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Pensamentos Nómadas

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A patranha do Subsídio Básico Universal

08.01.16 | Luís Garcia
 

 

RICARDO MINI copy  SOCIEDADE ECONOMIA

 

 

Tomei contacto com a ideia da criação de um Subsídio Básico Universal em setembro passado, através de um texto do editor da revista TVP Magazine, do Venus Project (ler mais aqui) que apontava para as vantagens da sua implementação, do ponto de vista da facilitação da abertura das pessoas, pela sua libertação de determinadas obrigações incutidas pelo sistema monetário, assim como do stress causado pela necessidade de fazer dinheiro para poder sobreviver neste mesmo sistema. Se abrirem este mesmo artigo agora, encontrarão, logo ao início, uma ressalva do próprio autor indicando que, embora mantenha disponível o artigo no seu site pessoa sem alterações, já não concorda com as ideias que deixou expressas em abril passado, aquando da produção do mesmo. Aconselho a leitura do artigo, até porque mesmo que eu vá desconstruir neste artigo a patranha que esta proposta é, ainda assim é uma boa oportunidade para terem contacto com algumas das ideias do Venus Project através de um tema que possa interessar a alguns e que tem algo em comum com a cultura de base da maior parte das pessoas que são criadas com os valores do sistema monetário, facilitando a identificação.

 

Ora, embora o Subsídio Básico Universal (SBU) seja uma proposta, ao nível da União Europeia, que data de 2013 e que foi criada por cidadãos independentes (ler mais aqui), já foi testado em algumas localidades dos EUA desde os anos 60, tendo sido até defendido por Martin Luther King (ler mais aqui), provavelmente um dos principais teóricos e impulsionadores do movimento pela sua implementação. Não me irei alargar acerca da história do SBU, uma vez que não é importante para cumprir o objetivo deste texto. Podem consultar os resultados de diversas experiências de distribuição de quantias monetárias previamente estabelecidas por pequenos grupos de pessoas, sem quaisquer condições impostas no que diz respeito à retribuição ou à sua utilização, na Índia , na Namíbia, no Líbano, assim como diversos artigos em que é feita a apologia do SBU e são apresentadas as suas vantagens "Universal basic income as the social vaccine of the 21st century", "welfare-reform-direct-cash-poor", "a-universal-basic-income-is-the-bipartisan-solution-to-poverty", "why-milton-friedman-supported-a-guaranteed-incom", "10-reasons-for-guaranteed-income", "adoption-of-basic-income-in-europe", "is-this-the-radical-road-to-prosperity". Mais uma vez, relembro, que todas as vantagens apresentadas, o são como tal do ponto de vista do sistema monetário que rege as atividades humanas na atualidade. Não concordo com elas, e vou passar brevemente a explicar, mas não pretendo obscurecer informação, faço apenas essa ressalva, porque convém que as leituras sejam feitas de uma forma o mais descentrada culturalmente possível.

 

Vou apresentar, então, as razões pelas quais o SBU não combate, de todo, os problemas basais do sistema monetário:

 

1 – A proposta do SBU inclui a eliminação de todos os outros subsídios auferidos por um indivíduo, dependendo da sua condição, do sistema de leis e da burocracia de cada país, assim como os benefícios associados à sua condição. Pensemos. O SBU é defendido por vários economistas de direita, porque, segundo os cálculos apresentados, implica menores gastos, reduzindo no global o valor dos subsídios auferidos pelos cidadãos. Ou seja, enquanto que, em determinadas situações, um cidadão poderia auferir de vários subsídios, para cobrir os gastos relacionados com necessidades básicas, acesso a serviços, criação e educação dos filhos, etc., neste caso todos os subsídios seriam eliminados – algo que é apresentado como argumento a favor, também pelo facto de facilitar o sistema burocrático – para dar lugar a um subsídio único, que seria entregue a cada cidadão de uma forma incondicional, como disse sem necessidade de qualquer retribuição, independentemente de o cidadão trabalhar ou não, independentemente de ter outras fontes de rendimento, derivadas do trabalho ou não, e independentemente da sua posição na hierarquia social. Aqui começa-se a desmontar a patranha. Em primeiro lugar, como poderia ser calculado de forma justa e objetiva um valor que permitisse que qualquer cidadão, independentemente das suas circunstâncias materiais, satisfazer as suas necessidades básicas – acesso a comida, a água potável, a cuidados de higiene, a habitação – e ter acesso a serviços – educação, saúde, serviços de telecomunicação, serviços de transporte, cultura? De todas as propostas que encontrei, nenhuma prevê, sequer a longo prazo, ultrapassar a fasquia dos 1200€ mensais. Expliquem-me como é possível para, por exemplo, um sem-abrigo com a nacionalidade de um país no qual a SBU seja adotado – e este é outro ponto importante que irei discutir -, seja em que país desenvolvido for – e a questão dos países em vias de desenvolvimento também será discutida – conseguir pagar a renda de uma casa, por mais simples que seja, as contas da água, da eletricidade, do gás, comprar comida e ainda estar seguro que terá dinheiro para cobrir os gastos com a saúde se acontecer padecer de, ou desenvolver no entretanto, uma doença mais ou menos grave que implica grandes gastos com consultas, hospitalizações, tratamentos e medicamentos? Temos de considerar todos estes aspetos porque, não esqueçamos, todos os outros subsídios e benefícios sociais desapareceriam. Também há outra questão que não esclarecem. Então, e  partir de que idade é que os cidadãos aufeririam do SBU? Podem sempre argumentar que isso não é importante, uma vez que a universalidade da proposta implica que todos os cidadãos, independentemente da idade, aufeririam do subsídio. Consideremos, então, que tal é verdade – ainda que deixando a ressalva de que não há clareza no que se refere a esta questão. Ora, perante o corte de todos os outros benefícios, como poderiam entregar um mesmo valor monetário a uma criança que já não teria mais acesso a educação gratuita – como existe em alguns países -, não teria mais acesso a saúde gratuita – como também existe -, não teria mais acesso a transporte gratuito para a escola – como também existe -, teria de pagar os cuidados médicos, se fosse o caso, e todos bem sabemos como as crianças adoecem com facilidade, que entregariam a um sem-abrigo nas condições que apresentei, a uma pessoa idosa que padeça de uma ou várias doenças crónicas e/ou agudas cujo simples tratamento em ambulatório pode ascender às várias centenas de euros por mês? E isto são só alguns exemplos. Se se pensar noutros casos, a situação torna-se ainda mais absurda. Enfim, do primeiro ponto fixem que todos os outros subsídios e benefícios sociais seriam anulados.

