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Pensamentos Nómadas

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A vida depois da morte, por Luís Garcia

22.08.15 | Luís Garcia
 
 

RELIGIÃO Luís Garcia

  • “(…) o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida. O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um mal.” (em Carta sobre a felicidade1, de Epicuro)

 

Para um católico, não acreditar na vida eterna da alma,é tão absurdo como um homem de olhos abertos durante o dia não acreditar que o céu é azul. Ou será mesmo? Existe de facto semelhanças, ambos crêem em algo e ambos jamais pararam para reflectir nas suas certezas de vidas eternas e céus azuis. Mas há uma diferença fulcral, o homem de olhos abertos num dia de céu limpo vê este pintado de azul e então aceita que o céu é de facto azul. O homem que acredita em almas e vidas eternas, pelo contrário, acredita em primeiro lugar nestas e só depois as “vê” em divagações religiosas, em alucinações sacrossantas e em obras de arte que materializaram as alucinações de outros crentes…

 

O homem que vê e crê no céu azul nunca parou para se perguntar por que razão o céu é azul, o que não contraria o facto que vários outros já o terem feito e inclusive encontrado a explicação científica do fenómeno natural por detrás da “eleição” da cor azul2.  

   

O homem (bom, a mulher se quiserem, afinal quanto penso em fanatismo religioso na minha aldeia vêem-me mais caras femininas que masculinas à cabeça) que acredita que depois de morrer permanecerá “vivo” em forma de alma num outro mundo imaterial a que chama “vida eterna”, esse, ou essa, nunca se perguntou por que a vida eterna é eterna, ou se é vida sequer, e jamais se questionou sobre as implicações práticas nesta crença infundada. Crê porque foi ensinado a crer na vida eterna, mas jamais se perguntou como seria “viver” essa “vida”, quem a iria “viver”, como lá chegariam partindo de um mundo material, como nela comunicariam na ausência de matéria… e por aí fora.

 

Por exemplo, uma vez morto fisicamente e renascida para a vida eterna, que faz a alma de um surdo-mudo no céu (ou no inferno)? Como se comunicará se nunca ouviu sons nem nunca aprendeu a falar? Comunicará porventura por sinais? Mas como se perdeu a sua “metade” física? O católico poder-me-á responder que surdos-mudos comunicarão através dos poderes insondáveis da mente contida na alma, e que por isso não serão precisos meios físicos nas trocas de informação, serão um género de softwares comunicando entre si… Aliás, já ouvi absurdos similares. O que ainda não encontrei foi software funcionando que não estivesse associado a hardware (um disco rígido, um cérebro, por exemplo).

 

Acreditemos que sim, que existe esse software denominado “alma” que funcionará sem hardware (sem corpo), tudo bem. Contudo, mesmo esta suposição fantasiosa e impossível de comprovar transformada em dogma absoluto não consegue por si só explicar tudo. Aliás, não explica quase nada. Para começar, poderá um crente católico me explicar como se comunica e como se entretêm eternamente um bebé que morreu da sua vida física aos 3 meses de idade, antes de ter aprendido a organizar pensamentos complexos, antes de ter aprendido a comunicar, antes de ter tido tempo de formar uma personalidade própria. Que fará este bebé na vida eterna? Comunicará em pensamento, pois sim, já o ouvi dizer, mas comunicará o quê se ainda não terá nada de inteligível para comunicar?

 

E quanto às pessoas “crescidas”, com personalidades complexas e únicas, com defeitos e manias, com virtudes e valores morais, possuidoras de crenças políticas e religiosas, que farão no paraíso? As personalidades moldam-se pela meio cultural e social em que lhes calhou nascer, pelo nível de riqueza, pelo nível de acesso à educação, pela geografia e clima envolventes, pelas religiões e ideologias politicas estabelecidas em seu redor, pelo nível de sofisticação e complexidade da sua língua materna, etc. Tendo em conta todos estes e muitos mais factores que tomam parte na construção de personalidades, no paraíso, na vida eterna depois da morte, que personalidade teremos? Uma outra, nova, em sintonia com as condições imateriais da vida eterna? Ou a mesma de sempre, a continuação no paraíso da que tínhamos na vida terrena? Se for a mesma, a questão complica-se para quem tiver ido para o paraíso. Se se mantiverem as personalidades individuais tal como eram no mundo físico, então no paraíso encontraremos boas pessoas (almas) com diferentes ideologias, diferentes preferências clubísticas e, sobretudo, crentes de diferentes religiões. Poderá ser o paraíso um paraíso se portistas e benfiquistas tiverem a eternidade inteira para se insultarem? Será paraíso o paraíso se Marxistas-Leninistas partilharem esse “espaço imaterial” com defensores do neo-liberalismo, das privatizações e das desregulamentações? Será paraíso o paraíso se para todo o sempre católicos e muçulmanos divergirem acerca da divindade de Jesus e Maomé? Se assim for, ou seja, se chegarmos ao paraíso possuidores das mesmíssimas personalidades e se optarmos por continuar a “viver o dia-a-dia”, transformaremos o paraíso no maior dos infernos. Se, pelo contrário, em prol da paz e harmonia celestial, nos abstivermos de “abrir a boca” espiritual, então que outra distracção teremos para nos ajudar a passar o tempo que durará para todo o sempre? Teremos pois de optar, no paraíso, entre o inferno eterno da discórdia ou a eterna tortura mental do silêncio?

