Agarrem que é polícia 2
CASOS DE POLÍCIA – EPISÓDIO 3
AGARREM QUE É POLÍCIA 2 (Moldávia e Ucrânia, 2008) – Num espaço de poucos dias foram várias as peripécias que eu e o Diogo passámos na Moldávia e na Ucrânia, fruto do comportamento corrupto das forças policiais desses dois países de leste. Escolhi duas das melhores para vos contar. Em Kharkiv, na companhia do nosso hóspede couchsurfer Evgeniy e um seu amigo, fomos visitar uma muito insólita atracção turística da cidade: As Piscinas Inacabadas. As obras do complexo desportivo iniciaram nos anos 80 mas tiveram de ser interrompidas devido à falta de fundos resultante da enorme catrástrofe económica da época, e nunca mais foram retomadas. Hoje, rodeada por uma densa vegetação e graças à sua grande elevação, a estrutura inacabada é o local perfeito para se obter uma vista panorâmica de Kharkiv e ao mesmo tempo estar-se afastado dos seus frenéticos novo-riquinhos que se passeiam pela cidade ostentando as suas fortunas e espezinhando quem as não tem. Local perfeito, portanto, para uma pessoa se abstrair dessa nova Ucrânia ultra-superficial e refém do recém-chegado capitalismo selvagem, e apreciar a companhia de dois genuínos ucranianos que tão calorosamente nos acolhiam por uns dias na cidade.
Seguindo um convite dos nossos novos amigos ucranianos, comprámos uma garrafa de Becherovka e um queijo “especial” que se deve ser ingerir como acompanhamento da referida bebida checa. Depois de uma desafiadora escalada da estrutura simultaneamente inacabada e em ruínas, chegámos os quatro ao topo das bancadas onde passámos uma divertida tarde descobrindo que de facto quando se bebe Becherovka, se tem fome daquele queijo “especial”, e vice-versa ao quadrado. Melhor assim! Foi uma bela tarde de comportamento extravagante e de aprendizagem sobre a realidade social e económica do pais que os dois ucranianos tão bem souberam nos explicar… Também um tarde de inconsciente aventura ao bom estilo de leste, na qual dois portugueses e dois ucranianos feitos crianças sob o efeito dos éteres de Baco se divertiram com façanhas um pouco perigosas, como passar de uma bancada para outra com o o espaço entre elas ainda por construir! Para estragar a festa, apareceram dois policias ucranianos tão ou mais embriagados que nós, e claro, vinham mendigar dólares aos estrangeiros, queriam uns 50 ou 100! Felizmente tínhamos dois ucranianos para argumentarem em nossa defesa, livrando a mim e ao Diogo dessa mais uma tentativa de extorsão policial sem sequer termos aberto a boca. Imaginem se naquele estado nos víssemos obrigados a negociar em ucraniano!
Duas semanas antes tínhamos também sido alvos de uma tentativa de extorsão por parte de um polícia moldavo em Chisinau, capital do país. Dessa vez foi mais complicado pois não tivemos ajuda alguma das gentes locais.
Andávamos, eu e o Diogo, inocentemente passeando nas redondezas da entrada da estação de comboios, tirando fotografias e fazendo piadas sobre o caos urbano quando, vindo do nada, um carro de polícia roubado de um museu estacionou quase encima de nós. Da viatura saiu uma versão moldava de Arnold Schwarzenegger, medindo bem uns 2 metros, e empunhando uma inevitável… Kalashnikov, Sim, uma dessas! Começou por abordar-nos sorrindo, à mafioso, mostrando com intenção os seus dentes de ouro encravados nas zonas laterais da sua boca. Numa mistura de ucraniano, russo e romeno começou a conversa pedindo-nos para ver os nossos passaportes. Ao não encontrar vistos de entrada nos passaportes avisou-nos, em tom ameaçador, que nos encontrávamos ilegalmente no país e que as opções seriam pagar 200 dólares ou acompanhá-lo à esquadra (originalíssimo o discurso!). Explicámos pacientemente que a razão de não termos vistos se devia ao facto de cidadãos da UE NÃO precisarem de os ter! Como o Schwarzenegger não acreditava ou fingia não acreditar, convidámo-lo (com um toque de ironia) a telefonar para o chefe da esquadra e informar-se acerca das leis do seu próprio país. Depois de hesitar lá pegou no rádio do carro e falou para o microfone do aparelho, mas dúvido que tenha falado com alguém. É que, tal como o outro desfazmierda, também este não nascera com queda para a representação.
