ir falar com o seu colega de trabalho. Poucos segundos depois seguimos-lhe em passo inseguro e hesitante, como quem quer ouvir a conversa que muito lhe interessa mas sem querer dar sinal de presença. Ah, para nosso espanto, não só eram colegas de trabalho com também eram compatriotas alegremente falando sobre os “viajantes malucos” em bom romeno! Estava garantida a boleia!
Chamava-se Ionica (lê-se Iónitsa), o senhor que nos oferecia uma boleia possivelmente para além de Milão. Realizar essa distância dependeria do trânsito, em especial nos túneis da fronteira franco-italiana onde frequentemente ocorrem engarrafamentos, pois só conduziria até 23h. A viagem correu bem, passada alegremente a conversar com o afável camionista numa mistura de portunhol, italiano e romeno, enquanto observávamos a incrivelmente bela paisagem repleta de picos e montanhas verdejantes. Atravessámos a fronteira era já noite escura, e parámos no lado italiano para esticar as pernas e beber umas cerveja oferecidas pelo Ionica numa loja onde encontrámos o mais inesperado peluche jamais criado: um boneco cor-de-rosa electrónico em forma de porco que repetia mecanicamente uns provocadores movimentos das ancas ao qual demos o elucidativo nome de Porno Pig:
De volta ao camião fizemo-nos de novo à estrada até alcançarmos a cidade de Parma. Durante este percurso Ionica telefonou a um colega romeno camionista da mesma empresa de transporte italiana e pediu-lhe para vir ter connosco à estação privada exclusiva para camiões nos arredores da cidade. No momento não nos apercebemos do real motivo deste convite, críamos que desejasse apenas ter a companhia de um colega e amigo, mas o seu plano, genial, ia bem mais além: os camiões daquela empresa, muito modernos, tinham duas camas instaladas em cada cabine. Junto os dois camiões haveria quatro camas disponíveis para quatro pessoas, o que para nós significava passar a primeira noite em conforto desde que deixáramos o Fundão há vários dias atrás!
Além do conforto de uma verdadeira cama, fomos presenteados com condições que nos dias de hoje qualquer ocidental considera uma banal necessidade básica mas que para nós naquele momento soavam a verdadeiro luxo: tomar um duche de água quente nas casas de banho ultra-asseadas da estação de camiões privada. Ah, como dormimos bem naquela noite e como acordámos de baterias recarregadas e boa-disposição em quantidade suficiente para enfrentar o grande tédio que inevitavelmente estava programado para esse dia de Sábado.
Por muito absurdo que soe, é um facto (até então por nós desconhecido) que em Itália todos os transportes pesados estão interditos de circular aos fins-de-semana. Estávamos na manhã de um Sábado, numa zona industrial feia, suja e caótica, por tanto imaginem a loucura da situação. Depois do pequeno almoço, a maior excentricidade que arranjámos para no ocupar o tempo foi o convite de Ionica para no juntarmos a ele e irmos num carro ligeiro até aos shoppings da zona procurar uma caixa para guardar bagagem, daquelas que se prendem no tejadilho dos carros. Dizia-nos ele que, embora a sua viatura privada fosse espaçosa, sempre que viajava de férias com a sua mulher e três filhos, “é impossível meter toda a tracalhada que eles sempre insistem em trazer atrás”. Com a nova caixa, o problema “seria resolvido de vez”. Entre loja e loja, o tempo foi passando, assim como se foi gastando a minha paciência e a do Diogo para percorrer incessantemente todos aqueles corredores de shoppings (e logo nós!). Para compor-nos os ânimos, Ionica ia mimando-nos com cafés e gelados e, já depois de ter comprado “a caixa perfeita”, presenteou-nos com um pack de vinte cervejas que trouxemos para a estação e que estavam reservadas exclusivamente para nós visto que nem Ionica nem o seu colega camionista bebiam álcool.
As primeiras foram abertas e bebidas ainda no carro, no percurso de volta à estação de serviço. As seguintes bebêmo-las enquanto fazíamos companhia a Ionica que, sacando da parte lateral do camião uma cozinha digna do substantivo, nos preparou um saboroso prato tradicional romeno com carne de galinha e muitas especiarias. Que requinte de almoço, ainda mais de todo inesperado! Depois de enchermos a barriga e já um pouco bebidos, instalámo-nos na companhia dos dois camionistas nos confortáveis sofás do salão da estação, conversando sobre a Roménia e a nossa aventura, vendo televisão e até passando um pouco pelas brasas. Numa dessas muitas conversas informámos Ionica que um dos nossos destinos principais na Roménia viria a ser Sibiu, cidade que em 2007 tinha sido elegida Capital Europeia da Cultura. Coincidência das coincidências, embora já não lá morando com a sua mulher e filhos, Ionica era natural de Sibiu, cidade que o encantava profundamente e que segundo ele, após a enorme remodelação sofrida para receber os eventos culturais programados para aquele ano, tinha passado de uma imunda cidade de terceiro mundo para “uma das mais limpas cidades da Europa onde até se poderia cozer ovos no chão da praça central de tão imaculado se encontrar”. Exagero que mais adiante na viagem constatámos, mas não deixava de ter razão de ser o seu orgulho pela positiva transformação de Sibiu. Além do mais, deu-nos nesse dia o número de telemóvel da sua “jovem e muito bela sobrinha” que morava ainda na cidade, em casa da sua mãe, e que “falava fluentemente inglês”. Fizemos várias tentativas para a contactar em Sibiu, mas jamais com sucesso. :(
Depois do conforto dos sofás laranja veio a hora da parvalheira, quando fomos para o meio do parque de estacionamento jogar à bola e tirar fotografias acrobáticas de nós mesmos sobre o ligeiro efeito inebriante das muitas cervejas ingeridas. Entretanto juntavam-se a nós outro camionista romeno e a sua esposa grávida e todos juntos, passámos uma alegre tarde e serão de convívio, uma vez mais alimentados por um delicioso jantar preparado pelo nosso quase-pai Ionica.
Na madrugada do dia seguinte (Domingo) decidimos tentar a nossa sorte e pedir boleia a carros ligeiros, visto que não nos apetecia de todo gastar mais um dia da nossa viagem – limitada no tempo – de novo na estação de serviço. Voluntarioso, Ionica levou-nos de carro até à bomba de combustível mais próxima e desejou-nos toda a sorte do mundo, pediu-nos para explorarmos as desconhecidas maravilhas do seu amado país e insistiu que tentássemos entrar em contacto com a sua sobrinha.
Antes de partir, voltou para trás, deu-nos dois fortes abraços notoriamente comovido, tirou uma nota de vinte euros do bolso e disse-nos: “peguem, é para beberem dois cafés na minha bela cidade de Sibiu”!
No parque de estacionamento da estação de combustível esperava-nos uma penosa manhã de humilhação e desespero, mas que acabou por terminar bem...
Luís Garcia, 13.04.2016, Lampang, Tailândia