 

2 – É exclusivo para os grupos alvo, querendo dizer que mesmo em países nos quais o SBU vai ser experimentado, como sejam a Finlândia (finland-plans-to-give-every-citizen-a-basic-income-of-800-euros-a-month) ou a Holanda (several-dutch-cities-want-to-give-residents-a-no-strings-attached-basic-income), não há a garantia de que seja igualmente distribuído por todos os cidadãos. As experiências vão ser feitas com isso em vista e, no caso de não terem os resultados desejados – e isso pode ser qualquer “problema” que inventem, mas a isso já vamos com maior detalhe – o SBU será rejeitado como solução económica e burocrática para o Estado. Não que eu considere que tal tenha uma elevada probabilidade de acontecer, já que a aplicação do SBU traz várias vantagens para a economia monetária, como já comecei a destrinçar no último ponto, e continuarei nos próximos.

 

3 – Como terceiro ponto, apresento aquele que é, talvez, dos mais interessantes. Existem várias propostas de criação de um SBU (como o caso desta: "givedirectly-cash-transfers", por parte de empresas privadas e, pasmemo-nos, principalmente visando comunidades em países em vias de desenvolvimento. Ora, como qualquer bom economista do sistema monetário poderá calcular, ainda que o valor do SBU não seja elevado, representa uma grande despesa para o Estado, uma que muitos países não podem suportar. Então, há empresas “caridosas” que propõem criar o mesmo tipo de subsídios, através de dinheiro que elas próprias obtêm (hummm…) e distribuem sob a forma de subsídio sem qualquer tipo de vínculo, ou seja mais uma vez de forma incondicional, por uma determinada população. Agora, associem este ponto ao primeiro. Ora, temos empresas privadas a promover o SBU. Temos a supressão de todos os outros subsídios e benefícios providenciados pelo Estado. E temos as empresas privadas a promoverem isto porque, argumentam, estimula o empreendedorismo dos cidadãos. Já chegaram lá? Eu acho que sim. Pois, neste sistema para a economia funcionar, é necessário que haja um fluxo monetário constante entre as várias instâncias, nomeadamente Estado, cidadãos-trabalhadores-consumidores e empresas-providenciadores de produtos e serviços. Se este fluxo for interrompido em alguns dos pontos, a economia colapsa. Ou não? E se eliminarmos o Estado da equação? E se o Estado não existir mais do que na sua vertente legislativa e executiva? Ou, não existir de todo? Afinal de contas, a economia só precisa que existam produtos e pessoas para os consumir, de forma contínua. O Estado só é considerado na tríade económica, porque existe como entidade e é um dos pontos através dos quais o dinheiro flui. Se o fluxo monetário se fizer exclusivamente entre duas instâncias (cidadão-trabalhador-consumidor e empresas-providenciadores de produtos e serviços), para que é preciso o Estado? Aliás, mesmo que isto soe a uma ideia orwelliana, apenas a verificar-se num futuro longínquo, sejamos sérios, que papel é que o Estado tem hoje em dia na vida das pessoas? Criar leis e fazê-las cumprir? Até mesmo esse, será que sim? Veja-se o caso de todos os países nos quais o FMI interveio. Veja-se o recente caso da Grécia. Acham mesmo que é o sistema legal que vai salvaguardar os interesses da maioria da população? Não. As leis, os tratados, os acordos, os pactos, as cartas violam-se a bel-prazer se isso servir os interesses das elites económicas. Neste sistema, nada funciona sem dinheiro. E o dinheiro é controlado por quem o detém e por quem o investe. Só uma economia baseada em recursos, e não em dinheiro, pode contrariar este cenário. Nada mais, por mais bem-intencionado que seja. No limite, não há produto nem serviço que não possa ser privatizado. Aliás, exemplos disso há pelo mundo fora. Pode-se privatizar a educação, a saúde, a justiça e, com o SBU, pode-se privatizar também a “segurança social”. Com o papel do Estado reduzido, e eventualmente eliminado progressivamente, que instituição restará para salvaguardar os interesses do dito “povo”? Aliás, se a situação já é como é, e com a pressão, aliada ao secretismo, relacionada com a assinatura de tratados como o TTIP ou o TPP, que papel sobrará para o Estado? Mas, eu até diria que, seja como for, já não sobre nenhum. A política é obsoleta, tanto neste sistema viciado, no qual nada pode fazer para além de remendos bastante circunscritos no tempo e no espaço, e na qual mesmo o surgimento de pessoas bem-intencionadas de nada serve, porque não estão equipadas com os conhecimentos necessários para resolver os problemas que afligem a humanidade, se até mesmo quando tentam jogar de acordo com as regras do sistema monetário são prontamente esmagados por quem tem verdadeiramente poder, e esse está nas mãos, repito, dos que detém o dinheiro e o podem investir.