Finda a conversa virtual durante a qual deve ter puxado ao máximo pelo seu processador mental na busca de outra desculpa absurda para nos extorquir dinheiro, voltou a aproximar-se de nós com cara de poucos amigos. Desta vez queria o “comprovativo de hotel” que “deveria andar junto ao passaporte”. Dissémos-lhe que não fazíamos a mínima ideia do que estava a falar. Ele quase esfregando as mãos de contentamento responde infantilmente “ah, pois então, ou 200 dólares, ou esquadra, a escolha é vossa!”, acentuando perversamente a palavra “esquadra” fazendo desse modo subentender-se com claridade a ameaça de agressão física plausível e guardada para esse local. Expliquei-lhe o óbvio, que hóteis não passam comprovativos para anexar a passaportes mas que, em contrapartida, fazem check-in’s nos quais clientes estrangeiros apresentam os seus passaportes, dos quais são copiados dados pessoais, e a seguir aos quais se costuma deixar uma assinatura conforme a do passaporte. Como não estávamos longe do hotel, convidei-o a seguir-nos e vir confirmar que falámos a verdade e que tínhamos de facto uma residência oficial no país, ao contrário do que afirmava ele. Não quis, recusou sair dali e piorou o tom. Falava bruscamente, denotava estar a perder a paciência. Para compor a situação que se tornava cada vez mais séria tentámos sorrateiramente pedir ajuda (em romeno) a transeuntes que passavam perto do evento mas, (in)convenientemente, na capital de um país em que 90% da população tem como língua materna o romeno, todos aqueles de passagem que abordámos respondiam assustados que não falavam romeno e apressavam aflitivamente os seus passos. Pudera, por que raio se haviam de meter com Schwarzeneggers corruptos e ladrões?
Felizmente para nós e muito infelizmente para ele, um jovem francês que conhecêramos no hotel reconheceu-nos e veio nos cumprimentar todo sorridente, inocente, não se apercebendo que estávamos ali semi-raptados pelo brutamontes fardado. Ora, esse mesmo, qual quão de caça esfomeado perante um nova presa aparentemente mais lenta (no caso mais ingénuo), pede-lhe de imediato o passaporte. Erro crasso do francês, tinha deixado o passaporte no hotel “para não correr o risco de perdê-lo”! Com a lei do lado dele (um estrangeiro na Moldávia é obrigado a andar na posse de um passaporte válido), o polícia, esqueceu-se completamente de mim e do Diogo, mandou o francês entrar na viatura e partiram os dois. Sem mais…
Dias antes, no hotel, o francês tínha-nos contado a cruel aventura que passara semanas antes na fronteira entre a Moldávia e a sua região separatista da Transnístria (com a qual se encontra tecnicamente em guerra civil). Segundo ele, quando tentava entrar na Transnístria, membros das forças armadas russas que fazem a patrulha do posto fronteiriço do lado independentista roubaram-lhe tudo o que tinha, dinheiro, documentos, malas e até roupa e calçado de marca que levava vestido nesse dia, deixando-o em cuecas e sem identificação alguma a meio caminho entre um estado falhado e um outro que nem sequer é reconhecido internacionalmente! Que filme! Por piedade ou por estarem já familiarizados com esse tipo de situação, os guardas fronteiriços do lado moldavo deixaram-no voltar atrás sem documentos. Além do mais, as embaixadas francesas não são como as portuguesas, para sorte do azarado viajante francês. E falo por experiência própria, quando me foram roubados documentos e cartões de banco na Tailândia, se não fosse o auxílio da minha família em Portugal, o estado português e seus representantes diplomáticos ter-me-iam literalmente deixado a apodrecer neste país. Pior, a quantidade de dinheiro que meroubaram na Embaixada Portuguesa na Tailândia foi muitíssimo superior à roubada pelo desgraçado do assaltante tailandês. Voltando ao desafortunado francês, a embaixada francesa foi, segundo ele, impecável, dando-lhe roupa, hotel pago e dinheiro enquanto aguardava pelos documentos. Daí o termos encontrado ainda em Chisinau, tinha acabado de receber o passaporte novo e tinha marcado para a manhã seguinte uma viajem de comboio para Bucareste, capital da Roménia.
A verdade é que, desde que partiu no carro da polícia e desapareceu de vista na primeira curva à esquerda, nunca mais vimos nem ouvimos falar do pobre rapaz… até hoje!
A partir desse dia e até ao final da viagem na Moldávia e na Ucrânia, passámos a esconder sistematicamente as máquinas fotográficas dentro de sacos e a mudar de rua sempre que víamos polícias ao longe numa rua aproximando-se de nós. Lembro-me até de situações em que entrámos na primeira porta de um local público (bares, restaurantes e outros) no intuito de nos refugiarmos do claustrofóbico perigo policial e da sua corrupta caça aos dólares estrangeiros… Ah, belos tempos, lindas memórias! Ahahah!
Luís Garcia, 29.08.2015, Lampang, Tailândia
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