Bem-vindos ao inferno: a cidade mineira peruana de La Rinconada, por André Vltchek
Imponente perspectiva de La Rinconada: através do lixo - ©AndreVltchek
Decidi viajar até La Rinconada precisamente durante estes dias durante os quais a socialista Venezuela luta pela sua sobrevivência. Dirigi-me até lá ao mesmo tempo que as elites europeias na Bolívia iam tentando difamar o presidente extremamente popular e bem-sucedido da Bolívia, o senhor Evo Morales, à medida que as eleições se iam aproximando.
Como em tantos outros lugares no turbo-capitalista e pró-Ocidente Peru, La Rinconada é um género de tremendo aviso: era assim que a Venezuela e a Bolívia costumavam ser antes de Hugo Chávez e Evo Morales terem aparecido. É a este estado que Washington quer que América Latina inteira volte. Como aquelas monstruosas e sem esperança favelas em torno de Lima, La Rinconada deve ser um apelo às armas.
Há apenas cinco anos atrás, pensávamos que era assim que a América Latina nunca mais deveria se parecer. Pensávamos que sim, antes das forças de extrema-direita de Washington terem conseguido reorganizar e implantar os velhos dogmas da Doutrina Monroe de volta às linhas de frente, contra a independência e o socialismo latino-americanos.
Um motorista recusou-se levar-me até La Rinconada sozinho. Para mim, quanto menos pessoas se envolverem, melhor. Mesmo no Afeganistão, trabalho sempre sozinho, só com o meu motorista pachto em quem deposito a minha total confiança. Mas aqui é diferente, a reputação de La Rinconada diz-nos que "você pode entrar, mas você nunca conseguirá sair". Falam-me da nova máfia que lá opera e da completa deterioração da segurança no local. Acabei por ceder, não tive outra escolha a não ser aceitar uma tripulação de dois homens: um motorista e uma pessoa "familiarizada com a situação relacionada com as minas peruanas.”
Deixamos a cidade de Puno de manhã, passando ao longo das magníficas margens do Lago Titicaca que, com uma elevação 3812 metros, é o lago navegável mais alto do mundo, compartilhado pelo Peru e pela Bolívia.
"Do lado Peruano, o lago está sendo envenenado com mercúrio", explicou-me Freddy, um especialista em mineração. "Ainda estamos longe de La Rinconada e das suas minas de ouro, mas o Rio Ramis está agora trazendo água contaminada proveniente dessa zona, particularmente da cidade mineira de Ananea, directamente para o lago.”
Há uma espécie de auto-estrada entre Puno e Juliaca, um género de "centro de actividade comercial" da região; na realidade, é uma enorme cidade cheia de favelas. A seguir a Juliaca só há miséria rural.
Trabalhei no Peru durante a chamada "Guerra Suja", travada entre duas guerrilhas comunistas (o maoísta Sendero Luminoso e o marxista pró-cubano MRTA ) e o Estado peruano, que terminou oficialmente em 1992. Desde então, a miséria rural do Peru não mudou: as moradias feitas de terra, as caras de desespero dos aldeões e a quase total ausência de serviços sociais permaneceram. Do outro lado da fronteira, na Bolívia socialista, a vida no campo melhora de forma drástica e continua. Mas não aqui, não no Peru. E assim, dezenas de milhares de ansiosos homens vão "subindo", alcançando altitudes enormes, arriscando a vida e arruinando a saúde na esperança remota de encontrarem ouro para escaparem da miséria endémica.
Estava completamente falido. Acabávamos de ter um bebé. Não fazia ideia do que fazer. E então informei a minha família de que ia para La Rinconada. A minha mulher levantou-se e disse: «Se fores, nunca mais voltarás! E se o fizeres, não mais serás o homem que amo. Fica em Puno e trabalha aqui. Eu também irei trabalhar. Acabaremos por arranjar solução». «Não sabes que La Rinconada é uma sentença de morte?» E fiquei. Ela tinha razão. Vi pessoas que foram e voltaram totalmente destruídas.”
Está a ficar frio. O nosso carro sobe, rabugento, com uma suspensão muito danificada, mas sobe ainda assim. Quanto mais alto subimos, mais frio fica. Chove e depois pára.
A vistas é magnífica, mas a área está coberto de lixo. O rio está imundo. Os lamas estão a comer lixo, os carros estão sendo lavados nos rápidos e aldeias inteiras parecem ter sido abandonadas e transformadas em cidades fantasmas.
Depois de mais de quatro horas a conduzir, após alucinantes estradas aos ziguezagues, as primeiras minas aparecem no horizonte. E depois, mais sujidade, maquinaria primitiva e uma cidade mineira: Ananea.
A Sra. Irma, dona de um restaurante local, prepara café forte e folhas de coca embebidas em água quente, o melhor remédio para a doença da altitude. Apercebendo-se que não representamos perigo nenhum, revela-se bem faladora:
Às vezes, mineiros de La Rinconada fogem para aqui. Ananea é um pouco menos elevada e mais segura. Temos água aqui. Lá, está tudo envenenado com mercúrio e outras coisas horríveis. Você conhece o conceito, sabe como eles trabalham lá em cima: durante 29 dias trabalham de graça e, por fim, durante um dia por mês, são autorizados a ficar com tudo o que encontrarem. É uma lotaria: se tiverem sorte, ficam ricos nesse mesmo dia. Senão, encontram muito pouco ou nada. E mesmo que encontrem algo, à noite, podem ser assaltados.”