 

Revoluções? Revoltas? Por que terão de existir, então? Por que terão de existir se a aniquilação final do Estado for acompanhada da aplicação de um SBU, que confere aos cidadãos a “liberdade” de poderem empreender como nunca, de terem garantia uma “almofada” para consumirem e manterem a economia a funcionar de acordo com os parâmetros definidos de aquisição exponencial de lucros, com completo desprezo pela sustentabilidade ambiental e dos recursos naturais?

 

4 – Neste ponto, recuemos um pouco, embora me vá repetir parcialmente. Com a quantidade de burocracia relativa à obtenção da nacionalidade que existe em todos os países, com os diferentes tipos de sistemas políticos ao redor do mundo, como poderia o SBU, considerando que não seria do interesse dos líderes (políticos e/ou económicos) de alguns países adotá-lo, ser implementado a nível mundial? Como se poderiam ultrapassar essas barreiras labirínticas? Assim sendo, as desigualdades certamente manter-se-iam.

 

5 – Os valores criados pelo sistema monetário, ainda que com mais força pela sua vertente capitalista, manter-se-iam e, provavelmente, seriam reforçados. Haveria mais margem para criar competição entre as empresas privadas, com uma maior procura, com um mercado mais amplo para explorar, composto por um maior número de pessoas, com todos os graves prejuízos e desperdícios que isso implica. Com mais gente a poder educar-se através do sistema educativo institucional – público ou privado, não interessa -, mais gente fica é educada para os valores de consumismo, acumulação de dinheiro e bens materiais, ostentação de bens materiais, necessidade de atenção, para além de não ser ensinado a empregar o método científico de aquisição de conhecimento, tornando-se em meros debitadores de informação que é fornecida de forma manipulada, principalmente nos domínios das ciências sociais, para servir os interesses do status quo, mas também em todos os outros domínios, para servir os interesses económicos – escrever sobre isto implicaria um sem-número de artigos, tal a quantidade de coisas que envolve. A juntar a isso, ainda o mais fácil e maior acesso a meios de comunicação social também eles manipulados. Se pensarmos também que quanto mais marginalizado do sistema alguém é, mais facilmente tem contacto e aceita ideias diferentes, uma vez que não foi tão fortemente doutrinado para o aceitar cegamente, então imaginem como não se tornaria ainda mais fácil suprimir movimentos dissidentes, quando virtualmente toda a gente estaria bem integrada no sistema e a viver “bem”.

 

6 – Em seguimento do ponto anterior, as consequências da manutenção de um modelo económico insustentável agravar-se-iam. Enquanto que neste momento existe uma minoria seleta da população mundial que contribui significativamente para o consumo de recursos e para a destruição do meio ambiente de todas as formas possíveis, e uma esmagadora maioria que passa por grandes privações e mal consome e mal polui, imaginem como seria se virtualmente toda a gente tivesse um estilo de vida mais aproximado a um cidadão médio de um país desenvolvido. Aí sim, a população mundial humana seria excessiva. Mais uma vez, pelos comportamentos instigados pelos valores transmitidos culturalmente, e não por escassez de recursos.

 

Quando comecei este artigo, pensei em fazer uma conclusão mais alargada, incluindo vários dos aspetos que fui referindo ao longo dos pontos, mas, sendo que já os referi, e provavelmente o texto organizado desta maneira é mais compreensível, vou terminar fornecendo apenas mais uma informação importante, e que remete para o primeiro ponto. Os dados e indicadores do “combate à pobreza” são manipulados, como poderão ler neste artigo da AlJazeera, que explica detalhadamente como tal é feito: "exposing great poverty reduction". Portanto, isto vem em acrescento ao que tinha dito quando me referi ao facto de ser impossível calcular de uma forma justa e objetiva um valor de SBU.

 

Espero que o presente artigo seja útil para compreender a proposta do SBU e que a bibliografia associada seja a suficiente para complementar o texto.

 

Ricardo Lopes

 

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