Animalismo
Para quem se diz humanista, querer encarcerar-se num bloco maciço cultural começa desde logo por ser contraditório. Lá porque não é o seu prisma, não significa que alguém não se possa adaptar ou até mesmo integrar algo de culturas alheias na cultura própria. Nenhuma cultura alguma vez foi um sistema fechado. Ao longo da história, todas as culturas foram sendo subtilmente influenciadas, também, pelos povos com os quais estabeleceram relações, fossem elas de que cariz fossem.
Mas enfim, como eu já disse outras vezes, essa ideia que a mim me parece peregrina de se deixar submeter, acriticamente e na sua totalidade, a uma cultura apenas porque se tem a sorte ou o azar de se nascer numa determinada localização geográfica, com uma determinada cultura vigente, é renunciar a algo da essência humana - a racionalidade e o espírito crítico. A cultura não é algo estanque. Tornar ou tomar a cultura como algo estanque seria um holocausto intelectual do ser humano.
Uma abordagem animalista pode adaptar e integrar o humanismo na sua ideologia e praticá-lo segundo um outro prisma, que até faz uma aproximação mais fiel do homem ao seu estado natural básico.
Há quem até desenvolva uma espécie de teologia cultural. Chamo-lhe teologia, porque é uma confusão de conceitos emaranhados, subvertidos e inventados, apenas para tentar florear uma cartilha que ostentam como estandarte para distrair as massas da própria acefalia. Já discuti com tipo que me diziam que nenhum humanista sério se atreveria a negar a criação de um produto artístico e enraizado na cultura dos homens, seja ele qual for. Que um humanista não põe em causa culturas, respeita-as sem no entanto ser obrigado a envolver-se noutra que não a do seu povo, que se o fizesse estaria a cometer um pecado identitário, o da aculturação. Ora, isto é claramente um mero jogo de palavras sem qualquer valor intelectual.
Ninguém é obrigado a submeter-se acrítica e passivamente a um paradigma cultural. A cultura vai evoluindo com um processo longo e contínuo. É um dever para com a nossa individualidade pronunciar-se e lutar contra algo que considera injusto, independentemente de estar salvaguardado na lei ou enraizado na cultura. Não o fazer é suicidar-se intelectualmente e renegar algo que nos torna únicos no reino animal e nos permite desenvolver enquanto pessoas: o espírito crítico, a racionalidade e o inconformismo. E mais uma vez xenofobia. Eu não tenho que tomar apenas contacto com o que possa ser culturalmente integrante de uma cultura que me foi imposta arbitrariamente, e muito menos tenho que me negar a integrar valores de culturas completamente distintas, se os considerar compatíveis e coerentes com a minha visão do mundo. Isso é fechar a mente a cadeado.
A história da humanidade não é uma história de estancamento cultural. É antes uma história de uma complexa partilha, permuta e interrelação de fenómenos culturais distintos, renunciados, desprezados, adaptados, readaptados e integrados de acordo com a necessidade ou mediante fenómenos de consciencialização intelectual, por meio de diversas correntes altamente influentes, derivadas de um coletivo ou de entidades individuais cujas teorias foram sendo aplicadas social e culturalmente.
O animalismo considera também o ser humano e integra-o de uma forma holística num sistema do qual é interdependente e que dá base à sua existência.
O ser humano não é uma entidade metafísica, nem integra algum fenómeno que está além do material e/ou natural.
Ao perspetivar o animal humano do seu ponto de vista natural, integrado num organismo mais amplo, que houve quem designasse de Gaia, o animalismo, no qual o veganismo está incluído, abarca também a preocupação com o meio ambiente. Uma questão a superar por via da ciência e sua concretização tecnológica, produtos do intelecto humano absolutamente necessários ao seu desenvolvimento enquanto ser racional e integrado num ambiente natural e cultural sustentável.
É uma ideologia que procura situar novamente o homem no seu plano natural, eximindo-o de qualquer tendência metafísica ou divina. Ora, a problemática animal é uma problemática humana porque tem que ver diretamente com a sobrevivência natural do homem, a exploração desenfreada de recursos naturais, sejam eles animados ou inanimados. Além do mais, tudo o que procure respeitar a integridade do ser humano em todas as suas dimensões, não descura a integridade psicológica e mental, nem a sua defesa científica com base em dados comprovados empiricamente, sendo a ciência um produto do intelecto humano e, portanto, sendo também visada pelo humanismo. Se está mais do que provado que a exposição a maus-tratos de animais é um fator de risco major para o desenvolvimento de distúrbios comportamentais, onde é que está a dúvida de que procurar eliminar práticas que contemplem tal do panorama cultural também é uma ação humanista?
Além do mais, quando o ser humano é reinserido na sua condição natural como animal o que é animalismo ganha validade no seu respeito pela expressão natural plena de si próprio e dos restantes seres. Claro que isso em tempos pode ter tido como resultado conflitos, quando o homem estava mais exposto aos fatores naturais e tinha que sobreviver à custa do confronto direto com outros animais, mas isso não tinha nada de bem ou de mal por ser exclusivamente natural, assim como não tem nada de bem ou de mal o facto de um leão matar um bovino ou dois animais da mesma espécie lutarem até à morte para procriar. A única coisa que pode ser considerada como "mal" é tudo o que seja anti-natural, como a criação e exploração animal em ambiente artificial. Quem diz gostar verdadeiramente de animais não pode compactuar com tal.
O homem é um produto da evolução natural, mas nem por ser dotado de um intelecto mais complexo significa que esteja de alguma forma transcendentalmente acima dos restantes animais. Está ao mesmo nível e isso é que é humanizá-lo, não é colocando-o num patamar de tal forma cimeiro que já quase parece um semi-deus ridiculamente ficcionado. Tudo o que seja metafísico é avesso à condição humana e uma desdignificação e desvirtuação da sua condição.
E as definições são o que são, vão surgindo, modificando-se, adaptando-se, readaptando-se, muitas vezes até variam consideravelmente de escola para escola e são sempre um produto único da interpretação individual. Eu não tenho que aceitar acriticamente uma ideia ou uma definição apenas porque me soa bem. Tal condição seria um fator de estagnação do conhecimento humano.”
Ricardo Lopes