Soa a uma pessoa velha e maternal, cheia de compaixão e preocupada. Ao que parece, já viu de tudo.
Pagamos e voltamos à estrada.
Então, por fim, avistamos os enormes lagos amarelados, acastanhados, com correntes vindo da superfície. Longas mangueiras azuis. Tudo se encontra destruído e envenenado. Freddy diz-me que existem algumas novas tecnologias que poderiam ser usadas para extrair ouro, mas os mineiros aqui usam mercúrio, visto ser mais barato. Primitivo equipamento é utilizado, como ocorre na ilha indonésia de Kalimantan/Bornéu; lá, a mineração ilegal está envenenando poderosos rios: aqui, está arrasando montanhas inteiras, criando grandes lagos e paisagens lunares a cerca de 5.000 metros de altitude.
Como é óbvio, os seguranças mostram-se descontentes com a nossa presença. Ainda assim, consigo filmar e fotografar, e depois conduzimos ainda mais para cima.
Começam a aparecer os montes de lixo. Por detrás deles, duas montanhas enormes cobertas de neve. E um irónico sinal em metal: "bem-vindo a La Rinconada, não deite lixo para o chão.”
Montanhas e vales encontram-se pontilhados com barracas de metal, feitas de estruturas improvisadas. A porcaria está por todo o lado. Não há abastecimento de água. A electricidade é escassa. O lixo cobre inclusive as humildes sepulturas de um cemitério local.
Na praça principal, muita gente bebendo à grande. É perigoso fotografar aqui. Eu escondo-me, uso o zoom. Há dois mineiros bêbedos deitados de barriga para baixo e há uma pessoa metendo comida nas suas bocas abertas, como se estivesse a alimentar animais num jardim zoológico.
A prostituição dispara. Crianças andam realizando trabalhos improváveis. Num dos caixotes do lixo, pergunto a duas jovens as suas idades.
"25", respondem-me prontamente. Apostaria 15, no máximo. Mas têm as caras tapadas.
"Quão perigoso é este lugar?", pergunto a um dos mineiros.
De pronto responde: "Muito perigoso, mas não temos outra opção".
"Há quem se magoe trabalhando? Há quem morra?”
“Claro. E acontece com muita frequência. Todos nós corremos riscos. Algumas pessoas sofrem ferimentos horríveis, outras morrem. Se não se consegue tratá-los aqui, são levados para Ananeo e, com sorte, para um hospital em Juliaca. Outros são deixados aqui para morrer. É a vida. Alguns são salvos, outros não.”
Será que culpam o capitalismo, o extremista e selvagem sistema pró-mercado, adoptado pelo seu país?
Oiço sempre a mesma fatalista resposta: "É a vida".
Tudo o que sabem é que mal iam sobrevivendo no altiplano, e que estão aqui, em La Rinconada, para lutar pelas suas vidas.
"Não é só mercúrio", disseram-me. "Tudo aqui se encontra misturado: venenos relacionados com a mineração, urina, merda, resíduos urbanos…”
A altitude atingi-me com dureza. 4 mil em Puno é mau, mais de 5 mil aqui é fatal. Duas pessoas seguram-me enquanto filmo à beira de uma ravina, para não cair.
De uma certa forma, dou-me conta de que as vistas à minha volta são lindas, deslumbrantes. Estou impressionado. Impressionado com a capacidade dos seres humanos para sobreviver em quase todas as condições.
As pessoas não ganham nada, quase nada. Um mineiro ganha entre 800 a 1.000 solas (entre 250 a 300 dólares) por mês. As empresas privadas e o governo corrupto ganham milhares de milhões. Mais uma vez, a América Latina está empobrecendo. Mas o Ocidente não pressiona para uma "mudança de regime" no Peru, ou no Paraguai, ou no Brasil. É assim que deve ser. É assim que Washington gosta.
Um outro mineiro ousa dizer-me
A maior parte do ouro vai para o estrangeiro. Mas, antes disso..., se os gangues não nos roubam a nós, mineiros, muitas vezes, à noite, matam os pequenos intermediários, aqueles que nos compram o ouro directamente.”
Terá ele medo?
"Toda a gente tem medo", confirma-me ele. "Assustada e adoecida. Isto é o inferno".
"É como uma guerra...", digo eu.
"É uma guerra", responde ele.
Mas quase ninguém aqui vem para investigar e denunciar o que aqui se passa. A vida de um pobre peruano não vale nada, absolutamente nada.
Enquanto trabalho, sinto que o inferno está perto, aqui mesmo. Não é abstracto, religioso. É real. Mas podia e deveria ser erradicado.
André Vltchek
Traduzido para o português por Luís Garcia
Versão original em inglês na RT.
André Vltchek é um filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu e cobre guerras e conflitos em dezenas de países. Três dos seus últimos livros são Revolutionary Optimism, Western Nihilism, o revolucionário romance Aurora e um trabalho best-seller de análise política: “Exposing Lies Of The Empire”. Em português, Vltchek vem de publicar o livro Por Lula: O Brasil de Bolsonaro - O Novo Tubarão Num Mar Infestado de Tubarões. Veja os seus outros livros aqui. Assista ao Rwanda Gambit, o seu documentário inovador sobre o Ruanda e a República Democrática do Congo, assim como ao seu filme/diálogo com Noam Chomsky On Western Terrorism. Pode contactar André Vltchek através do seu site ou da sua conta no Twitter.
Fotos do artigo por: André Vltchek
Leia também:
(Traduzido por Luís Garcia)