 

A solução para este (eterno) problema seria – como hei-de o dizer sem ferir susceptibilidades – que houvesse uma formatação mental das almas uma vez finda a sua vida terrena, agora prestes a entrar na vida eterna imaterial. Para evitar transformar o céu num inferno, deus, ou funcionários seus, levariam a cabo um processo de lavagem-cerebral que uniformizasse as crenças, gostos e personalidades dos habitantes do paraíso. Assim estariam sempre de acordo, reinaria a concórdia nos céus. Por sua vez, demasiada concórdia eterna geraria aborrecimento eterno! Solução? Limpar a totalidade da personalidade, do intelecto das almas uma vez chegadas ao “paraíso”. Nesse eterno mundo imaterial de almas “amorfas” em estado vegetativoreinaria a paz que os crentes católicos garantem existir no seu paraíso imaginado. No mundo dos ateus, afinal, o paraíso e a respectiva paz não serão tão diferente assim: uma pessoa física morre e nesse mesmo momento a sua mente (ok, alma), por deixar de existir, se torna necessariamente amorfa, e do seu apodrecimento resultará adubo que há-de servir para fazer crescer… vegetais.

 

Com ou sem formatações mentais, ficam ainda questões mais técnicas por responder. As hormonas femininas produzidas durante a menstruação provocam significativas alterações emocionais, provocam momentâneas alterações de personalidade que são ao fim ao cabo parte da personalidade em si. Num mundo de almas sem corpos e, consequentemente, sem menstruações, essas variações persistirão? É sabido que um sem-fim de drogas (tabaco, álcool, anestesiantes ,anti-depressivos, cocaína, etc) têm a capacidade de alterar o “estado de espírito” e a personalidade de uma dada pessoa. O uso contínuo de drogas leva a mudanças definitivas dessa personalidade, é um facto. Essas mudanças “definitivas”, resultantes de circunstâncias físicas, persistirão na vida eterna, nesse mundo não-físico? Essa tal alma, que os católicos afirmam poder persistir para além da morte física, trará consigo para a vida eterna as mazelas da vida física que participaram na elaboração das personalidades finais de cada um? Se assim for, como funcionarão essas personalidades uma vez findos os estímulos físicos que outrora eram responsáveis pela elaboração e dinamismo dessas personalidades? Haverá um católico que me possa responder a estas questões?

 

E afinal, voltando atrás, para que servirá uma vida eterna, para que servirá vivermos eternamente num universo paralelo não-físico, sem orelhas, sem nariz para cheirar o perfume de rosas, sem boca para saborear morangos, sem luz nem olhos, impossibilitados de ver passar garotas de Ipanema ao fim da tarde, sem sol para nos aquecer e nos bronzear a pele? Que raio se fará então no paraíso? Aceitando que deus, na sua não imensa bondade, jamais executaria “lavagens cerebrais” aos habitantes do paraíso, com que mais poderiam se entreter esses não-seres senão dialogando “mentalmente”? As pessoas no geral gostam de tudo menos de “perder tempo a pensar”. Para essas mesmas uma vida eterna a dialogar não seria precisamente o inferno dos infernos, mesmo que passado no dito paraíso? Eterna prisão em si, sim… dá que pensar!

 

Ahhhh, então por que é não nascemos logo no paraíso?

 

(1) – Texto integral da Carta sobre a felicidade de Epicuro:

(2) – Explicação do fenómeno do céu azul:

Versão original: Luís Garcia, 07.07.2013, Chervey, França 

Versão actualizada: Luís Garcia, 22.08.2015, Lampang, Tailândia

 

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